16 Abril 2021
"Defender os comuns tem muito a ver com o fato de torná-los visíveis e de não esperar a tragédia de seu desaparecimento para apreciá-los. O bem comum dá um prêmio em dobro àquele que o descobre e conhece: primeiro, a pessoa aprende que há muita inteligência por trás dessas comunidades ignoradas e, depois, verifica que existem diferentes maneiras de fazer as coisas. Reconhecê-los nos traz sabedoria e nos dá esperança. Nos ensina que outro mundo é possível. Com os comuns você aprende a pensar in loco, em casos reais, com interações tácitas, com erros de grafia e, muitas vezes, entre as ruínas.", escreve Antonio Lafuente, físico, pesquisador do Centro de Ciências Humanas e Sociais do Conselho Superior de Investigações Científicas (CSIC) da Espanha, na área de estudos da ciência, em artigo publicado por Outras Palavras, 14-04-2021. A tradução é de Simone Paz.
Falar bem do comum sempre foi estranho. A suspeita de que a cultura era mais uma impostura dos nossos tempos aflorou somente na véspera de maio de 68. É que ser culto, pelo menos desde o Iluminismo, sempre foi uma forma de sair da caverna, de sacudir a palha dos cabelos e sair da floresta primitiva. A escola, finalmente, institucionalizou a promessa de nos tirar do comum ou, em outras palavras, desse perfil grosseiro, desleixado e bárbaro. Ser civilizado era o equivalente a fugir do comum.
Todo bom cidadão tinha de conhecer e respeitar as leis, o patrimônio e a gramática. Por isso íamos à escola, para nos livrarmos de toda forma de autoridade não certificada e aprendermos a valorizar aquelas mais canônicas. Ser livre combinava com ser ortodoxo. Ser culto era condição antagônica de ser comum.
Ser comum era como viver do lado de fora dos muros: representava uma ameaça e nos lembrava da nossa origem primitiva. Sentir pena ou raiva por aqueles excluídos, com deficiências ou esquecidos, podia ser uma forma de estigmatizar as próprias pessoas que queríamos salvar de sua condição primitiva. Já Calibã, como nos contou Shakespeare, lamentava amargamente o paternalismo colonial de querer impor aos povos originários uma educação que dizia pretender emancipá-los enquanto, com o mesmo gesto, lhes negava a condição humana. Eles representavam tudo aquilo do que era preciso fugir. E esse parecia ser o destino dos comuns: se dissolver, desaparecer, despossuir-se.
Mas cinquenta anos atrás, lá pelos anos 60, alguma coisa mudou. Muitas pessoas começaram a enxergar excesso de artifícios e almíscar e abundância de pedantismo no ser culto. Os dadaístas de algumas décadas antes haviam fracassado em seu ataque à arte, mas, em troca, conseguiram ampliar a noção da própria arte para incluir o cotidiano e o comunitário. Tanto que o movimento Fluxus transformou o lema “Somos todos artistas!” em uma proclamação de uma época que ainda estamos elucidando. As cenas punk e hippie fizeram seu trabalho contra a bastilha gramatical, a esquerda caviar e a cultura superior.
Em contraposição, o comum parecia muito autêntico, mais verdadeiro e menos embusteiro. É por isso que, desde então, o moderno também poderia ser da rua, comum e simples. O mundano estava na moda e tinha um caráter moral. Ser mundano era uma forma legítima de estar no mundo: uma maneira mais direta, cordial e transparente de nos relacionarmos. Ser civilizado equivale a ser chato ou entediante. O comum emerge, assim, cheio de valores que garantem uma boa vida, que não renuncia ao gozo nem ao contato com todos.
Os comuns habitavam a realidade concreta e ousavam ser diferentes, eram capazes de questionar os cânones e, consequentemente, de politizar o ordinário. Eram realistas e enfrentavam as coisas. Pareciam mais sábios. Havia uma inteligência a ser descoberta na condição do comum. No limite, ser sábio — e não culto — implicava ser modesto, partícipe e empático.
Os comuns mobilizaram práticas que podiam ser vistas com admiração. Para eles, parecia que ser solidários, cúmplices e resilientes era fácil. Tinham facilidade para a vida coletiva. Se beneficiavam muito das suas habilidades manuais, aproveitavam melhor seus recursos escassos, compartilhavam mais as suas alegrias e, enfim, pareciam felizes em meio a tantos obstáculos.
