29 Março 2022
"A barbárie reina entre nós aqui, em nossa convivência, e certamente não traça um horizonte de paz para o futuro", escreve Enzo Bianchi, monge italiano fundador da Comunidade de Bose, em artigo publicado por La Repubblica, 28-03-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
Daria vontade de ficar calado diante desta guerra travada, narrada, discutida sobretudo através de mentiras.
Passamos de ser atacados pelo contágio viral da pandemia para sermos inundados por uma extensão viral de mentiras que julgávamos impensável.
A guerra se estendeu muito além das fronteiras russo-ucranianas, está presente e atestada entre nós como um embate, barbárie que impossibilita qualquer escuta e qualquer confronto, como um antagonismo teológico-político que vê o Mal apenas de um lado e o Bem apenas do outro. Quando estoura uma guerra - qualquer guerra - a primeira vítima não é a verdade, mas o pensamento, porque a guerra é alheia à razão.
Então, quando ocorre uma guerra porque uma nação quer liderar o mundo, convencida de que lhe cabe por destino ou por vocação histórica, então se renova o desastroso desfecho da Torre de Babel, projeto de poder totalitário e universal que gera violência e confusão entre os idiomas incapazes de se comunicar entre si.
A guerra já é um desastre, mas também gera guerra entre partes não beligerantes desprovidas da consciência do futuro que estão preparando. Não será apenas uma questão de reconstrução do que foi devastado, mas de um caminho muito mais longo de reconciliação, porque a memória sempre guarda cicatrizes que dificultam a cicatrizar. Quem ganha com uma guerra assim?
Não aqueles que a combatem, mas os fabricantes de armas, entre os quais estão bem presentes aqueles que lutam esta guerra por procuração, não diretamente, mas através das armas fornecidas aos beligerantes e enviando mercenários. Aqueles que não acreditam no destino bélico se rebelam, resistem e não confiam em uma unidade da Europa encontrada apenas na decisão de aumentar os gastos com os armamentos.
Esta minha leitura não é equidistante, porque o agressor continua a ser um agressor, mas não é possível que num país como a Itália, que se orgulha de ser uma democracia madura, aflore tanta intolerância e infelizmente também desprezo por quem não se sente em consciência confortável em aderir ao pensamento dominante das potências ocidentais.
Justamente no momento em que o governo estava decidindo um aumento nos gastos com os armamentos, o Papa Francisco teve a parrésìa de dizer: “Eu sinto vergonha quando um grupo de estados se compromete a gastar 2% do PIB na compra de armas como resposta ao que está acontecendo. É uma loucura!”.
Essas palavras do Papa são censuradas, ou são toleradas com desdém; mas se forem proferidas por outros em sintonia com ele, são julgadas ingênuas ou submetidas a “apedrejamentos” verbais, como aconteceu com algumas intervenções pacatas de homens e mulheres de cultura.
Falar parece inútil, porque qualquer voz que declare que a guerra é "alheia à razão", sendo uma voz sutil e branda, é desprezada, e toda análise do conflito que tente questionar as causas e as responsabilidades é sufocada pela retórica beligerante.
A barbárie reina entre nós aqui, em nossa convivência, e certamente não traça um horizonte de paz para o futuro.
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A barbárie reina entre nós. Artigo de Enzo Bianchi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU