23 Setembro 2021
Mesmo na educação formal, o acesso à aprendizagem é 17% menor para as crianças de famílias mais vulneráveis.
A reportagem é publicada por EcoDebate, 22-09-2021.
Dados inéditos reunidos pelo Itaú Social expõem a desigualdade educacional entre os extremos das classes sociais no país. Estudo analisou os perfis de crianças de 0 a 14 anos, com famílias em extremos de renda no Brasil, com média per capita de R$ 145 e R$ 6.929.
Horas de leitura e brincadeiras em família é 43% superior para o segundo grupo e o acesso à internet, 148%. Em relação às horas de aprendizado a partir das atividades extracurriculares, como idiomas, artes e esportes, a diferença chega a 1.038%.
Mesmo na educação formal, o acesso à aprendizagem é 17% menor para as crianças de famílias mais vulneráveis. Atividades estruturadas nas férias escolares somariam 2.232 horas de aprendizado para o grupo mais abastado, contra zero para os que estão na base da pirâmide.
Estudante do nono ano do Ensino Fundamental de uma escola privada, Nilo é filho único de pais empresários. Quando era criança, seu pai adorava ler livros e contar histórias de heróis para o menino dormir. Sua mãe também gostava de propor novas brincadeiras para ajudar no seu desenvolvimento. Agora, com 14 anos, o adolescente concilia as aulas de inglês, natação e guitarra na sua agenda. Antes da pandemia, frequentava cinema ou teatro aos fins de semana e nas férias aproveitava uma colônia com seus amigos escoteiros.
Caíque, estudante do nono ano do Ensino Fundamental de uma escola pública, tem uma rotina bem diferente. Ele conta que a mãe nunca leu um livro para ele. Como ela trabalhava o dia todo em uma indústria, ficava bem cansada e não tinha muito tempo para brincar e dividir a atenção com os quatro filhos. Aos 14 anos, o menino queria frequentar a escolinha de futebol, mas o orçamento da família não permitia. Aulas de inglês somente na escola, uma vez por semana. Foi no cinema uma vez na vida, mas ainda não teve a chance de ver uma apresentação teatral. Nas férias, sua diversão é ficar entre os amigos e aproveitar a internet dos vizinhos, já que em sua casa não tem banda larga.
Os personagens são fictícios, mas o impacto socioeconômico na vida dos estudantes é real. O estudo inédito “Cada Hora Importa”, realizado pelo Itaú Social, demonstra que ao final do 9º ano do Ensino Fundamental, crianças como Caíque, com famílias de baixa renda, recebem 7.124 horas de aprendizado a menos do que meninas e meninos como o Nilo, que têm famílias mais abastadas. Esse período equivale a 7,9 anos de uma escola regular.
O estudo, com apoio do Plano CDE, foi baseado no parâmetro internacional “Every Hour Counts”, que defende o aprendizado fundamentado no pensamento crítico, resolução de problemas, eficiência na comunicação e conhecimentos gerais. A iniciativa tem como objetivo promover a educação integral, que considera as diferentes dimensões do sujeito, criando oportunidades que contemplem suas necessidades cognitivas, mas também físicas, sociais e emocionais.
Os pesquisadores usaram como base de cálculo cinco levantamentos com abrangência nacional para estimar as horas de aprendizado: PNAD 2019 (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios); POF 2017-2018 (Pesquisa de Orçamentos Familiares); Censo Escolar 2019; o estudo Primeiríssima Infância – Interações 2020 (Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal) e TIC Domicílios 2018.
“O estudo dá forma e quantifica a enorme desigualdade educacional no Brasil. As estimativas revelam um volume impressionante de horas adicionais de exposição a oportunidades de aprendizagem para crianças de famílias com mais recursos, em comparação às crianças de famílias de baixa renda”, aponta a superintendente do Itaú Social, Angela Dannemann. “Os dados comprovam a importância das escolas em tempo integral e do trabalho das organizações da sociedade civil, que oferecem atividades em contraturno escolar, para ampliar o acesso à arte, à cultura, aos esportes e tantos outros elementos que permitem o desenvolvimento integral e plural das crianças e adolescentes, que irão lhe conferir o exercício pleno da cidadania”, explica.
O estudo analisou os perfis de crianças de 0 a 14 anos, com famílias em extremos de renda per capita no Brasil. A amostra foi dividida em dois grupos: os que integram os 10% com menor renda (média per capita de R$ 145) e os 10% que estão entre os de maior renda (média per capita de R$ 6.929). As oportunidades de aprendizado foram separadas em cinco categorias: aprendizado em família, aprendizado via internet, educação formal, atividades extracurriculares e oportunidades nas férias.
Escola pública estadual em São Paulo. (Foto: Mastrangelo Reino/MáquinaCW | Governo do Estado de São Paulo - Flickr CC
Considerando a pesquisa “Primeiríssima Infância”, o estudo fez uma estimativa de horas usando como base a frequência de leitura e brincadeira com crianças em dias por semana. As famílias mais ricas leem duas vezes mais para suas crianças do que as mais pobres (quatro horas semanais contra duas horas). Já a diferença de horas quando falamos de brincadeiras em família é menor (seis contra cinco horas). Porém, ao somar o número de horas das duas atividades em um ano, as crianças de famílias com maior renda abrem uma frente de 43% em relação às de menor renda.
O estudo considerou a pesquisa “TIC Domicílios”, que investiga o acesso e os hábitos dos brasileiros em relação ao uso da internet, para verificar a quantidade de horas que as crianças realizam atividades, pesquisas escolares e/ou estudam por conta própria. As famílias com rendas menores têm, num período de 5 anos, apenas 560 horas de aprendizado na internet, contra 1.390 horas daquelas com maior renda, o que equivale a uma diferença de 148%.
Com os dados do PNAD e do Censo Escolar, o estudo analisou o acesso e a carga horária de escolas e creches públicas (para famílias com menor renda) e particulares (para famílias com maior renda) para calcular a média de horas de aprendizado em educação formal. Crianças mais pobres, principalmente quando estão em creches e na pré-escola, têm menos acesso ao aprendizado do que as mais ricas. Em um total de 14 anos (duração da educação infantil até a conclusão do ensino fundamental), a diferença de horas é de 11.719 versus 13.713 horas, o que corresponde a uma diferença de 17% a mais para crianças de maior renda.
A partir dos dados da POF (Pesquisa de Orçamentos Familiares), os pesquisadores verificaram os gastos extracurriculares como cursos de idiomas, artes e esportes. Considerou-se que a carga horária padrão para cada curso é de duas a seis horas por semana. As informações do POF também permitiram identificar os gastos individuais das famílias com itens de diversão fora de casa, coletando dados sobre gastos com cinema, museu e teatro.
Considerando 11 anos de atividades extracurriculares, enquanto famílias mais ricas têm uma carga média de horas em aulas de idiomas de 236 horas, as mais vulneráveis têm apenas 11 horas. Também existe um abismo na exposição às atividades relacionadas às artes. Crianças de famílias de baixa renda têm apenas 12 horas de acesso contra 287 horas para as do grupo de alta renda. As horas no cinema são bem inferiores (168 horas para famílias ricas e 66 horas para famílias pobres), assistir a uma peça teatral ou visitar um museu são atividades que não ocorrem, pelo menos de forma paga, para crianças pobres. Ao todo, as horas de aprendizado a partir das atividades extracurriculares chegam a uma diferença de 1.038%
O estudo considerou ainda as atividades estruturadas nas férias escolares, como programações em clubes, colônias de férias, excursões ou outras atividades e cursos pagos nas próprias escolas. Famílias mais ricas proporcionariam 2.232 horas a mais de aprendizado para suas crianças no acumulado de nove anos, enquanto as mais pobres não promoveram nenhuma atividade nos intervalos dos anos letivos.
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Crianças ricas têm mais de 7 mil horas de aprendizado a mais do que as de menor renda, aponta estudo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU