07 Mai 2021
A "irmã coragem" que se ajoelhou na frente da polícia dos golpistas fala da tragédia de seu país. Desde muito cedo, vivemos em nossa pele a violência do conflito entre os militares e o povo Kachin. É uma guerra civil que dura desde 1948, quando Mianmar conquistou a independência.
Foto: Rei-artur | Wikimedia Commons
A reportagem é de Ann Rose Nu Tawng, publicada por La Stampa, 06-05-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.
Em nossa aldeia, como em muitas outras, os militares vinham à noite buscar os jovens para recrutá-los à força para o exército. Para escapar, nos escondíamos em espaços cavados na terra. Vivíamos em um clima de medo. Quando os soldados irrompiam em nossa aldeia, todos fugíamos, junto com o resto dos civis. As aldeias ficavam totalmente desertas.
Etnias unidas no terror. Neste momento, independentemente do pertencimento a uma determinada classe social ou a uma determinada etnia, os cidadãos sentem-se órfãos. Todos nós vivemos dia e noite com medo, nos perguntando quando seremos mortos ou tirados de nossas casas. À medida que sofremos juntos, nos tornamos mais unidos do que nunca. Nós nos amamos e nos respeitamos mais, apesar de nossas diferenças de religião, etnia e classe.
Naquele domingo, vários grupos de manifestantes passaram em frente à nossa clínica em Myitkyina, num total de cerca de mil, quase todos jovens. Eles saíram às ruas de forma pacífica, para fazer suas reivindicações, sem criar problemas. Quando eles estavam passando, eu estava cuidando de muitos pacientes em nossa clínica, que fica perto da catedral e do nosso convento: tínhamos decidido mantê-la aberta porque os hospitais estatais estão fechados devido à situação política. Eu estava com enfermeiros e médicos quando ouvi as vozes e os slogans de manifestantes contra os militares.
Depois, a certa altura, chegaram os caminhões de soldados e da polícia; os policiais pularam de seus veículos e imediatamente atiraram e começaram a atingir as pessoas com cassetetes e estilingues. Duas pedras também me atingiram. Gritei para os manifestantes entrarem na clínica, o que muitos fizeram. Aí fui na frente da polícia e vendo os manifestantes que estavam em perigo, resolvi protegê-los, mesmo arriscando a vida. Fui até os policiais e supliquei, implorando que não atirassem em civis, que não os espancassem com os tacos ou os machucassem com estilingues. Pela tensão e emoção, eu chorava e gritava. Ajoelhei-me e levantei meus braços para o céu, invocando a ajuda do Senhor. “Se vocês querem bater nas pessoas ou atirar nos manifestantes, façam isso comigo, porque não consigo suportar que sofram pela violência. Matem a mim, não as pessoas”. Eu disse isso depois de ver o que havia acontecido em outras cidades, em Yangon, Mandalay e Naypyidaw, onde muitos foram massacrados como animais.
Os policiais chegaram perto da catedral de Myitkyina enquanto outras manifestações pacíficas aconteciam na área. Fui até eles para implorar que não usassem de violência. Dois de seus homens se ajoelharam e me disseram que não tinham intenção de se comportar de maneira violenta, mas que tinham que obedecer a seus chefes. Respondi que os manifestantes só queriam marchar em paz.
Foto: Sam Cooley / Wikimedia Commonns | Imagem: Catedral de Myitkyina
Assim, decidi não me mexer até que eles tivessem partido. Minha superiora e o bispo (D. Francis Daw Tang) também vieram falar comigo para me convencer a voltar para dentro, mas fiquei lá por três-quatro horas, até que um jovem foi atingido na cabeça. Então, alguns de seus companheiros se refugiaram na catedral, outros fugiram. Tentamos transportar o ferido para nossa clínica, que fica bem ao lado, mas não havia mais nada a fazer. Ele morreu e outra pessoa, de 57 anos, foi morta naquele dia.
Os jovens estão sempre na linha de frente durante os protestos, enfrentam os militares, o gás lacrimogêneo e as balas. Eles avançam com coragem, animados apenas pela esperança de mudança. Eles estão cientes de que se o protesto não tiver resultado, tudo voltará como era no passado. É por isso que estão dispostos a dar a vida, para dar ao seu país um futuro melhor. Admiro esses jovens pela coragem, eles se entregam totalmente.
Todos juntos podem vencer. Entre a polícia e os militares também há gente boa. Eu mesmo pude comprovar isso. A questão é que, embora estejam abertos ao diálogo, seus líderes não o aceitam. Pessoalmente, tenho esperança de que o Movimento de Desobediência Civil seja capaz de parar pacificamente a violência dos militares. Alcançar a vitória final não será fácil, muitos foram mortos e muitos outros feridos ou torturados. Mas se estivermos todos juntos, podemos vencer!
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Mianmar, dia e noite nos perguntamos quando virão nos tirar de nossas casas - Instituto Humanitas Unisinos - IHU