23 Fevereiro 2022
Poucos anos atrás, eu planejei um trabalho pastoral sobre o Dia Mundial da AIDS na minha paróquia com LGBTQIA+. Eu não sabia quão desafiador isso seria. Para os católicos mais jovens, a epidemia era passado. Para os sobreviventes, o trauma ainda é real. Poucos tem as ferramentas espirituais ou relacionais necessária para processar isso.
Nós todos poderíamos usar o terapêutico livro de Michael O'Loughlin, “Hidden Mercy: AIDS, Catholics and the Untold Stories of Compassion in the Face of Ear” (“Misericórdia oculta: AIDS, católicos e as histórias de compaixão não contadas”, em tradução livre), que foi lançado no Dia Mundial da AIDS em 2021 (1º de dezembro).
O comentário é de Jason Steidl, teólogo católico gay e professor de estudos religiosos no St. Joseph’s College, Nova York, publicado por New Ways Ministry, 21-02-2022. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
Imagem: capa do livro Hidden Mercy | Foto: reprodução
É uma homenagem emocionante aos que morreram, aos que sobreviveram e aos que ministraram, mas também um recurso inestimável para quem deseja entender melhor o legado do papel da Igreja Católica Romana na epidemia de HIV/AIDS. O cuidadoso livro-reportagem de O'Loughlin baseia-se em centenas de entrevistas e arquivos para construir uma história desde a base. Ele habilmente tece narrativas pessoais em histórias mais amplas de ativismo, doutrina e as forças muitas vezes conflitantes de piedade e política que impulsionaram as pastorais da AIDS na Igreja.
Hidden Mercy faz uma narrativa sutil de uma história complicada. Não é nem uma diatribe contra nem uma apologia à igreja institucional. O'Loughlin nos apresenta pessoas como a irmã Carol Baltosiewich, que deixou a região do Meio-Oeste dos EUA para servir aos afetados pela crise da AIDS no coração da cidade de Nova York. Mas também encontramos o então cardeal Joseph Ratzinger (mais tarde Papa Bento XVI), o prelado do Vaticano que pediu a expulsão de organizações católicas de gays e lésbicas das paróquias e que argumentou que os ativistas trouxeram violência homofóbica sobre si mesmos. Leigos como David Pais, que pertencia a Dignity/New York e, mais tarde, à paróquia de São Francisco Xavier de Manhattan, desempenham um papel significativo no relato de O'Loughlin, mas as experiências de padres e religiosas são os fios mais fortes que o livro enlaça.
Como é o caso de muitas histórias recentes envolvendo a Igreja Católica dos EUA, as religiosas emergem como heroínas subestimadas em sua criatividade, sensibilidade pastoral e capacidade de se adaptar a novos desafios proporcionais à sua distância do poder patriarcal. O'Loughlin nos ajuda a ter empatia com padres abertamente gays, como o padre Bill McNichols, cujo serviço pastoral em hospitais e paróquias superou a suspeita que muitos gays tinham em relação à hierarquia. Os católicos que serviram à comunidade LGBTQIA+ nas décadas de 1980 e 1990 tiveram que negociar identidades concorrentes enquanto compartilhavam o estigma e a dor do vírus. O ministério na linha de frente exigia compaixão e coragem heroicas.
Outros líderes católicos deixaram legados mais mistos. O cardeal John O'Connor, por exemplo, mostrou grande compaixão em relação às pessoas com HIV/AIDS – mas essa compaixão foi expressa somente depois que elas contraíram o vírus. Uma ironia trágica é que, enquanto a hierarquia apoiava hospitais, hospícios e centros comunitários que cuidavam de doentes e moribundos, muitos bispos condenaram os preservativos que poderiam ter impedido a propagação do vírus. Aqui, a desconexão entre as ideologias prejudiciais da Igreja e sua missão inspirada no evangelho de cuidar dos marginalizados é mais aparente. O'Loughlin mantém ambos os elementos da Igreja em tensão.
