O jogo duplo de Erdogan

Recep Tayyip Erdogan (Foto: Senado da Polônia | Wikimedia Commons)

Mais Lidos

  • Esquizofrenia criativa: o clericalismo perigoso. Artigo de Marcos Aurélio Trindade

    LER MAIS
  • O primeiro turno das eleições presidenciais resolveu a disputa interna da direita em favor de José Antonio Kast, que, com o apoio das facções radical e moderada (Johannes Kaiser e Evelyn Matthei), inicia com vantagem a corrida para La Moneda, onde enfrentará a candidata de esquerda, Jeannete Jara.

    Significados da curva à direita chilena. Entrevista com Tomás Leighton

    LER MAIS
  • Alessandra Korap (1985), mais conhecida como Alessandra Munduruku, a mais influente ativista indígena do Brasil, reclama da falta de disposição do presidente brasileiro Lula da Silva em ouvir.

    “O avanço do capitalismo está nos matando”. Entrevista com Alessandra Munduruku, liderança indígena por trás dos protestos na COP30

    LER MAIS

Revista ihu on-line

O veneno automático e infinito do ódio e suas atualizações no século XXI

Edição: 557

Leia mais

Um caleidoscópio chamado Rio Grande do Sul

Edição: 556

Leia mais

Entre códigos e consciência: desafios da IA

Edição: 555

Leia mais

11 Julho 2022

 

"Eis que, quando a Europa pensa em Erdogan como o negociador da crise, não deve esquecer as analogias dos dois líderes na gestão do poder: as denúncias dos cidadãos ao Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, os sistemas de controle de ambos os países que ignoram o Estado de direito, eleições cada vez menos livres, cada vez menos justas. A retórica de suas narrativas bélicas e revisionistas. A oposição perseguida e reprimida. Os abusos contra a minoria curda, que tanto lembram a conduta russa na Ucrânia", escreve Francesca Mannocchi, jornalista e documentarista italiana, em artigo publicado por La Stampa, 08-07-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.

 

Eis o artigo.

 

Há pouco mais de um ano, em abril de 2021, o primeiro-ministro Mario Draghi, em uma definição que causou certo constrangimento, chamou Recep Tayyip Erdogan de "ditador". Mas acrescentou: "A consideração a ser feita é que com esses ditadores com os quais, no entanto, é preciso colaborar, ou melhor, cooperar, é preciso ser francos em expressar a diversidade de visões, comportamentos, visões, mas prontos a cooperar para os interesses do próprio país."

 

Essa declaração - que provocou uma reação imediata de Ancara (o embaixador italiano na Turquia, Massimo Gaiani foi convocado, e o ministro das Relações Exteriores turco, Mevlüt Çavuşoğlu, qualificou como "impudentes" as palavras de Draghi) - teve o mérito de revelar a ambiguidade que há anos guia as relações com a Turquia. Na última terça-feira, Draghi voou para a Turquia para o primeiro encontro após o incidente diplomático de um ano atrás para relançar a aliança entre os dois países e apoiar o papel turco de mediador entre a Rússia e a Ucrânia.

 

No meio está a crise alimentar - a exportação de milhões de toneladas de trigo através de corredores seguros no Mar Negro - os acordos econômicos bilaterais entre a Turquia e a Itália, a crise migratória na Líbia.

 

O Ocidente tem uma longa história de alianças e pactos com regimes e líderes autoritários de todo o mundo, aliados questionáveis, mas necessários. É o princípio que rege as negociações, que busca manter equilíbrios entre as partes, pois se sabe que se negocia com os adversários e não com os solidários.

 

No topo da lista de aliados necessários e questionáveis para a Europa está justamente Erdogan. Necessário para conter o fluxo migratório em 2015, por exemplo, apesar de ter minado a democracia turca, invadido territórios curdos, aprisionado opositores políticos e jornalistas e, mais recentemente, ameaçado impedir a adesão da Suécia e da Finlândia à OTAN, colocando na balança as sortes da minoria curda que o Ocidente mostrou repetidamente que está pronto a sacrificar.

 

É o realismo da política e nisso Erdogan vem fazendo escola há anos, e o faz justamente nas relações com a Rússia, que a Europa deveria ter observado com mais atenção.

