"A Igreja precisa de uma mudança concreta na doutrina sobre sexualidade, diversidade sexual e identidade de gênero", escreve Jesus Donaire[1], em artigo publicado por Religión Digital, 10-05-2022.
Jesús Donaire Domínguez. (Foto: Reprodução YouTube)
Desde seu início como bispo de Roma, o Papa Francisco se referiu a pessoas lgbtiq+ em várias ocasiões. Em 8 de maio, ele respondeu a uma carta na qual seu colega jesuíta, James Martin, lhe fazia perguntas sobre as perguntas que as pessoas lgbtiq+ fazem regularmente aos padres na vida pastoral.
A primeira pergunta de James ao papa é esta: O que você diria que é a coisa mais importante que as pessoas LGBT deveriam saber sobre Deus? O papa respondeu: Deus é Pai e não nega nenhum de seus filhos. E o “estilo” de Deus é “proximidade, misericórdia e ternura”. Neste caminho você encontrará Deus.
Deve ser apreciado que o papa reconheça que as pessoas lgbtiq+ também são filhos de Deus e que, como tal, ele nos acolhe com misericórdia e ternura, como o restante do povo. Agora, se como os demais batizados, nós também somos filhos de Deus, por que as pessoas lgbtiq+ não são bem-vindas como tal na igreja? Por que somos julgados e tratados de forma diferente das pessoas heterossexuais? O tratamento discriminatório que recebemos na igreja é uma realidade que não pode ser negada.
Eu coloquei um exemplo. Recentemente, um casal de amigos gays pediu ao pároco de sua paróquia que abençoasse sua união matrimonial, fruto do amor que compartilham há anos. Depois de várias semanas esperando a resposta do padre, dada a sua indiferença, procuraram um padre em outras paróquias. Até agora, ninguém quis abençoá-los. Todos se recusaram e, mais triste ainda, a maioria se desculpou dizendo que não o faz por medo de represálias do bispo diocesano. Essa é a dura realidade que as pessoas lgbtiq+ têm que enfrentar diariamente. Eu me pergunto, essa maneira de tratar os homossexuais é aquela explicada pelo papa em sua resposta a Martin? Ou será que neste assunto a igreja tem dispensa para se distanciar do estilo de Deus Pai? Esta é a igreja acolhedora que não nega nenhum de seus filhos, à imagem de Deus nosso Pai?
Se Deus é próximo, misericordioso e terno, como diz o papa, por que a igreja não é próxima, misericordiosa e terna com as pessoas lgbtiq+? Francisco diz em sua primeira resposta que o estilo de Deus é a proximidade. A Igreja está realmente próxima das pessoas lgbtiq+? O papa está convencido disso? Através de que atos ele demonstra sua proximidade? Se a Igreja estivesse realmente próxima, ainda permitiria ao Catecismo afirmar o que diz sobre as diversas orientações sexuais? Os bispos esperam que esses tipos de declarações doutrinárias aproximem as pessoas lgbtiq+ da igreja?
A última coisa que a Igreja mostra com a comunidade lgbtiq+ é misericórdia. É misericordiosa a atitude dos bispos e sacerdotes para com os homossexuais, que devemos participar da Eucaristia em segredo, passando despercebido entre os demais fiéis, ou que devemos fechar a porta do convento como acontece em Sevilha, para que não se sabe que lá dentro há um grupo de diversos fiéis celebrando a Eucaristia? Quando um padre pede a um gay que se arrependa de amar uma pessoa do mesmo sexo, e justifica sua posição dizendo que é pecado, ele está aplicando o estilo misericordioso do Pai? Devemos ficar calados, escondendo a natureza que Deus nos deu e sendo desprezados pela maioria dos fiéis?
Como cristãos lgbtiq+ sabemos muito bem que Deus é terno. Vivenciamos isso no nosso dia-a-dia, diante da grosseria e rejeição de uma igreja presa em seu passado, incapaz de compreender a sexualidade de forma positiva e humana. É a fé que nos move a seguir em frente, e não a frieza e a incompreensão que encontramos a cada passo em tantos pastores de igreja. A fé que Deus nos deu é o que nos mantém perto dele e de sua fonte inesgotável de ternura. Ternura é o que mostra uma pessoa lgbtiq+ que, apesar da rejeição institucional, condiciona sua existência dentro de uma comunidade cristã, desde que não se sinta longe da ternura do Pai.
O que você gostaria que as pessoas LGBT soubessem sobre a igreja? É a segunda pergunta de Martin ao papa, à qual ele responde: Eu gostaria que você lesse o livro dos Atos dos Apóstolos. Há a imagem da Igreja viva.