O'Loughlin é o autor certo para este trabalho. Ele é um repórter católico casado e abertamente gay da revista America, dos jesuítas estadunidenses, o conglomerado jesuíta que há muito apoia sua pesquisa e defesa. Apesar de seu raro privilégio, O'Loughlin é honesto sobre suas lutas com o resto da Igreja. Sua busca para descobrir as histórias das pessoas afetadas pelo HIV/AIDS também é uma busca para descobrir sua própria herança católica LGBTQ, que foi obscurecida por uma instituição ansiosa para esconder e/ou excluir católicos queer. Enquanto lia, fui assombrado pela sensação de que, se tivesse nascido uma geração antes, meu nome estaria entre os mortos desconhecidos. O'Loughlin não nos deixa esquecer aqueles que nos precederam, ou aqueles que procuram conhecê-los e lembrá-los hoje.
O livro-reportagem de O'Loughlin é honesta e ele não tem medo de compartilhar histórias de perda dolorosa. Chorei quando li os terríveis detalhes da doença e da morte, mas também as histórias de amor e intimidade que dão vida. O'Loughlin observa que muitos católicos, como os paroquianos idosos da paróquia do Santíssimo Redentor de São Francisco, foram transformados por seus encontros com gays. Estereótipos e mitos evaporaram quando católicos heterossexuais testemunharam o amor queer. Hidden Mercy modela esse mesmo espírito de encontro para as comunidades católicas que discernem seu relacionamento com as pessoas LGBTQIA+ hoje.
A escrita de O'Loughlin está cheia da urgência que muitos historiadores sentem para preservar memórias rapidamente apagadas relacionadas à crise do HIV/AIDS. Fiquei impressionado com o grande número de nomes e personalidades que O'Loughlin resgatou do esquecimento, como se tentasse salvar o maior número possível do naufrágio do tempo. Hidden Mercy, como outras histórias da crise do HIV/AIDS e do catolicismo LGBTQIA+ (inclusive a minha), centra homens brancos, cisgêneros e gays como agentes e vítimas da epidemia. Aqueles que se baseiam em pesquisas existentes podem destacar as experiências de negros, indígenas, migrantes, pessoas trans, heterossexuais e mulheres.
De capa à capa, Hidden Mercy revela a grande necessidade de os católicos reconhecerem, processarem e lamentarem a epidemia de HIV/AIDS. O trabalho de O'Loughlin é um passo importante, mas não pode ser a palavra final. As paróquias podem encorajar grupos de discussão, clubes do livro e lembranças anuais do Dia da AIDS. Um santuário católico nacional em memória das vítimas da AIDS poderia ser um lugar de oração e peregrinação. Como O'Loughlin deixa claro, os católicos possuem inúmeros recursos litúrgicos, teológicos, espirituais e pastorais para promover o cuidado.
A história narrada em Hidden Mercy não pertence apenas ao passado. O'Loughlin nos lembra que a AIDS ainda rouba vidas em todo o mundo, assim como os ensinamentos e práticas da Igreja continuam a prejudicar as pessoas LGBTQIA+. Muitos que ministraram a católicos gays e lésbicas durante a epidemia deixaram a Igreja, desgastados por décadas de homofobia e ignorância na hierarquia. As feridas infligidas anos atrás ainda são sentidas pelo Corpo de Cristo.
Hidden Mercy é uma obra oportuna, e suas histórias nos chamam à ação. Como explicou o teólogo Johann Baptist Metz, lembrar os mortos e preservar a memória de seu sofrimento é uma tarefa profundamente cristã. Recordar a dor do passado nos inspira a trabalhar pela mudança no presente. Na cosmovisão cristã, a morte não tem a palavra final, mas dá lugar à ressurreição e transformação. O trabalho de O'Loughlin oferece esperança para um novo futuro – um em que as pessoas LGBTQIA+ sejam membros plenos de uma Igreja que afirma, ama e cuida delas, seja em meio a uma epidemia ou não.
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Novo livro sobre AIDS e catolicismo dá aos católicos LGBTQIA+ “esperança para um novo futuro” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU