01 Julho 2021
"Quando, em pleno século XXI, insistimos numa espiritualidade da autenticidade, é porque nos deparamos ainda com situações constrangedoras que impedem o espírito humano de autodeterminação. São, infelizmente, os vários sistemas que bloqueiam e sufocam o ideal de autorrealização", escreve Ademir Guedes Azevedo, cp, missionário passionista e mestre em teologia fundamental na Pontifícia Universidade Gregoriana, Roma.
Tem-se a impressão de que há um grande pessimismo em relação a época na qual vivemos. Por um lado, tudo é demonizado e nada vale a pena, pois só o passado era a única coisa mais bela desse mundo. Lá éramos felizes e vivíamos uma vida plena. De um outro lado, crê-se que tudo da cultura hodierna deve ser afirmado sem qualquer reflexão. Usa-se pouco juízo crítico e o ser humano termina perdendo sua capacidade de discernimento.
Deve-se, contudo, apresentar o que tem de mais sutil no espírito de nossa época e tomá-lo como estilo de vida. Associando-a com a fé, tal sutileza torna-se uma espiritualidade. Charles Taylor, ao investigar o real significado da modernidade, encontra a sua originalidade numa ética da autenticidade. Para ilustrá-la deve-se partir de uma característica indelével da modernidade: o individualismo. Isso mesmo! Esse é o ponto de partida, mas é necessário desfazer-se dos preconceitos em relação a esse vocábulo, tão mal interpretado e rechaçado injustamente.
Quando a vida se desenvolvia num universo pré-moderno, o sujeito perdia-se numa coletividade marcada pelo controle dos ritmos da vida em todos os seus âmbitos. Era o grupo, a vila, a pertença religiosa, a família que tudo controlavam e determinavam os momentos relevantes que todos deveriam tomar parte. O sujeito não podia destacar-se, pois era sufocado por um coletivismo hegemônico.
Mas eis que a história e o espírito humano enveredaram por caminhos inéditos. A nível filosófico, a metafísica é contestada em seu universalismo, cedendo espaço àquilo que o sujeito pode conhecer através dos fenômenos, já filtrados por sua razão pura. O objeto de conhecimento não é mais encontrado fora do sujeito, ou seja, na natureza, pois a reflexão centra-se em torno ao próprio sujeito, o qual se torna objeto de si mesmo. Colhe-se, gradativamente, a singularidade do próprio sujeito e ele passa a ser o centro, tomando distância da natureza e desencantando-a de seus mistérios. Tudo passa a ser codificado em fórmulas precisas e a ciência cria seus métodos de indução. A verdade deve ser algo verificável, partindo da observação, não mais de deduções abstratas. E assim, o individualismo torna-se um elemento relevante em tudo à medida que o próprio sujeito ousa dar os passos rumo a conquista de sua autonomia em relação as antigas instituições que mantinham o controle da vida.
O que está por trás do individualismo que constitui a sutileza do espírito da modernidade não se trata de um subjetivismo que tudo relativiza, pondo em risco a verdade, nem tão pouco é uma degeneração dos valores humanos; não é a isso que se refere o individualismo moderno. Ao colocar ênfase na complexidade do sujeito, o espírito moderno reivindica algo que sempre esteve presente no mais profundo do ser e que nas épocas anteriores nunca foi possível conquistar, salvo raras exceções, trata-se da autorrealização da pessoa, daquilo que constitui o ideal da autenticidade. Ser você mesmo, conquistar a singularidade, fazer emergir a originalidade, ter personalidade própria. Isso é o verdadeiro sentido do individualismo moderno.
Em que sentido o ideal da autenticidade pode ser traduzido em termos de espiritualidade? A sede infinita por autorrealização a encontramos no próprio Jesus de Nazaré. Ele mesmo vive a plenitude do individualismo, pois não se deixou sufocar por família, religião, política e sociedade ou qualquer que fosse a forma de vida exterior. Emancipou-se das antigas convicções, regras, costumes e tradições que regiam o espírito de sua época. O individualismo de Jesus revela-se em sua sede inestancável em fazer a vontade do Pai e anunciar uma nova realidade de vida que Ele chamava Reino de Deus.
Os evangelhos nos dizem claramente que Jesus conquista sua singularidade não se permitindo absorver pelos escribas, fariseus, saduceus, zelotas, herodianos. Ele era livre e autônomo. Ele encontrou um impulso vital em seu próprio interior, não numa lei externa, como fazem as sociedades tradicionais de controle. Para Jesus importava a liberdade integral do ser humano. Não é essa mesma sutileza que rege o ideal de autenticidade do espírito moderno? Não é isso que nos falta redescobrir em nossas vidas que trazem as marcas indeléveis da modernidade?
O espírito humano por séculos teve que manter sufocado esse desejo de autorrealização, apesar de algumas manifestações marginais. Foram poucos, sobretudo aqueles que viveram nas sociedades pré-modernas, que conseguiram conquistar a genuinidade do individualismo ou do ideal de autenticidade. Veja-se o caso de figuras como Francisco de Assis. Para ser autônomo e emancipar sua sede de autorrealização teve que libertar-se da família e das pompas eclesiais que feriam a pobreza do Evangelho. Francisco integrou-se a tudo e a todos, vivendo em total liberdade perante sua sociedade medieval. Por outro lado, como o ideal da autenticidade ainda não havia se embrenhado no tecido social que rege a vida, pois os regimes totalitários e teocráticos ainda ditavam as regras do jogo, muitas tentativas de emancipação foram massacradas barbaramente. É o caso daqueles que foram rotulados por hereges, bruxos e tantos outros que ousaram pensar diferente perante o status quo que controlava a vida. Muitos tiveram que pagar com o próprio sangue a ousadia de tentar ouvir a voz do próprio interior, espaço onde estão os mais genuínos motivos que inspiram autorrealização, fonte autêntica de felicidade que só se sente quando cada um alcança seu individualismo perante tudo e todos.
Quando, em pleno século XXI, insistimos numa espiritualidade da autenticidade, é porque nos deparamos ainda com situações constrangedoras que impedem o espírito humano de autodeterminação. São, infelizmente, os vários sistemas que bloqueiam e sufocam o ideal de autorrealização, tais como a necropolítica, o terrível e escandaloso abismo que separa os pobres dos ricos, a economia neoliberal que escraviza o sujeito, colocando-o num coliseu de disputas nas quais só o mais forte pode “vencer”. Isso para citar algumas das muitas barreiras que impedem o indivíduo de colocar em prática seu projeto pessoal de vida. Infelizmente, o verdadeiro espírito da modernidade continua em agonia e só será pleno quando cada sujeito assumir com ousadia as implicações de uma vida toda voltada para a interioridade. Por isso, esse será sempre o nosso apelo!
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