Como professor de eclesiologia que tenho sido, entendo a resposta do papa, embora continue pensando que é uma imagem de uma igreja idílica, que nada tem a ver com a realidade. Ele propõe o modelo de igreja particular presente no livro de Atos. Uma igreja assistida pela presença e ação do Espírito que a vivifica. Por isso é uma igreja viva. Talvez o que o pontífice queira nos dizer é que Lucas dá prioridade aos elementos espirituais, interiores, carismáticos e sobrenaturais que compõem a primeira comunidade cristã no Pentecostes. Alguns elementos que devemos considerar fundamentais da igreja. Ao mesmo tempo em que relega para segundo plano seus aspectos visíveis, institucionais, estruturais, hierárquicos e canônicos. Talvez o papa vá por esse caminho!
Agora, não há um abismo de distância entre a igreja narrada no livro de Atos, que ainda é uma utopia, e a igreja real e concreta em que uma pessoa lgbtiq+ tem que viver sua fé? Refiro-me a uma paróquia, irmandade, diocese, congregação religiosa, faculdade pontifícia, etc. Para aquela comunidade cristã específica que está no nível da rua, e na qual nós lgbtiq+ temos que calar, calar a boca, esconder nossa natureza humana e, às vezes, dar o fora porque eles olham para você com uma cara feia ou desprezam você publicamente. Esta é a igreja real e concreta na qual vivemos nossa fé e na qual somos estigmatizados diariamente. É suficiente ler o livro de Atos, ficar absorto no sonho idílico que nele é narrado e convencer-se de que tudo funciona bem na igreja?
A terceira pergunta de James Martin ao papa é esta: O que você diz a um católico LGBT que sofreu rejeição pela Igreja? Nesta resposta, Francisco estende-se mais do que nas anteriores. Ele diz: eu o faria ver que não é “a rejeição da Igreja”, mas de “pessoas da Igreja”. A igreja é mãe e convoca todos os seus filhos. Cf. a parábola dos convidados da festa: "justos, pecadores, ricos e pobres, etc." Uma Igreja "seletiva", uma Igreja de "sangue puro", não é a Santa Madre Igreja, mas uma seita.
À luz de sua resposta, um tanto ambígua e etérea, seria bom que o papa esclarecesse o seguinte: quando um bispo rejeita um grupo de cristãos lgbtiq+ em sua diocese e não permite que se desenvolva nela uma pastoral inclusiva da diversidade sexual e de gênero, quem rejeita esses fiéis leigos? Uma pessoa da igreja a título privado, ou o chefe e pároco da igreja diocesana? Quem rejeita este grupo de crentes lgbtiq+, um particular ou o ordinário da diocese?
Os bispos que o senhor encarregou das igrejas particulares, e que se recusam a dispensar em seus territórios diocesanos, bênçãos de uniões de casais homossexuais, estão agindo em nome próprio e, portanto, não é a igreja que rejeita tais bênçãos? Ou o fazem exercendo o munus regendi, próprio de seu ministério, e, portanto, é a igreja que se recusa a abençoar duas pessoas que se amam? Não está claro para mim se, nestes casos, é a igreja que rejeita as pessoas lgbtiq+, ou é um homem homofóbico que preside a comunidade diocesana.
Foto: Pixabay
Destaco essas questões, porque são as atitudes e comportamentos mais comuns e difundidos entre os bispos da Igreja Católica. É assim que tratam as pessoas lgbtiq+. Atitudes que causam grande sofrimento nos fiéis e que são permitidas como se nada tivesse acontecido. Seja claro, Francisco, nós realmente encaixamos pessoas lgbtiq+ na Igreja Católica? Porque isso não é a realidade.
#Hilo / El Papa Francisco envía un mensaje a los católicos #LGBTIQ+. Francisco respondió en la carta a tres preguntas que usualmente se hacen los católicos LGBTIQ+. Gracias a @JamesMartinSJ y a @OutrchCatholic por la iniciativa.
— Padre Jonathan Marín, SJ (@jesuitajonathan) May 9, 2022
Aquí va la foto de la carta y el ? pic.twitter.com/xo8ZAuPSc0
Se a igreja é mãe, e nela todos temos nosso lugar, por que as pessoas lgbtiq+ não podem ensinar catecismo nas paróquias? Por que somos vetados a ser professores de religião em escolas e institutos? Por que os crentes lgbtiq+ não podem existir nas paróquias, com a mesma visibilidade que outros grupos paroquiais? Ou, por que, no caso de permitir, temos que esconder e não mostrar nossa orientação sexual diversa? É verdade que na Igreja não existem movimentos, caminhos e prelaturas apostólicos de abordagem e conduta sectária, seletiva e puro-sangue, como você mesmo diz? Você acha que pessoas diversas têm um lugar nesses grupos eclesiais?
Gostaria que James Martin perguntasse ao papa, por que os bispos não ouvem as pessoas lgbtiq+ que fazem parte da comunidade cristã? Por que, na grande maioria das dioceses católicas do mundo, as pessoas lgbtiq+ são encurraladas e desaprovadas? Por que não fomos chamados a participar ativamente do Sínodo que está acontecendo?
As palavras de Francisco são piscadelas esperançosas de uma possível mudança. Suas intervenções parecem sinceras e corretas, típicas de um papa que usa uma linguagem atual, próxima da realidade humana. Mas isso não chega a ser afirmações espontâneas e passageiras. O que em teologia é chamado de desideratum, ou seja, um desejo que se deseja alcançar com toda a alma, mas que nunca é alcançado. Palavras que não vão além do discurso, sem qualquer impacto doutrinário. Então, duvido que o papa realmente queira mudar as coisas.
É verdade que estou sendo muito crítico, não nego nem escondo. Mas o que estou dizendo não é verdade? Permanecer em palavras agradáveis e gestos ternos, sem se envolver ativamente na transformação da realidade, não é a posição mais adequada para lutar contra a estigmatização, ódio e rejeição que a igreja promove e apoia contra pessoas lgbtiq+. Perguntar-se retoricamente, quem sou eu para julgá-los?, referindo-se aos homossexuais, e não trabalhar para mudar a doutrina homofóbica que a igreja ensina e defende, parece-me uma tremenda incoerência de sua parte, já que ele tem a autoridade necessária para trazer essas mudanças doutrinárias tão necessárias.
Eu concordaria com o papa, se além de palavras bonitas e espirituais, ele se pusesse a trabalhar e modificasse as expressões ofensivas que aparecem em muitos documentos do magistério, como na Declaração da Pessoa Humana ou nos respectivos números do Catecismo. Ignorar as declarações pejorativas e denegridoras com que o magistério da igreja fala dos lgbtiq+, não parece sério, honesto e justo da parte deles.
Como um bom portenho, o papa balconea, ou seja, observa a realidade lgbtiq+ com grande curiosidade, mas de longe e sem se envolver nela. Não acho que ele tenha se colocado em nosso lugar para nos entender, nos respeitar e nos acolher na igreja, já que ele não propôs nenhuma mudança concreta na doutrina sobre sexualidade, diversidade sexual e identidade de gênero até agora. E, não se engane, esta é a verdadeira mudança que a igreja precisa. Se o papa estivesse realmente comprometido com as pessoas lgbtiq+, ele cheiraria intensamente como uma ovelha diversa. Cheiro que, até agora, não parece exalar.
[1] Jesús Donaire Domínguez (Ciudad Real, 1976). Após completar os estudos secundários, ingressou no seminário metropolitano de Sevilha, onde estudou filosofia e teologia, antes de receber o sacerdócio ministerial. Foi ordenado sacerdote em 2003. Sua primeira missão como sacerdote foi na paróquia de Santa Cruz de Lora del Río, onde permaneceu por cinco anos. Foi nomeado arcipreste de Lora del Río, onde ocupou esse cargo até o dia em que foi eleito vigário episcopal da zona norte da diocese de Sevilha. Depois de passar pela paróquia da Imaculada Conceição de Brenes, onde permaneceu por dois anos, foi enviado a Roma para cursar a Licenciatura e o Doutorado em Teologia Espiritual, de 2010 a 2014. Sua tese: Um trabalhador simples e humilde na vinha do Senhor. A centralidade da vida espiritual na pessoa e o ensinamento do Beato Marcelo Spínola y Maestre. Modelo e professor de padres foi publicado pela Real Maestranza de Caballería de Sevilla em 2018.
Ao retornar de Roma, foi pároco do Santíssimo Corpus Christi, professor da Faculdade de Teologia e do Instituto Superior de Ciências Religiosas, onde integrou a equipe de preparação para o diaconato permanente. Foi diretor espiritual da escola Corpus Christi.
Em fevereiro de 2020 expressou abertamente sua orientação homossexual ao Arcebispo de Sevilha, foi afastado do exercício do ministério sacerdotal e das diferentes responsabilidades que desempenhava. A partir desse momento, ele tomou a decisão irrevogável de nunca mais esconder sua homossexualidade.
Atualmente, dedica-se ao ministério de acompanhamento humano e espiritual de pessoas LGBTIQ+, familiares e interessados; bem como pesquisas e publicações teológicas sobre espiritualidade, religiosidade e diversidade sexual e identidade de gênero.