24 Agosto 2021
Elas compram ações para influir na estratégia das empresas e defender os direitos humanos. E as empresas as levam a sério.
A reportagem é de Mauro Meggiolaro, publicada por In Terris, 19-08-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.
“Reconhecemos seu grande trabalho em desenvolvimento de uma vacina segura e eficaz contra o Covid-19. Mas vocês também têm uma grande responsabilidade pela distribuição solidária das vacinas, especialmente para os países mais pobres. A justiça e a equidade devem ser fundamentais em vossas decisões”. Fala com a voz empolgada Cathy Rowan, conectada ao vivo à assembleia de acionistas da gigante farmacêutica Pfizer, nos Estados Unidos, no último dia 22 de abril. É ouvida por Albert Bourla, presidente e CEO da empresa.
Cathy é uma freira dominicana e sua ordem faz parte do ICCR - Centro Inter-religioso pela Responsabilidade de Empresa -, uma coalizão internacional de 300 investidores religiosos que inclui congregações, fundos de pensão, fundações e dioceses. Juntos, eles somam um patrimônio de mais de 4 trilhões de dólares.
Há 50 anos, o ICCR, com sede em Nova York, utiliza os investimentos das entidades religiosas para influenciar as estratégias de gestão das empresas e promover a justiça social. A cada ano, leva à votação mais de 300 moções nas assembleias de acionistas de grandes empresas estadunidenses: gigantes como Amazon, Apple, Disney, Facebook, Johnson & Jonhson, McDonald's ou Nike.
E muitas vezes as moções são aprovadas, porque as ordens religiosas também contam com a adesão de grandes investidores privados. Como aconteceu, por exemplo, em 2018, na assembleia da Sturm Ruger, um dos maiores fabricantes de armas dos Estados Unidos.
As irmãs acionistas conseguiram ter a aprovação de uma moção para obrigar a empresa a monitorar a violência ligada às armas que vende e desenvolver produtos mais seguros. Isso também se deve ao voto favorável da maior empresa de investimentos do mundo, a BlackRock, que decidiu apoiar o pedido do ICCR. "Eu não podia acreditar. Quando anunciaram o resultado da votação, quase caí da cadeira”, contou a irmã Judy Byron, que apresentou a moção vencedora com as irmãs dominicanas de Adrian na última assembleia de Sturm Ruger.
“Em vinte anos de luta pela mudança social esta é a nossa maior vitória”. Sturm Ruger clamou a seus acionistas para se absterem da votação da moção. Mas 69% votaram a favor, inclusive grandes investidores, preocupados com as consequências que os tiroteios em massa no âmbito escolar poderiam trazer aos lucros no longo prazo. No início de 2018, após o massacre da Parkland High School, um dos tiroteios em escolas com maior número de vítimas na história dos Estados Unidos, as irmãs começaram a comprar ações dos principais fabricantes de armas, como Sturm Ruger.
Inicialmente buscaram o diálogo com a empresa, mas a Sturm Ruger ignorou os pedidos de encontro. E então elas passaram para o plano B. Graças às suas ações ($ 2.000, o mínimo necessário), apresentaram uma moção formal, pedindo à empresa para monitorar os episódios de violência em que suas armas foram usadas, relatar suas intervenções para tornar as armas mais seguras e realizar um relatório sobre os riscos sobre o desempenho financeiro e a reputação provocados pelo uso de armas em tiroteios. A moção, surpreendentemente, foi aprovada. Um recorde que certamente será um incentivo na batalha contra as armas em todo o setor.
As primeiras intervenções do ICCR datam do início dos anos 1970, quando as ordens religiosas começaram a fazer-se ouvir nas assembleias dos gigantes estadunidenses da indústria e das finanças que investiam na África do Sul, em pleno regime de apartheid. As ordens religiosas foram historicamente as primeiras, no mundo ocidental, a questionar o impacto social dos investimentos. Nos anos vinte do século XX, os padres quacker e metodistas, numa perspectiva puritana e proibicionista, haviam estimulado o nascimento dos primeiros fundos de investimento ético, que excluíam os títulos de empresas produtoras de bebidas alcoólicas ou administradoras de casas de jogo. Seguiram-se investimentos positivos, que não se limitavam a excluir as empresas "más", mas selecionar, com base em uma série de critérios, aquelas mais atentas aos direitos humanos e ao meio ambiente.
Com o ICCR, no entanto, se inaugura uma terceira via, "mais matizada e muito mais poderosa, para tentar responder aos abusos aos direitos humanos que estavam sendo perpetrados na África do Sul". O primeiro ato dessa virada se dá com a apresentação, pela Igreja Episcopal, de uma moção, a ser votada por todos os acionistas, na assembleia da gigante automotiva General Motors, em março de 1971. Trata-se da primeira moção social jamais apresentado em nível global, com a qual se pede à empresa para encerrar suas atividades na África do Sul até o apartheid ser abolido. Nos anos seguintes, mais 200 empresas americanas sofreram pressão de acionistas pelo mesmo motivo. As moções, que nunca alcançaram mais de 20% dos votos a favor, conseguiram, no entanto, influenciar a opinião de um número crescente de acionistas. Nos anos que precederam o fim do apartheid (1994) os investimentos diretos dos Estados Unidos na África do Sul caíram 50%.
“Eu e as irmãs da minha ordem somos, em primeiro lugar, uma comunidade de professores”, explica a irmã Judy Byron. “Você lembra de sua professora do ensino fundamental, aquela que marcava com a caneta vermelha os erros de ortografia? Pois bem, desempenhamos o mesmo papel perante os conselhos de administração das empresas: lembramos aos gestores o quanto melhor poderiam fazer se fossem disciplinados o suficiente para direcionar suas energias a serviço de um bem maior”. E as empresas as levam a sério. Há alguns anos, um diretor de uma grande empresa estadunidense disse isso abertamente: "É melhor que vocês ouçam as irmãs quando elas apontam um problema porque, no espaço de 10 ou 15 anos, esse problema poderia se tornar um motivo de crise para toda a empresa".
Exemplos desse tipo não faltam até mesmo na Itália, onde uma participação acionária crítica é promovida há quase 15 anos pela Fundação Banca Etica e por ONGs como a Re:Common. Em 2010, precisamente por iniciativa da Fondazione Finanza Etica e com a delegação dos Missionários Oblatos de Maria Imaculada (membros fundadores do ICCR), participou da assembleia da Enel o bispo da Patagônia chilena, Luis Infanti De La Mora. Ele pediu para interromper o projeto de construção de cinco grandes barragens nos territórios incontaminados de sua região, o Aysén. Em 2014, após cinco anos de discursos em assembleia, em Roma, e manifestações no Chile, o governo chileno decidiu trancar o projeto e a Enel teve que desistir definitivamente. Outra vitória clara para os acionistas críticos.
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As irmãs religiosas acionistas que desafiam as multinacionais - Instituto Humanitas Unisinos - IHU