24 Março 2021
“É preciso desmedicalizar e desmercantilizar a felicidade, que não pode ser adquirida em nenhuma farmácia, nem brota milagrosamente das páginas de qualquer manual de autoajuda. Precisamos de uma felicidade habitável, o que exige recuperar sua matriz ética”, escreve Antoni Aguiló, filósofo do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, em artigo publicado por Público, 20-03-2021. A tradução é do Cepat.
Desde 2013, a ONU reconhece o dia 20 de março como o Dia Mundial da Felicidade. Hoje em dia, a felicidade funciona como um significante vazio explorado até o extremo. Abarca significados muito diferentes, nos quais cabe praticamente de tudo: do consumo de Viagra aos livros de Paulo Coelho.
Apesar da banalização do termo, ao longo das últimas décadas o neoliberalismo impôs a crença de que a felicidade é o resultado do esforço e do talento individual, um prêmio que se obtém por ser produtivo e competitivo. É o discurso típico da meritocracia liberal, segundo a qual cada um chega até onde quer com base em sua própria competência.
Para isso, a meritocracia infunde a necessidade contínua do sempre mais: formar-se mais, trabalhar mais, demonstrar mais, ter mais seguidores nas redes sociais, etc. A felicidade fica, assim, aprisionada aos frios muros do cálculo e a eficiência. Trata-se de uma dinâmica aparentemente virtuosa, mas que é capaz de gerar muita frustração e angústia: do mesmo modo como nos regozijamos com nossos êxitos, nos culpamos por nossos fracassos.
A verdade é que o lembrete do coronavírus acerca da patente imprevisibilidade da vida desmentiu o discurso do mérito e a recompensa, em particular em um país [Espanha] que ultrapassa novamente os quatro milhões de desempregados e no qual os méritos que supostamente garantiam o êxito (títulos, idiomas, etc.) parecem não servir. Mas também é desmentido pelo fato de se viver em sociedades em que ser branco, homem e cis-heterossexual é um privilégio estrutural que confere vantagens de partida.
Além disso, a crise do coronavírus evidenciou a natureza frágil e incerta da felicidade humana, sujeita a três processos que vinham ocorrendo, mas que a pandemia intensificou. O primeiro é a medicalização da felicidade. A nova normalidade trouxe consigo uma normalidade medicalizada, na qual 55,9% dos espanhóis se sentem “muito tristes ou deprimidos”, segundo a última pesquisa do CIS [Centro de Investigações Sociológicas]. Sem falar no aumento global do risco de suicídio, durante a pandemia.
Neste contexto, depois da vacina, os antidepressivos aparecem como o grande negócio da indústria farmacêutica para combater a chamada “fadiga pandêmica”. Cumpriu-se o inquietante prognóstico sobre a felicidade quimicamente produzida, feito por Huxley em Admirável Mundo Novo.
O segundo processo é a patologização da infelicidade. Propaga-se um discurso por meio do qual se culpa ou responsabiliza a população pelos sofrimentos físicos e psíquicos provocados por overdoses de realidade. Sempre é mais fácil inventar eufemismos patologizantes, como “fadiga pandêmica”, do que reconhecer que o que deprime e adoece são os problemas de sociedades disfuncionais, com valores e prioridades invertidos. A destruição dos sistemas públicos de saúde, a precarização do trabalho e a erosão da democracia são traços da interminável pandemia neoliberal que o coronavírus apenas agravou.
O terceiro é a mercantilização da felicidade. Em momentos de grande vulnerabilidade e incerteza com o presente, a felicidade se torna uma rentável e atrativa chamada ao mercado da autoajuda. Por meio de frases motivacionais capciosas, receitas para aliviar ansiedades e apelos retóricos ao pensamento positivo, vende-se a mensagem de que qualquer pessoa pode se sentir feliz, independentemente de suas circunstâncias, como se a felicidade fosse apenas uma questão de sentimentos, um simples estado psicológico e nada mais.
É que, como lembra Franco Berardi, este sentimento imposto de felicidade é uma consequência perversa do “felicismo” que invade nossa época, o imperativo que impõe o dever permanente de demonstrar que, apesar de tudo, se é feliz, ou ao menos se parecer, como as redes sócias todos os dias se encarregam de mostrar. Nelas, mais do que vivê-la, a felicidade é exibida ou simulada.
Diante deste panorama, é preciso desmedicalizar e desmercantilizar a felicidade, que não pode ser adquirida em nenhuma farmácia, nem brota milagrosamente das páginas de qualquer manual de autoajuda. Precisamos de uma felicidade habitável, o que exige recuperar sua matriz ética.
Para os antigos filósofos gregos, a felicidade dependia do cultivo de um ethos compartilhado, daí a palavra ética. O ethos era um caráter, uma forma de ser e de se conduzir no mundo voltada para o bem viver, a autorrealização pessoal, a vida feliz, em definitivo.
Para Epicuro, por exemplo, a felicidade requeria se desprender de quatro medos ancestrais que afligem o ser humano: o medo da morte, o medo dos deuses, o medo de sofrer e o medo do futuro. Quatro medos impossíveis de superar sem a prática da amizade e sem a paz de espírito.
Os filósofos astecas, continuando com os exemplos, usavam a palavra neltiliztli para se referir a uma vida satisfatoriamente vivida, uma vida ‘enraizada’, diziam, frente aos inevitáveis escorregões da vida. Para a alcançar, não apelavam ao êxito individual, nem aos talentos mais aptos. O imprescindível para esse enraizamento era cuidar do corpo, da mente, da comunidade e da natureza.
Nos dois casos, a felicidade não é um prêmio conferido por ser brilhante, nem um sentimento subjetivo que pode ser administrado à vontade. É uma forma de vida valiosa em si mesma, um percurso repleto de alegrias e tristezas, acertos e tropeços, decepções e reconciliações, momentos frustrantes e situações reconfortantes.
Um percurso que permite aprender com cada experiência, praticar o cuidado consigo mesmo e com os outros, libertar-se de convencionalismos que oprimem, reconciliar-se com o irracional, o imprevisível e o contingente da vida, bem como reivindicar o público como espaço de laços compartilhados que abrem a possibilidade de um mundo melhor, pois como disse Audre Lorde, “sem comunidades não há libertação, não há futuro”.
Se alguém me perguntasse em que consiste uma vida feliz, diria que não há uma resposta única para esta pergunta, mas destacaria o horizonte ético para o qual apontam as sábias e inspiradoras palavras de Bessie Stanley, que em seu poema “O que é o sucesso?”, de 1904, escreve: “Alcançou o sucesso quem riu muito, com frequência, e amou muito, quem conquistou o respeito das pessoas inteligentes e o afeto das crianças, quem deixou o mundo melhor de como o encontrou, seja por uma papoula melhorada, um poema perfeito ou uma alma resgata, quem nunca careceu do apreço da beleza da Terra, quem sempre buscou o melhor nos outros e ofereceu o melhor que tinha, aquele cuja vida foi uma inspiração e cuja lembrança uma benção”. Talvez a felicidade seja isto.
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A felicidade habitável. Artigo de Antoni Aguiló - Instituto Humanitas Unisinos - IHU