 

Para descobrir que os dois líderes são muito mais parecidos do que pensamos e que encontraram em diferentes cenários um equilíbrio que os tornou não amigos, mas também não inimigos.

 

Rússia e Turquia permanecem em duas frentes diferentes do conflito sírio, com a Turquia apoiando os rebeldes contrários a Assad. Não há acordo sobre a Líbia, pois os mercenários russos ajudavam o general Khalifa Haftar enquanto a Turquia enviava tropas para apoiar o governo de Trípoli. Na Ucrânia, a Turquia, em teoria, se opõe veementemente à anexação da Crimeia pela Rússia, pátria dos tártaros turcos. Mas a aliança cujas raízes hoje vale lembrar, resiste para não cometer o erro - pensando em encontrar um negociador para a crise global gerada pela invasão russa da Ucrânia – de alimentar o poder chantagista de Ancara.

 

É verdade que o Ocidente precisa da Turquia do seu lado na guerra econômica contra a Rússia, porque o apoio de Ancara pode limitar o fluxo de mercadorias russas sancionadas dentro e fora do Mar Negro, mas também é verdade que a Turquia se tornou um dos principais destinos para o dinheiro russo em fuga das sanções e os dois países compartilham interesses energéticos em áreas cruciais do Mediterrâneo e da Ásia.

 

Escreve-se Líbia e se lê petróleo

 

Rússia e Turquia apoiam há anos dois governos opostos na Líbia.

 

Enquanto o governo de Trípoli é apoiado pela Turquia e Catar, o homem forte Khalifa Haftar, com base no leste, tem o apoio da Rússia (além da Arábia Saudita, Egito e Emirados Árabes Unidos).

 

Quando Haftar atacou Trípoli em 2019, o então primeiro-ministro líbio pediu em vão o apoio dos aliados europeus. Assim, após a chegada dos mercenários russos do grupo Wagner, Sarraj correu aos reparos e firmou dois acordos com os turcos. O primeiro é militar: a Turquia envia os drones Bayraktar, os mesmos que hoje chegam à Ucrânia, virando a sorte da guerra e libertando Trípoli.

 

Em troca dos drones, Erdogan pediu e obteve um segundo acordo, o tratado sobre os direitos de perfuração de gás no Mediterrâneo, que traça uma linha vertical através do Mediterrâneo, interrompendo os planos entre Grécia, Chipre, Egito e Israel sobre os direitos de perfuração de petróleo e gás. De acordo com o pacto com a Líbia, a Turquia absorveria parte das águas territoriais da Grécia. Ancara faz isso amparada pelo fato de que nunca reconheceu a convenção da ONU de 1982 sobre as fronteiras marítimas, não reconhece a República do Chipre do Sul e seus acordos para uma zona econômica exclusiva com Egito, Líbano e Israel, portanto, considera que está operando em águas de sua própria competência.

 

A Europa está preocupada, Grécia, Chipre e os países da UE exigem que seus interesses energéticos na área sejam defendidos.

 

Erdogan continua em frente, capitaliza a fraqueza do governo de Trípoli, a ausência da Europa e assume os interesses por uma fatia da Líbia. Também por isso Draghi coloca no centro no tema migratório durante o encontro turco: ele sabe que a influência que a Itália tinha antes nas costas líbias foi parcialmente substituída por aquela turca e é novamente com ele, Erdogan, portanto, que é preciso discutir sobre a gestão dos fluxos migratórios.

 

Escreve-se Líbia e se lê petróleo, escreve-se Líbia e se lê alianças fluidas e sobreponíveis.

 

Em 2020, enquanto a Europa buscava uma mediação, que depois fracassaria, entre os governos líbios de Haftar e al-Sarraj, Putin e Erdogan (antagonistas no papel) estavam em Istambul para inaugurar o Turkish Stream, o gasoduto de 930 km, no valor de quase 7 trilhões de dólares, que pode transportar até 31,5 bilhões de metros cúbicos de gás anualmente da Sibéria para a Europa Oriental via Turquia.

 

Na cerimônia de inauguração, Putin disse que o oleoduto era um sinal de "cooperação" que sublinhava a amizade entre Ancara e Moscou. No ano passado, por essa rota, a Bulgária recebeu 10,5 milhões de metros cúbicos de gás; a Grécia, 9,6 milhões; a Sérvia, 8,9 milhões; a Romênia, 8,5 milhões; a Hungria, 6,3 milhões, e a Macedônia do Norte, 1,7 milhão.

