11 Março 2020
“Construir uma doutrina nova do partido emancipacionista, adequada aos tempos presentes, exige revisar os termos do dissenso – dado em plena segunda revolução industrial – entre bolcheviques e mencheviques. Por dois motivos fundamentais: primeiro, esta segunda revolução já expeliu do seu ventre uma terceira; e segundo, os dois modelos que dali emergiram podem ter deixado saudades, mas o mundo social que os contempla é inteiramente outro. E os vê como melancolia do tempo presente”, escreve Tarso Genro, ex-governador do Rio Grande do Sul – PT, em artigo publicado por Sul21, 08-03-2020.
Penso que devemos aproveitar o processo eleitoral também para discutir questões mais de fundo, relacionadas com os partidos políticos e a crise da democracia que estamos atravessando. Esta crise no Brasil tem peculiaridades significativas, pois estamos debaixo de um Governo tendencialmente fascista, de um lado e, de outro, as forças políticas antifascistas não conseguem formatar uma unidade de princípios sobre “O que fazer?”
A velha pergunta de Lenin tinha o sentido prático imediato: buscar um caminho organizativo para o pequeno proletariado, de um país camponês sem experiência democrática, para – quem sabe – “saltar” o período da república democrática e construir um Estado “novo tipo”, fundado na democracia direta da Comuna de Paris.
O pensamento jacobino de Lenin – arguido com um novo ponto de vista de classe – remetia para a proposta de um poder ditatorial que – em tese – na crise da democracia social, pode ser substituído pelo maquiavelismo ético de Gramsci. Antes, portanto, a força imediata como instrumento de poder para enfrentar o fascismo; agora a superioridade moral e intelectual –organizada em partido – voltada para a hegemonia que institui a força democrática na república moribunda.
A ampla maioria das grupos dirigentes das classes dominantes – de dentro ou de fora dos partidos – está unificada em torno do Governo Bolsonaro e orientam um processo de “desclassificação” da sociedade, capaz de levar à informalidade, à marginalidade e à precariedade amplos setores do mundo do trabalho.
Antes integrado no capitalismo pela via das políticas sociais de inclusão reformista, que não se opunham ao sistema, agora este “mundo” está submetidos à direção ideológica de quem os despreza e os exclui. Em tempos recentes, sob a liderança histórica de Lula, políticas sociais proporcionaram a melhoria de vida de mais de 40 milhões de brasileiros, período que se esgotou, como também se esgotam os seus instrumentos tradicionais de promoção política. Em tempos de hoje, este mundo caiu.
O partido moderno que, como forma jurídica e política de uma parte da sociedade – dentro de uma parte maior – estabelece uma identidade específica fechada e separa as suas decisões do mundo “exterior”, tende a tornar-se irrelevante. É o caso do recurso às primárias, por exemplo: com sua negação os partidos de esquerda autoisolados da sociedade em movimento –atravessada por redes de opinião no trabalho, no lazer, na educação – não compõem uma vida orgânica próxima da realidade vivida pelas pessoas comuns.
É natural que na democracia liberal-representativa as “cercas”, que se constituem para separar os partidos do todo social, façam-nos privilegiar a produção de ideias voltadas para os processos eleitorais. Isso, que é fundamental para sobrevivência digna dos partidos tradicionais – mais, ou menos progressistas – também pode lhes cegar para a decadência da política, surpreendidos que ficam pelos movimentos espontâneos de insurgência, que se dão por fora das suas orientações de luta.
Estas limitações, então, podem lhes fazer perder o sentido estratégico de ações antissistema, em defesa da democracia. A extrema direita, ora abrigada no Estado, passa a promovê-las, para a absorção fácil por aqueles que têm rancores ocultos, que emergem de décadas ou séculos de exploração e irrelevância social.
Na decadência da esfera da política, como se vê na crise do sistema liberal-representativo – em tempos de crise do processo democrático-representativo – não é estranho que eles, os partidos, se voltem – segundo a sua visão de mundo ou ideologia – para o “milicianismo” fascista, para o golpe de Estado ou para ações de insurgências segregadas, contra o sistema. Ou então que permaneçam fechados – em si mesmos – dentro das suas “cercas” burocráticas defensivas, vendo as pessoas cada vez mais alheias ao que ocorre nas suas “internas”.
Em qualquer destas hipóteses se fragilizam como partidos de “dentro” do pacto democrático, para perseguir o poder através de processos em que as eleições são o cerne vital ou passam a ser grupos políticos só de sincera oposição parlamentar. Ou pior ainda, como ocorre com a direita religiosa ou parte da centro-direita tradicional, tornam-se organizações de delinquentes em busca de dinheiro e poder, seja para pescar vantagens financeiras inscritas na legislação de financiamento dos partidos, seja para amarrar alianças com os vencedores, em cada pleito, para vender estabilidade.
Nesta crise dos partidos, no provável ocaso do sistema democrático tradicional, no qual não existe nenhuma hegemonia reformista “forte” consolidada – representada por um partido socialdemocrata tradicional – nem se formou um partido revolucionário (socialista ou comunista), capaz de promover e anunciar uma revolução contra a ordem, a extrema direita precisa apontar um inimigo para viabilizar uma ditadura ou um Governo autoritário. É a ideia do anticomunismo tardio, que grassa na extrema direita e é erguida como um fantasma, que serve apenas para unificar o ódio fascista à democracia e assim substituir um programa social unitário e antidemocrático, como aquele que foi apresentado por Mussolini no início da sua organização do seu movimento.
Nem os militares, majoritariamente, acham que há uma “ameaça” comunista real no Brasil (como não há no mundo), mas a unidade da extrema direita – pela delinquência ou pelo anticomunismo “fantasma” – tem estruturado um pensamento radical capaz de substituir um programa verdadeiro, destinado a amplos setores sociais informais e inorgânicos. E promove, ao mesmo tempo, um grupo de subintelectuais na academia, na sociedade civil e no jornalismo de opinião, cuja função é tornar as excrescências do ódio numa doutrina política palatável às classes médias aturdidas pela crise.
Construir uma doutrina nova do partido emancipacionista, adequada aos tempos presentes, exige revisar os termos do dissenso – dado em plena segunda revolução industrial – entre bolcheviques e mencheviques. Por dois motivos fundamentais: primeiro, esta segunda revolução já expeliu do seu ventre uma terceira; e segundo, os dois modelos que dali emergiram podem ter deixado saudades, mas o mundo social que os contempla é inteiramente outro. E os vê como melancolia do tempo presente.
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Robespierre-Gramsci nos tempos presentes: de novo o Partido - Instituto Humanitas Unisinos - IHU