A literatura sobre catástrofes nos dá centenas de exemplos que comprovam como é fácil nos organizarmos, demonstrar solidariedade, distribuir tarefas e enfrentar as dificuldades com responsabilidade. A literatura sobre cuidados também sabe valorizar práticas colaborativas e empáticas que eram negligenciadas até muito recentemente. Estudiosos da vida nas comunidades descobriram há muito tempo o valor do urbanismo kitsch e da autofabricação como prática cultural. As abordagens mais recentes à inovação frugal, também conhecidas como Jugaad Innovation, trazem os pobres, os excluídos e os comuns como pessoas que, tendo de inventar a vida dia após dia, representam uma fonte inesgotável e paradigmática de criatividade.
Elinor Ostrom ganhou o Prêmio Nobel de Economia (2009) pensando nos bens comuns. Ela elaborou todo um maquinário conceitual baseado em uma ideia muito simples e que, assim como todas as coisas interessantes, não são binárias nem dicotômicas, mas “trices” (triplas e doces, como dizia César Vallejo): um bem comum é uma coisa, é uma comunidade que sustenta e é sustentada pelo bem e é um protocolo que regula as relações das pessoas com os recursos. Portanto, além dos bens comuns serem inimagináveis enquanto não fosse possível pensar em sua comunidade, eles também eram inalienáveis. Duas consequências radicais e, para muitos, revolucionárias.
Vamos nos concentrar nessa noção de protocolo que mencionei. Um protocolo é um conjunto de regras ou convenções que servem para administrar conflitos e garantir a estabilidade da comunidade, ou seja, do recurso que chamamos de bem comum. Essas regras dão sentido àquilo que é realizado e também limitam o comportamento individual ou, em outras palavras, criam as condições para a sobrevivência da comunidade. Em suma, um bem comum é apenas uma forma específica de administrar as coisas. Ele nasce e é preservado quando gerido de outra maneira. Os bens comuns são, então, produzidos todos os dias.
No entorno desses bens pode haver impérios, máfias, corporações, concorrentes ou seitas. Os bens comuns não estão isolados do mundo. Não são bolhas extraterrestres. A sobrevivência nunca foi fácil para eles, porque as fronteiras são sempre permeáveis ao contágio, ao contrabando e à rivalidade. Relacionar-se com esses mundos hostis requer muita inteligência e muita fluidez. É necessário estar atento a tudo aquilo que pode representar uma ameaça e analisar os sinais, documentar os riscos, comparar as discrepâncias, priorizar as opções, executar os acordos e avaliar as consequências. Tudo isso também deve ser feito com uma administração dos tempos, sem precipitação e com agilidade. Ser comum, então, habitar um bem comum, exige muito conhecimento comprovado. Ostrom nos ensinou a admirar a criatividade coletiva e a descobrir a sabedoria do comum.
Ostrom fez muitas coisas incríveis. Mostrou que os bens comuns não eram uma relíquia do passado, nem um resíduo resistente à modernidade. Ela nos ensinou que os comuns e o bem comum são modernos, estão entre nós e podem ser produtivos, eficientes ou rentáveis, além de cuidar da comunidade. Eles nem sempre têm sucesso nessa missão. Não é fácil. Mas eles nunca são um milagre: são fruto da inteligência humana. Para ser dos comuns, você deve ser empático, colaborativo e honesto, mas também aberto, experimental e recursivo: demonstrando sua capacidade de tomar as decisões certas todo dia e entre todas e todos.
Um bem comum é uma forma única e inovadora de cuidar da infraestrutura, sem descuidar dos resultados. Não temos outra saída: ou os bens comuns são sustentáveis, ou desaparecem. Quando o ambiente é hostil, ou você cria as condições para a tomada de decisões certas, ou o bem comum desaparece e, junto com ele, a própria comunidade. Sim, o que queremos dizer é que o bem comum deveria funcionar como um laboratório cidadão.
Comum, comuns, comunal, comunitário — são termos que mantêm uma estreita relação de vizinhança com palavras que já encontramos antes, como simples, mundano ou cotidiano. São palavras que confraternizam. E que também sororizam, pois é verdade que descrevem espaços ignorados, precários e femininos. Os comuns costumam ser identificados como vulneráveis, invisíveis e desprezados. Porém, meu ponto de vista é outro. Podem até ser vítimas, mas também são sábias, têm destreza e geram a vida. E mencionei-as no feminino para dizer que muitas, como dizia Hélène Cixious, escrevem com leite branco: fazem sem impor, comunicam-se por códigos secretos e sabem mover-se sob o radar de forma sigilosa.
