“Religiões são atos humanos e o ser humano é ser político”, diz professora de assuntos judaicos

Foto: Pixabay

05 Outubro 2021

 

Ethel Scliar Cabral fala ao BdFRS sobre a espiritualidade e o atual momento do país sob a perspectiva do judaísmo.

 

A entrevista é de Fabiana Reinholz, publicada por Brasil de Fato, 01-10-2021.

 

Qual o papel da religião em meio a uma pandemia com a dimensão da covid-19? O que líderes religiosos pensam destes tempos que estamos vivendo? Estas e outras respostas buscamos neste Especial Religiões, onde entrevistamos lideranças religiosas dos mais diferentes matizes, do espiritismo à matriz africana, da igreja luterana ao budismo.

 

No final de julho deste ano, entidades judaicas protestaram contra o presidente Jair Bolsonaro (sem partido), após ele receber a deputada alemã Beatrix von Storch, que é vice-líder do partido Alternativa para a Alemanha (AfD), defensor de ideais neonazistas. O avô da parlamentar foi ministro de Adolf Hitler. Em maio deste ano, intelectuais judeus assinaram uma carta em que acusam governo Bolsonaro de nazismo e fascismo. Atitude inversa ao que adotou durante a campanha eleitoral, quando se posicionava como amigo dos judeus e apoiador de Israel.

 

De acordo com dados do último Censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), de 2010, há no país cerca de 107.329 pessoas praticantes do judaísmo. O Rio Grande do Sul é o terceiro estado em número de adeptos, com 7.805 declarados, ficando atrás do Rio de Janeiro, com 24.451, e São Paulo, 51.050.

 

O Brasil de Fato RS, na atual edição do Especial Religiões, conversou com a palestrante e professora sobre assuntos judaicos, Ethel Scliar Cabral. abordando temas como o judaísmo, o antissemitismo e o contexto atual pelo qual perpassa o país. Gaúcha atualmente radicada em Florianópolis, Ethel está em processo de formação rabínica pelo Instituto Iberoamericano de Formação Rabínica Reformista.

 

Para ela, permitir o ressurgimento do antissemitismo e da apologia ao nazismo e a Hitler é destruir as bases da igualdade e da inclusão, alegando "falsa liberdade". "Todos, em todos os níveis, precisam se manifestar com um sonoro não contra a exclusão e a exploração: famílias, a sociedade civil organizada, o judiciário, os sistemas de educação – e a mídia, sem dúvida alguma”, ressalta.

 

"Uma das maneiras de manter o poder é eliminar todas as vozes divergentes, todo o pensamento contraditório, daí as perseguições", reflete Ethel.
(Foto: Arquivo Pessoal)

 

Ethel possui graduação em Comunicação Social pela Universidade de São Paulo e é mestre pela UFSC, Centro de Ciências Socioeconômicas. Em sua tese, analisou o mito do Golem sob o prisma da bioética. É doutora pelo Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Ciências Humanas (UFSC), onde desenvolveu pesquisa sobre a validação das informações disponibilizadas na Internet. Possui certificação pela Universidade Hebraica de Jerusalém no curso Textos, Valores e Tecnologia na Educação Judaica. Possui curso de Extensão em Estudos Judaicos pela UFRJ, além de ter participado em diferentes Congressos e Seminários relacionados com judaísmo. Autora de artigos e livros com a temática de cidadania, judaísmo e ética.

 

Profissionalmente, atua como palestrante e professora sobre assuntos judaicos, com foco prioritário em Identidade Judaica e orientação para Bar e Bat Mitzvah (maioridade religiosa judaica masculina e feminina).

 

Foi presidente da Associação Israelita Catarinense (AIC), onde atualmente é conselheira. É consultora para assuntos religiosos na União Israelita do Vale da Região do Itajaí (UNIVRI). Participa do Diálogo inter-religioso em Santa Catarina, representando o judaísmo no Núcleo de Estudos Ecumênicos e Diálogo Inter-Religioso (NEDIR), em Florianópolis. Atua no monitoramento e combate ao antissemitismo.

 

Eis a entrevista.

 

A partir da experiência que você tem com sua comunidade, orientação religiosa, qual a avaliação da situação pela qual passa o país, no contexto social e político?

 

As religiões são atos humanos e o ser humano é um ser político, no sentido amplo da palavra. Assim, a religião se insere neste contexto. Desconhecemos outros seres vivos que tenham criado estruturas religiosas! Tudo que fazemos tem um reflexo na sociedade e, simultaneamente, somos filhos de nosso tempo e desta sociedade.

 

Na comunidade onde estou inserida, percebo um retorno à espiritualidade, uma busca para ressignificar e dar um sentido à existência humana, à vida vivida cotidianamente, mesmo que o caos pareça se instalar. É um momento – não o primeiro na história da humanidade – de profundas transformações. E como todo abalo tectônico, vão emergir novas estruturas e outras desaparecerão. Estamos no olho deste furacão e, portanto, é difícil analisar com distanciamento.

 

O judaísmo, no entanto, também traz esta ferramenta reflexiva: toda a semana, no Shabat, devemos parar e olhar, analisar o que se passou antes de seguir em frente. É o aprendizado com as experiências. Não conseguiu fazer este movimento de parada, tão importante? Então, uma vez por mês, na Lua Nova, faça isto. Não conseguiu? Na virada do ano, aliás, algo que foi incorporado por outras tradições, repense, reveja, modifique e se reorganize para o novo ciclo. Além disso, a cada sete anos, uma parada maior – uma parada para regenerar a Terra, as forças de trabalho. Este ano estamos neste ano sabático.

 

Ethel Scliar e Mãe de Santo Katia Luz. (Foto: Arquivo Pessoal)

 

Claro que não é fácil realizar tal parênteses na vida moderna, que estimula o movimento, sempre o movimento, o acelerado, a rapidez. O judaísmo vai dizer: parar é fundamental, saber apreciar o cessar da agitação e contemplar o que você já realizou. Saber dar um ponto final, não deixar tudo sempre em aberto. Dar um passo, que ser ergue no ar, mas é impulsionado pelo pé que está atrás, que está no chão. Se os dois ficarem no chão, estaremos imobilizados, paralisados – e judaísmo é movimento e renovação, sem perder o contato com a realidade, com as gerações que nos antecederam e com o olhar voltado para quem virá após nós. Não podemos ignorar este compromisso intergeracional.

 

Costuma-se dizer que viver é um ato político. A religião, a espiritualidade também seria?

 

É muito interessante perceber que quando as pessoas dizem: “não me envolvo em política”, isto também é um ato político. O ser humano está condenado a ser político. A religião, utilizada para designar uma estrutura institucional, e a espiritualidade, utilizada para designar posturas individuais, também refletem isto: cosmovisões, maneiras de se viver, de entender as relações consigo mesmo e com os outros. Quando uma pessoa diz: “não tenho religião”, ela está expressando sua recusa na forma institucional, na estrutura que as diferentes religiões acabaram adquirindo. É um paralelo com a frase “não me envolvo em política.” A pergunta que fica é: Que política? Que religião?

 

 

Mergulhando mais fundo, iremos indagar: “o que significa minha existência?”, e este é o ponto em que ciência, política e religião se cruzam: são olhares e ações sobre uma mesma pergunta.

 

Qual o papel da religião e da fé diante do que estamos vivendo?

 

Religiões, ciência e política são caminhos trilhados para perguntas profundamente existenciais: De onde vim? Para onde vou? Qual o meu papel no mundo? Por que coisas ruins acontecem para pessoas boas? O que é ético? O que é público? O que é privado? Como conciliar interesses pessoais com interesses coletivos?

 

São muitas perguntas cujas respostas continuam em aberto. Quando você olha as inscrições rupestres, as impressões na Caverna das Mãos, em Santa Cruz, Argentina, com mais de 9 mil anos, você se emociona. Estas mãos nos dizem: “Eu passei aqui. Não me esqueça. Eu vivi. Eu sonhei. Eu estou junto com meus amigos e com a minha família.”

 

Em atividade lúdica no Mitzvah Day. (Foto: Arquivo Pessoal)

 

A religião, a fé e a espiritualidade são um resgate deste sentimento de pertencimento. No judaísmo, a expressão “Ledor vador”, de geração em geração, nos posiciona nesta corrente da vida, frente às minhas raízes e com olhar para os que virão depois de mim. Rab. E. E. Dessler costumava dizer: “O Tempo não passa por nós, nós é que passamos pelo tempo.” E como você está passando pelo seu tempo? Que marca de mão imprimirá, como as Mãos da Caverna em Santa Cruz, para os que virão depois? Que seja uma linda e inspiradora marca, dirá o judaísmo.

 

Qual a importância da espiritualidade na vida das pessoas?

 

A espiritualidade é esta busca pelo entendimento do Cosmos, de como cada um de nós, reconhecendo nossa infinita e microscópica existência diante do Universo, mesmo assim não nos sentimos aniquilados e percebemos que nossa energia flui e transforma o mundo – e os outros.

 

A espiritualidade garante a flexibilidade, o acolhimento – é a Lei Salomônica em ação. Com a espiritualidade reconhecemos que somos iguais na essência, mas diferentes nas manifestações desta essência. No judaísmo, a espiritualidade não é fuga nem aceitação passiva, não é comodismo: somos responsáveis pelos resultados de nossos atos e o impacto que causamos nas outras pessoas e no Planeta. É uma espiritualidade que mobiliza para a ação transformadora, para o diálogo e para o respeito aos direitos.

 

A mais antiga instituição de monitoramento dos direitos humanos – B’nai B’rith (Filhos do Pacto) – que se dedica a combater toda forma de discriminação e racismo foi fundada em 1843, por judeus. Hoje, atua em diversos países, e um de seus braços monitora e combate os discursos de ódio que se disseminam pelas redes sociais.

 

É um exemplo de espiritualidade que se concretiza em ação. Um dos símbolos do judaísmo que mostra como esta conexão é tão importante é o uso dos tefelin (filactérios). A colocação dos tefelin interliga mente (pensar), coração (sentir) e mão (agir). É este ser humano, integral e íntegro, que o judaísmo busca desenvolver e contemplar, em toda a sua potencialidade.

 

Nesse mais de um ano de pandemia, o Brasil é o segundo país com o maior número de vítimas fatais. Apesar da morte ser algo inerente a vida humana, como sua tradição religiosa lida com ela, em especial nesse momento? Há lições para tirar desta pandemia?

 

A morte é algo inerente ao processo de vida e no judaísmo temos uma visão de valorizar a vida – a vida em primeiro lugar: “Quem salva uma vida, salva a humanidade inteira.” (Talmude, Sanhedrin 37a). Fazemos tudo para preservar a vida, mas chega um momento em que é necessário dizer adeus. Cuidamos de quem se foi, cuidamos dos que ficam. O ritual do enterro, tão humano, e o período de luto são processos importantes para chorar os entes queridos, curar feridas, cicatrizar, aprender e honrar. É um processo lento e o judaísmo divide o luto em várias etapas. Inclusive, fazer uma boa ação para o morto e pelo morto é considerada uma das mais significativas formas de altruísmo, porque nada se recebe em troca: o morto não pode agradecer.

 

A morte e o luto são fronteiras que também foram invadidas pelo capitalismo: procura-se esconder a morte, morre-se solitariamente no hospital e os enterros são luxuosos. Novamente o judaísmo busca um outro olhar: originalmente, se enterravam os mortos apenas com uma mortalha (a tradição se mantém em Israel). No Brasil, o uso de caixões é obrigatório, então os judeus vão optar por caixões muito simples, singelos e frágeis: frente à morte, percebemos que somos todos iguais.

 

A história do prêmio Nobel mostra bem o quanto a morte é importante para dar sentido à vida. Todos associam Nobel com o prêmio concedido anualmente em Estocolmo aos grandes destaques na área da Medicina, Literatura, Física, Química e Paz (incluído posteriormente).

 

Poucos conhecem a história dos bastidores do Prêmio Nobel. Alfred Nobel, que deu origem ao prêmio, teve a oportunidade de descobrir o que pouca gente tem: o que as pessoas de fato pensavam sobre ele. Como? É que morreu o irmão dele – Ludwig Nobel, e os jornais da época o confundiram com Alfred. Acharam que Alfred é que tinha morrido. Publicaram então grandes manchetes: “O mercador da morte está morto.”

 

Sim, porque Alfred Nobel, o do prêmio, foi também o inventor da dinamite, utilizada para matar de forma rápida e barata centenas de pessoas. Ao ler seu obituário, o legado que deixaria e como seria lembrado, Alfred resolveu dar um novo rumo à sua vida, e deixou sua fortuna para premiar quem se destacasse em diferentes áreas. Hoje, poucos associam dinamite com Nobel, mas do prêmio, todos lembram.

 

A pandemia é como esta sacudida, que mostra o quanto a vida é frágil. Ela deveria nos fazer refletir, como Nobel refletiu: o que estou fazendo da minha vida? Estou no melhor rumo? Estou desenvolvendo o meu potencial e contribuindo para um mundo melhor?

 

Em Tel Aviv, participação em Congresso de Educação Judaica. (Foto: Arquivo Pessoal)

 

Além disso, mostrou o quão importante são estes processos de enterro e luto. Como não é possível reunir amigos e familiares para o olhar e o abraço que reconfortam, estas cicatrizes ficam abertas. Estamos reinventando rituais para suavizar tais perdas. Não é fácil: a dor, embora sempre individual e única, precisa ser compartilhada para se diluir no tempo – faz parte do pacto social, faz parte da solidariedade que tenho para com o meu semelhante, que sofre e pranteia.

 

Como a religião pode ser um caminho para a construção de uma sociedade mais justa e um planeta mais sustentável?

 

As religiões, na sua origem, nascem com esta missão: tornar o mundo mais justo, inclusivo, com respeito a todas as formas de vida, uma função ecológica. Muitas religiões, no decorrer do tempo, por questões que a análise histórica e política revelam, acabam se afastando de seus próprios fundamentos.

 

No entanto, este é o pacto: um mundo mais justo. No judaísmo, temos esta expressão: Tikum Olam (curar o mundo). Imagine o mundo fragmentado, sofrendo. Nós agimos como médicos, buscando eliminar as doenças do mundo que causam sofrimento: injustiças, miséria e fome, desigualdade, preconceitos. Como? Existem várias formas e caminhos. No judaísmo, sempre ressaltamos a importância da mitzvah – que são as ações para fazer este conserto do mundo. Existe inclusive um projeto mundial, chamado “Mitzvah Day”, muito interessante. É um esforço global para promover a justiça social. Existem outras maneiras de atuarmos realizando Tikum Olam. O estudo, o conhecimento, por exemplo, é fundamental no judaísmo e é uma destas ferramentas para o Tikum Olam.

 

Mas atenção: só o conhecimento não é suficiente. É o conhecimento articulado com sabedoria, com respeito, com amor – e com a ação, com o fazer, que trazem a justiça social. É o fazer agora, não podemos adiar.

 

Uma linda história com Rab. Eliezer, um importante sábio do período Talmúdico, mostra como é importante agir agora, não adiar.

 

Seus alunos perguntaram para ele: “Quando devemos nos conectar com nosso propósito de vida?” (teshuvá, no judaísmo). Rab. Eliezer respondeu: “Um dia antes de morrer!” Os alunos ficaram intrigados, e retrucaram: “Como isto é possível? A pessoa não sabe em que dia ela morrerá!”

 

 

Rab. Eliezer fez cara de espanto, deu um sorriso maroto e respondeu: “Vocês estão certos, a pessoa não sabe quando morrerá. Então, melhor agir hoje, não? Você deve agir hoje, caso morra amanhã! Desta forma, cumprirá sua missão de Tikum Olam, consertar o mundo, todos os dias.” (Talmude Bavli, Shabat 153a)

 

Como tu vês as perseguições a alguns padres e líderes religiosos que criticam o governo Bolsonaro? No caso do judaísmo vemos também perseguição?

 

As perseguições ocorrem por diferentes motivos, sendo o principal a manutenção do poder e do status quo. Uma das maneiras de manter o poder é eliminar todas as vozes divergentes, todo o pensamento contraditório, daí as perseguições. É muito interessante observar que o judaísmo valoriza o perguntar, valoriza a discussão que analisa divergências, sem censura. O Talmude, nossa obra de análise judaica ampla, construída em séculos, mantém em seu texto as vozes divergentes. Não temos ali somente as opiniões majoritárias, mas também as minoritárias.

 

Além disso, a busca de bodes expiatórios quando uma situação é crítica facilita o discurso populista. No caso dos judeus, a perseguição é histórica e está arraigada em vários preconceitos, rótulos que foram impostos para facilitar o discurso antissemita. Por exemplo: ataques aos judeus que são designados como ricos, exploradores, capitalistas, etc. Ao mesmo tempo, também são rotulados de comunistas, anarquistas... perceba como um mesmo termo, “judeu”, é manipulado para promover perseguições, sem ter uma conexão com os fatos. Como é possível ser ao mesmo tempo capitalista e comunista?

 

Em palestras, apresentações nos mais diferentes locais, sempre que pergunto o que as pessoas associam com o termo judeu, aparecem tais preconceitos: assassinos de Jesus, dinheiro, exploradores. Poucos lembram do judaísmo como a religião que deu o descanso semanal para o ser humano.

 

Antes do Judaísmo, não existia parada no trabalho. Éramos todos escravos do tempo. Parar é importante, é fundamental. E porque hoje a sociedade capitalista tenta extinguir esta parada? Porque, como diz Domenico de Masi, o ócio é criativo. É esta parada que permite refletir, criticar, refazer caminhos, reconectar. O poder absoluto é inimigo da criatividade e da crítica – por isso é contra a pausa, tão defendida pelo judaísmo.

 

O antissemitismo vem crescendo no mundo inteiro. No caso do Brasil, no atual governo, Jair Bolsonaro posou sorridente com deputada Beatrix von Storch (neta de Lutz Graf Schwerin von Krosigk, um ministro nazista que trabalhou durante todo o período para o ditador Adolf Hitler, do AfD, partido de extrema-direita alemão). Aliás, em 2019 Bolsonaro disse não ter 'dúvida' de que nazismo era de esquerda. Como tu vês esse movimento de antissemitismo, o que ele representa e as consequências que ele traz? Como tu vê esse momento em que nos encontramos? Ao que tu atribui a ascensão da ultradireita em países como Brasil, Hungria, Itália e outros?

 

Estamos observando um crescimento dos movimentos de direita, lembrando que existem diferentes grupos de direita e de esquerda, e toda generalização é um perigo.

 

Cada país tem seu próprio contexto histórico, cultural, econômico, o que exige um olhar diferenciado nas análises. O que podemos observar? Abriu-se a Caixa de Pandora. O ser humano vive um paradoxo contínuo: para garantir a liberdade, é preciso restringir a liberdade. É uma fronteira delicada, que necessita ser monitorada constantemente.

 

Restringir demais acaba com a liberdade, e a liberdade total também acaba com a liberdade! É um movimento que explica, em parte, o que estamos presenciando. Todo o processo civilizatório está fundamentado neste pacto: eu não posso fazer o que bem entendo, não posso fazer tudo o que desejo. Isto seria seguir os instintos! A civilização é o controle dos instintos. Não posso sair matando, atirando, dirigindo em alta velocidade e atravessando o farol vermelho porque tenho vontade e depois alegar: “é meu direito de ir e vir!” Como assim? Não, não posso ir e vir infringindo as regras da convivência social. São estas regras que permitem o processo de Tikum Olam, de justiça social, de respeito à Natureza. Este é nosso primeiro olhar sobre a religião.

 

Permitir o ressurgimento do antissemitismo, a apologia ao nazismo e a Hitler é destruir as bases da igualdade e da inclusão, alegando esta falsa “liberdade”. Todos, em todos os níveis, precisam se manifestar com um sonoro não contra a exclusão e a exploração: famílias, a sociedade civil organizada, o judiciário, os sistemas de educação – e a mídia, sem dúvida alguma. O papel do jornalista é fundamental, nem tudo é uma questão de opinião. Há diferença entre fato e opinião e transformar tudo em opinião é romper com este frágil tecido social que nos conecta.

 

O judaísmo é uma religião voltada para o outro, para o núcleo comunitário. Nada sou sozinho. A expressão “self made man” mostra bem este ponto de vista que vai na contramão do judaísmo. Como alguém “se faz sozinho”? Impossível! A roupa que você veste foi costurada por alguém, tudo que te cerca, professores, amigos, família, equipe de trabalho, a memória dos antepassados contribuiu para você ser o que é – sem eximir a sua responsabilidade pelas escolhas que você mesmo faz. Nunca estamos sozinhos - podemos sentir solidão, mas isto é outra coisa.

 

No judaísmo - e por isto é tão difícil praticar o judaísmo! – estamos na contracorrente: dizemos não ao individualismo, não ao poder sem limites, não ao querer sempre mais e mais bens materiais, como se os recursos da Natureza fossem inesgotáveis. Dizemos sim ao livre-arbítrio, à liberdade com responsabilidade, à inclusão e ao respeito. Dizemos sim à justiça social. Tikum Olam. Isto é judaísmo.

 

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