19 Fevereiro 2021
“Urge contrapor as formas patriarcais de intimidade e cumplicidade masculina. Isso implica substituir a pedagogia da crueldade predominante por uma pedagogia inédita da ternura. Nós, homens, precisamos nos educar melhor no afeto, o apoio emocional, o cuidado e a empatia. Precisamos nos educar menos na fraternidade e mais na fraternura”, escreve Antoni Aguiló, filósofo do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, em artigo publicado por Público, 18-02-2021. A tradução é do Cepat.
Outro dia, um amigo gay soropositivo lamentava as dificuldades atravessadas por muitos membros do coletivo LGTBI, nestes tempos de pandemia, para forjar laços de afeto e solidariedade para além dos circuitos médicos e dos grupos de apoio entre iguais. Tudo fica complicado quando as autoridades sanitárias declaram que a melhor maneira de prevenir o contágio do coronavírus é evitar o contato físico próximo e manter a distância interpessoal.
Neste contexto, contava-me suas dificuldades pessoais para romper o silêncio, encontrar espaços emocionais seguros e pessoas com as quais possa falar sem se sentir julgado. Junto à experiência de discriminação tradicionalmente relacionada à homossexualidade e o HIV, agora, unia-se a experiência cotidiana de confinamento emocional.
Tristemente, o caso de meu amigo não é excepcional. Antes do coronavírus, a pandemia de solidão já afetava o coletivo de modo evidente. Como revela um estudo recente de Tatiana Casado e Isabel Nadal sobre o risco de suicídio em jovens LGTBI de Mallorca [Espanha], seis em cada dez entrevistados (61,7%) com menos de 25 anos, alguma vez, pensou em se suicidar.
Ainda que que a pandemia o agravou, o esfriamento da intimidade masculina não é novo. Desde sempre, o heteropatriarcado nos educou para colocar em prática a “pedagogia da crueldade”, identificado de modo brilhante por Rita Segato. Independentemente de nossos privilégios raciais, de classe e sexualidade, nós, homens, aprendemos que a masculinidade deve repelir tudo o que é considerado vulnerável e feminino, que só temos a permissão de expressar em público determinados sentimentos e emoções (e não precisamente os que tem a ver com a empatia, o carinho e o afeto, mas os relacionados ao poder, a ira, o ciúme e a concorrência), que a masculinidade se mede por nossa capacidade reprodutiva e sexual, da qual a primazia do pênis (quanto maior, melhor) é um fato incontestável.
Privilegiamos uma masculinidade fria e agressiva, uma masculinidade “tarada”, conforme a qualifica Justo Fernández, cuja tara a leva a exercer violência contra as vidas que não se encaixam em seus esquemas, como as vidas de mulheres de qualquer condição, as vidas das pessoas não brancas, consideradas racialmente inferiores, as vidas das pessoas com deficiência, que o mercado de trabalho capitalista rejeita como improdutivas e não competitivas, as vidas das pessoas precarizadas, sem poder de consumo, as vidas das pessoas trans, que não se reconhecem no binarismo homem-mulher, as vidas dos corpos soropositivos estigmatizados, etc.
As marcas desta masculinidade patriarcal estão muito presentes nos atuais códigos e rituais de fraternidade masculina. Reluzem, por exemplo, quando se guarda silêncio sobre práticas machistas ou homofóbicas compartilhadas entre amigos, quando os atos de estupro são tipificados juridicamente como um crime de abuso e não de agressão sexual, quando há um clima de tolerância em relação a comentários, chacotas e outras expressões de natureza sexista, quando determinados meios de comunicação colaboram nas campanhas propagandísticas antifeministas sobre a chamada “ideologia de gênero”, encorajados pela extrema direita e a direita mais rançosa.
Urge contrapor as formas patriarcais de intimidade e cumplicidade masculina. Isso implica substituir a pedagogia da crueldade predominante por uma pedagogia inédita da ternura. Nós, homens, precisamos nos educar melhor no afeto, o apoio emocional, o cuidado e a empatia. Precisamos nos educar menos na fraternidade e mais na “fraternura”. A fraternidade que dá asas ao machismo, a homofobia e a outras formas de opressão não é em absoluto fraterna. São preconceitos e discriminações disfarçados de fraternidade.
A fraternidade foi um dos grandes princípios da Revolução Francesa, embora não foram poucas as vozes que criticaram o caráter excludente deste ideal. Precursoras do feminismo ocidental, como Mary Wollstonecraft, denunciaram o viés patriarcal da cidadania moderna. Inclusive entre os segmentos mais revolucionários, como os jacobinos de Robespierre, não se hesitou em guilhotinar mulheres incômodas e reivindicativas como Olympe de Gouges. Não é estranho, neste sentido, que a palavra sororidade, que expressa a irmandade e a solidariedade entre mulheres, tenha entrado fortemente no léxico feminista.
A fraternura sobre a qual falo é um convite a abrir as veias da sensibilidade masculina, tomando emprestada a bela metáfora de Eduardo Galeano. Abri-las não para ver como o sangue brota, mas para renová-la. Em outras palavras, é um convite a voar livres de temores e medos rumo a novas rotas afetivas. Como disse Toni Morrison: “Se você quer voar, precisa se livrar da merda que te aflige”. Boa parte dessa merda interiorizada acaba se traduzindo em sensibilidades atrofiadas, incapazes de reconhecer erros, de desnudar medos e compartilhar fragilidades.
O problema é o que heteropatriarcado fez muito bem o seu trabalho. Isso levou a considerar a ternura um atributo próprio do feminino e do emocional, fazendo-nos acreditar que a masculinidade e a ternura se repelem mutuamente. A ternura não tem nada a ver com o bocó, o meloso e o sentimentaloide. Como afirma Luis Carlos Restrepo, trata-se de uma forma de convivência humana que se opõe à “lógica arrasadora da guerra” e ao discurso “aniquilador da diferença”. Remete a uma experiência relacionada à pele, à sensibilidade corporal, mas também a uma forma de se relacionar a partir do afeto, da proximidade e do cuidado. Por isso, a ternura é um princípio ético e político antipatriarcal.
Não são bons tempos para a ternura, em uma época de emoções congeladas, quando um só abraço pode colocar em risco a saúde. Pois bem, assim que as recomendações de evitar o contato próximo e manter a distância física perderem sua vigência, o que nos aguarda? Uma convivência na qual a democratização da ternura será uma pauta habitual ou, talvez, um cotidiano com um contato aparentemente renovado, mas que continuará sendo baseado na mesma pedagogia da crueldade?
Estamos pouco acostumados com a ternura. Quase não dispomos de espaços públicos acolhedores onde expressá-la. A política eleitoral é travada em termos de enfrentamento e estratégia, a universidade, tradicionalmente, excluiu a ternura a favor de um saber supostamente neutro, desprovido de emoções, o mercado inculca que só os mais competitivos triunfam, as redes sociais mostram que as pessoas de sucesso são as que mais fama acumulam, muitas vezes, de maneira egocêntrica e vaidosa. Talvez a questão de fundo não seja se nós, homens (e as pessoas em geral), podemos nos permitir a ternura em momentos de urgência, mas se alguma vez a permitimos.
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A fraternura. Artigo de Antoni Aguiló - Instituto Humanitas Unisinos - IHU