Defender os comuns tem muito a ver com o fato de torná-los visíveis e de não esperar a tragédia de seu desaparecimento para apreciá-los. O bem comum dá um prêmio em dobro àquele que o descobre e conhece: primeiro, a pessoa aprende que há muita inteligência por trás dessas comunidades ignoradas e, depois, verifica que existem diferentes maneiras de fazer as coisas. Reconhecê-los nos traz sabedoria e nos dá esperança. Nos ensina que outro mundo é possível. Com os comuns você aprende a pensar in loco, em casos reais, com interações tácitas, com erros de grafia e, muitas vezes, entre as ruínas.
Os tempos pandêmicos corroboraram que quem previa o Antropoceno não era louco, pois já habitamos num mundo sem refúgios. Um mundo que precisará aprender muito com as pessoas comuns. Teremos que redescobrir aquela sabedoria que os tornou adaptáveis, frugais e confiantes. Há muitos exemplos para entender do que estamos falando. O Alcoólicos Anônimos são o primeiro deles, e trazemos seu exemplo para este texto como um modelo de organização eficiente, capaz de enfrentar um problema muito difícil e de encontrar soluções que sempre desafiaram os especialistas. Em 2016, Alejandro Aravena ganhou o Prêmio Pritzker, o Nobel da Arquitetura, por uma proposta que era social e que, apesar disso, não era suja, cafona nem especulativa. Seu projeto consistia em projetar casas que, a partir de um módulo inicial, pudessem evoluir e crescer por autoconstrução, de acordo com as necessidades do usuário.
Aravena não imaginava a arquitetura como forma de corrigir as práticas populares, e sim, de valorizá-las. Pois até cem anos atrás, o número de pessoas que haviam conhecido um médico, um arquiteto ou um advogado era ridículo e, no entanto, isso não nos impediu de resolver as nossas questões sanitárias, habitacionais ou de conflito. Tínhamos que resolver nossos problemas sem os especialistas. O mundo, então, como um todo, foi e continua sendo uma produção amadora.
Não se desesperem, pois nunca vamos dizer que há especialistas demais. Pelo contrário, não é que dispensemos talento, mas que faltam muitos atores. Claro que precisamos de conhecimento especializado! Ele nunca estará de sobra! Mas isso dentro de um novo regime de distribuição de conhecimento onde não poderemos mais nos dar ao luxo de desprezar o experiencial, o tácito e o afetivo. Não interessa se narrativas de perdedores, elas são práticas necessárias e urgentes. Todos temos a oportunidade de tornar visível sua presença cotidiana em nossas vidas.
Mas só criar novas histórias não basta, também precisaremos de métricas diferentes, porque não medimos o que valorizamos, valorizamos o que medimos. Para ilustrar isso, nenhum exemplo é mais poderoso do que a evolução: um processo que fez do acaso motor de mudança; da gambiarra, que mistura e gera heterogeneidade, ferramenta essencial; e do altruísmo, a bússola que orientou os processos. Em suma, a vida nunca teria surgido se tivesse sido confiada a especialistas em planejamento estratégico. Também teríamos ficado sem blues, jazz e rock. E não conheceríamos Wikipedia, Arduino ou GitHub.
Para produzir resultados diferentes, precisamos fazer coisas diferentes. Sabemos disso — e é por isso que outra aritmética se torna urgente: uma que seja capaz de somar peras e maçãs. E também precisamos de outra engenharia que tenha vontade de reinventar a roda, porque embora pareça a mesma coisa, ela nasceu em outro contexto, com questões diferentes e atores diferentes. Que funcione igualmente não significa que seja a mesma coisa. Não importa qual ontologia irá provar isso, ou qual bibliotecário irá catalogá-la, ou qual arquivo vai registrá-la: são rodas diferentes e temos que aprender a proclamar esse fato sem tabus ou julgamentos sumários. Os novos engenheiros não farão piadas idiotas sobre as coisas que seus avós ignoravam. Reunir os códigos heterogêneos e hibridizantes, fazer colagens e misturar linhagens será a norma. Isabel Stengers chama isso de cosmopolítica. Os novos aritméticos terão consciência de quão diferentes somos e não vão tornar essa diferença invisível invocando a saga de Euclides ou Arquimedes.
O mundo que habitamos está repleto de bens comuns criados por todos para tornar a vida coletiva viável. Linguagem, gastronomia e festas são exemplos que poderiam compartilhar do mesmo pedestal reservado às criações coletivas, junto com as sementes, a tabuada e as brincadeiras infantis. A justiça, a palavra divina e a ciência, além das montanhas, florestas e luz do sol, também são bens comuns. O ângulo de rotação do eixo da Terra, o genoma humano e a tabela periódica dos elementos são bens comuns que possuem uma característica única: para reivindicá-los, eles devem primeiro ser descobertos. Se os bens comuns criados pelos humanos em seu trânsito pelo planeta são abundantes, os bens descobertos e por descobrir são ainda mais numerosos.
Se os bens comuns invisíveis são importantes, os bens comuns emergentes nos empurram em direção a um novo pacto social pela ciência. A qualidade do ar que respiramos, dos alimentos que ingerimos ou da água que bebemos depende de práticas regulatórias que são de responsabilidade do setor público. De certa forma, a água, o ar ou os peixes são produções humanas — na medida em que temos que protegê-los de sua degradação por meio de regulamentos, cuja elaboração requer enormes conhecimentos de biologia, química ou oceanografia, além de infraestruturas caras para armazenar, gerenciar e compartilhar dados. Dizer que o ar é um bem comum não diz muito, pois para reivindicá-lo é preciso conhecê-lo e estarmos atentos, por meio de sensores de alerta, a tudo que possa ameaçá-lo desde cedo. Essa é função dos movimentos sociais e por isso temos com eles uma grande e urgente dívida no reconhecimento de seu papel civilizatório.
A filosofia não será suficiente para defender os bens comuns, vamos precisar de muita engenharia e experimentação. Os bens comuns precisam de laboratórios. A ética não abunda, teremos de criá-la com as mãos e não com palavras, com mais experimentos do que discursos. Não existem muitos princípios, mas teremos que entender os padrões que regulam sistemas complexos, dispositivos epigenéticos e a parafernália de soluções evolutivas ou imunológicas. Quando falamos dos bens comuns do dia a dia, também quisemos destacar a importância de termos informações comprovadas, antes de tomar decisões. Dissemos, há alguns parágrafos, que esses conhecimentos não são um luxo, pois a própria sobrevivência da comunidade depende deles. Os bens comuns eram laboratórios cidadãos, e hoje vemos como os bens emergentes também demandam conhecimentos sofisticados, não apenas comprovados, mas atualizados.
Descrevemos duas formas emergentes de bens comuns. Aqueles que começamos a valorizar quando seu processo de degradação é iniciado, como o ar poluído ou a água comercializada. São bens cuja degradação cria uma comunidade de pessoas afetadas que é forçada a se mobilizar para proteger suas vidas. Também são emergentes os bens que surgem de descobertas científicas, realizadas com recursos públicos, e que são privatizadas por meio do uso abusivo das leis de propriedade intelectual. Assim, temos centenas de exemplos que transformaram uma descoberta em propriedade privada, em vez de invenção — como era o caso antes do Bay-Dole Act (1980). Você imagina um mundo onde o teorema de Pitágoras, a influência de uma mutação genética na saúde ou a fórmula química da água não fossem bens comuns? Esse é o mundo no qual vivemos hoje e que todos temos que lutar para reverter.
Agora que tantos patrimônios, naturais ou históricos, populares ou sofisticados, contam com uma comunidade de interessados disposta a defendê-los, cabe a todos nós nos organizarmos em algumas dessas lutas para torná-las mais fortes. Há muitas formas de se posicionar no mundo dos comuns. Nem tudo tem que ser obrigatoriamente politizado. O Parlamento não é o único espaço para defendê-los. Existem outras maneiras de tentar. Podemos aprender com os feminismos e tentar mudar o mundo sem tomar o poder.
Precisamos trabalhar menos do ponto de vista antagônico e mais do lugar do cuidado. A resposta de como lutar é fácil: tornar visível o enorme esforço que a diferença exige. Evidenciar aquela inteligência que sustenta o bem comum. Falar mais sobre a capacidade de inovação, organização e adaptação que comprova a existência de bens comuns. Adiar temporariamente as análises agonizantes e dar uma chance aos relatos poéticos: ficar menos no confronto e mais na criação.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Para uma cartografia afetiva dos Comuns - Instituto Humanitas Unisinos - IHU