09 Novembro 2020
“Elinor Ostrom ganhou um Nobel de Economia por descrever que, ao contrário do que alguns gritavam aos quatro ventos, as pessoas são capazes de se organizar e administrar de forma responsável os recursos dos quais dependem. Redescobrir esta verdade e começar a agir em consequência deveria ser uma das chaves a levarmos em conta na hora de enfrentarmos os desafios ecossociais que temos pela frente”, escreve Gabriela Vázquez, integrante da organização espanhola Ecologistas en Acción, em artigo publicado por El Salto, 06-11-2020. A tradução é do Cepat.
Em 1968, um senhor chamado Garrett Hardin publicou na Science um artigo intitulado “A tragédia dos comuns”, que significou um argumento poderosíssimo para defender do ponto de vista econômico-neoliberal a privatização dos recursos naturais. Naquele momento, o projeto de acumulação capitalista estava ótimo de saúde e em funcionamento há tempo, mas digamos que isto não caiu mal para a reviravolta que faria nas seguintes décadas.
A teoria de Hardin era a seguinte: quando um recurso natural – em seu exemplo, os pastos da Inglaterra – está aberto para que todos o utilizem, cada indivíduo o explorará ao máximo, mesmo que saiba que isso provoca a sua degradação e destruição, porque se não age assim, outro agirá. Hardin chama isto de tragédia, não só porque o resultado é indesejável, mas porque o considera inevitável.
Esta teoria o favoreceu bastante. De fato, se você começa a buscar, pode encontrar esta argumentação por trás de uma grande quantidade de coisas que nos acontecem inclusive hoje, e que não costumam estar relacionadas a qual pastagem você leva suas vacas. Este “eu gostaria de agir bem, mas não serei o mais tonto” é um elemento chave de nosso paradigma vital, presente tanto nos Tratados de Livre Comércio, como nos anúncios da Media Markt.
Mas a teoria de Hardin continha várias premissas que não tinham razão para estar certas. A primeira, que todos têm como objetivo principal maximizar o lucro econômico; a segunda, que os usuários de um mesmo recurso não se comunicam entre eles; a terceira, que estes recursos sempre estão abertos a qualquer indivíduo indiscriminadamente.
O que fez Ostrom? Escrever um calhamaço e reunir um montão de experiências do mundo todo nas quais isto não acontecia assim. Isto não significava que a tragédia dos comuns não ocorresse (de fato, ei! Estamos nos afogando na tragédia dos comuns), mas que não havia motivos para ser assim. E descrever os fatores que faziam com que não acontecesse.
Um dos exemplos que Ostrom analisa é o de uma comunidade pesqueira em Alanya, Turquia. Esta comunidade compartilha um recurso de uso comum, um local de pesca do qual dependem para a sua subsistência e que, caso seja sobre-explorado, se degradará prejudicando a todos. Neste caso, os pescadores haviam acordado conjuntamente um sistema de sorteios e rodízios, cujo cumprimento podiam controlar sozinhos. Isto permitia limitar os níveis de pesca e evitar a degradação dos ecossistemas dos quais dependiam.
(Elinor foi entrevistar estas pessoas nos anos 1970. Em 2020, ao escrever este artigo fui ver o que havia acontecido com eles, e pelo que parece felizmente continuam bem, embora o local de pesca esteja sendo afetado pelas redes de arrasto em zonas próximas, mas que não são a sua, o que renderia outro artigo).
Tal tipo de gestão se chama gestão comunal – embora existam outros tipos de comuns que não têm exatamente estas características – e é aplicado desde que o mundo é mundo nas pescarias, pastos, matas e fontes de água de todo o planeta. Ostrom não era economista, nem bióloga, mas cientista política, estudava tais tipos de acordos coletivos e se dedicou a reuni-los e sistematizá-los. Detectou oito características naqueles que funcionavam melhor (copio impunemente da Wikipédia):
1. Limites claramente definidos (exclusão efetiva de terceiros não envolvidos);
2. Regras de uso e desfrute dos recursos comuns adaptadas às condições locais;
3. Acordos coletivos que permitam que os usuários participem nos processos de decisão;
4. Controle efetivo por controladores que façam parte da comunidade ou que respondam por ela;
5. Escala progressiva de sanções para os usuários que transgridam as regras da comunidade;
6. Mecanismos de resolução de conflitos baratos e de fácil acesso;
7. Autogestão da comunidade, reconhecida pelas autoridades de instâncias superiores;
8. No caso de grandes recursos comuns, organização em vários níveis, com pequenas comunidades locais na base.
Poderíamos dizer que há três modelos de gestão:
1. A gestão privada (dividimos o recurso e cada um se encarrega de explorar/administrar/cuidar de sua parte até que morra, venda ou deixe de herança);
2. A gestão governamental (uma instituição que implemente leis para regular o uso do recurso ou que seja diretamente quem o administre);
3. A gestão comunal (modelos parecidos ao dos pescadores, embora não só).
Buscar aplicar a gestão privada para tudo é ruim. As leis e a regulamentação governamental também podem dar errado ou não ser o mais eficiente (por exemplo, no caso dos pescadores, era mais fácil que eles próprios controlassem o cumprimento dos acordos do que enviar fiscais ou a polícia). E a gestão comunal, a autogestão pela própria comunidade que usa o recurso, também pode não funcionar. É por isso que Ostrom fala em “armadilha da panaceia”. Não podemos pensar que há um modelo de gestão universal aplicável a todos os casos e recursos, não há uma fórmula mágica, mas é necessário analisar cada situação e assumir a diversidade ecológica e social, para nos adaptar a ela.
Às vezes, será necessário um modelo de privatização. Às vezes, que um organismo público assuma o controle. Às vezes, um sistema de governança em vários níveis que combine diferentes fórmulas. Os sistemas de organização política são complexos e, ainda que isto seja óbvio, parece que como sociedade continuamos agindo como se não fossem. De fato, muitos dos problemas ecológicos que buscamos resolver com pesquisa e desenvolvimento tecnológico, certamente seriam melhor resolvidos com pesquisa e desenvolvimento político e social, mas estamos em 2020 e, às vezes, parece que isto continua sendo impensável.
Elinor Ostrom ganhou um Nobel de Economia por descrever que, ao contrário do que alguns gritavam aos quatro ventos, as pessoas são capazes de se organizar e administrar de forma responsável os recursos dos quais dependem. Redescobrir esta verdade e começar a agir em consequência deveria ser uma das chaves a levarmos em conta na hora de enfrentarmos os desafios ecossociais que temos pela frente.
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Elinor Ostrom: os comuns, nem tragédia, nem panaceia - Instituto Humanitas Unisinos - IHU