 

No final de junho, o consórcio estatal russo de gás Gazprom suspendeu os fluxos de gás através do gasoduto Turk Stream por uma semana "devido à manutenção preventiva", dizia o comunicado. Uma retaliação russa à Europa, é claro, mas também uma forma de lembrar Erdogan que antes de ser um "negociador" com a Ucrânia, ele era um parceiro de negócios do Kremlin.

 

Ao longo das linhas de gás

 

Um terreno de equilíbrio semelhante para a Rússia e a Turquia é o sul do Cáucaso e aqui também é preciso voltar pelo menos alguns anos, quando em outubro de 2020 se reacendeu a disputa territorial de trinta anos entre o Azerbaijão e a Armênia pelo Nagorno-Karabakh.

 

 

Guerra diferente, mesmos aliados: a Rússia em apoio à Armênia e os turcos ao Azerbaijão.

 

Quando os combates recomeçaram em 2020, a Turquia enviou armas e tropas mercenárias e a Rússia lançou uma mensagem clara ao Azerbaijão organizando a Operação KavKaz 2020 (Cáucaso 2020): um exercício de 1.500 trupas russas e armênias não muito longe da fronteira, de forma a dizer aos azeris que o Kremlin considera o sul do Cáucaso como sua esfera natural de influência.

 

O conflito em Nagorno Karabakh projeta o antagonismo entre Rússia e Turquia em um cenário semelhante ao da Líbia: países rivais, mas não inteiramente inimigos.

 

Para compreender plenamente o interesse das duas grandes potências no Cáucaso, basta olhar o mapa. No centro do conflito, os hidrocarbonetos do Cáspio passando pelo Cáucaso e Nagorno-Karabakh no centro, que serve de corredor para os oleodutos que levam petróleo e gás aos mercados mundiais.

 

Após a queda da União Soviética, o Azerbaijão tentou exportar seu petróleo e gás sem depender dos oleodutos russos, atraiu investidores ocidentais, instalando oleodutos e gasodutos que permitiram ao país transportar sua energia do Mar Cáspio para os mercados internacionais, uma das razões que atraíram os investidores turcos nas últimas décadas e uma das razões, portanto, do envolvimento direto de Ancara no conflito.

 

Apesar das premissas e das hostilidades, Erdogan e Putin negociaram para resolver a crise, impuseram uma trégua e favoreceram uma solução política.

 

Na partida de Nagorno Karabakh, foi a Rússia que assumiu o papel de negociador.

 

Em 8 de junho passado, quando o ministro das Relações Exteriores da Rússia, Lavrov, voou para Ancara para se encontrar com seu colega Cavusoglu, não apenas o trigo ucraniano estava na balança, mas também os negócios caucasianos.

 

Cavusoglu agradeceu à Rússia pelo papel de facilitador na normalização das relações entre Turquia e Armênia e deu luz verde a um fórum de 6 países para alcançar a paz entre Azerbaijão e Armênia no Cáucaso. Uma mão lava a outra.

 

O negociador Jano duas caras

 

Eis que, quando a Europa pensa em Erdogan como o negociador da crise, não deve esquecer as analogias dos dois líderes na gestão do poder: as denúncias dos cidadãos ao Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, os sistemas de controle de ambos os países que ignoram o Estado de direito, eleições cada vez menos livres, cada vez menos justas. A retórica de suas narrativas bélicas e revisionistas. A oposição perseguida e reprimida. Os abusos contra a minoria curda, que tanto lembram a conduta russa na Ucrânia.

 

Quanto mais o Ocidente busca uma política de apaziguamento com a Turquia, mais Erdogan é descarado e chantageador, em 2019, adquirindo o sistema russo de defesa aérea S-400, que se acredita representar um desafio formidável para as aeronaves da OTAN, e depois usando os migrantes como uma arma para minar a estabilidade da Europa meridional.

 

A mesma Europa que desde 2016 paga 6 bilhões de euros a Ancara para impedir que os 3,7 milhões de sírios que o país abriga cheguem à Grécia.

 

É disso que falamos, quando falamos da Turquia.

 

Leia mais