Através da Economia de Francisco, “o Papa assume uma transcendência institucional e um papel civilizatório” e nos convida a “corrigir os modelos de crescimento excludentes e ambientalmente insustentáveis ora praticados”, dizem os economistas
O encontro “Economia de Francisco”, a ser realizado online entre os dias 19 e 21 de novembro de 2020, é uma iniciativa “bastante oportuna, tendo em vista a urgente necessidade de criar e fortalecer repertórios e narrativas que se contraponham ao mainstream, que vem naturalizando processos como a acelerada devastação ambiental, o aumento da desigualdade e a exclusão de vastos contingentes populacionais da cobertura de sistemas de seguridade social e de condições mínimas de vida”, diz Neusa Serra, professora de Políticas Públicas e Engenharia Ambiental da Universidade Federal do ABC - UFABC à IHU On-Line.
Para Vitor Hugo Tonin, doutorando em Economia na Universidade de Campinas - Unicamp, a convocatória do Papa Francisco para nos fazer refletir sobre outro modelo econômico “pode dar uma grande ajuda na articulação, visibilização e união” de “iniciativas econômicas populares, solidárias, comunitárias que, por estarem isoladas, fragmentadas, invisibilizadas, acabam se fragilizando e de uma forma ou outra se subordinando à hegemonia dos grandes monopólios”.
Nesta entrevista, concedida por e-mail, eles refletem sobre a necessidade de compreender a economia de forma interdisciplinar, porque, segundo Neusa, “as grandes questões hoje colocadas à humanidade”, entre elas as desigualdades e o aquecimento global, “envolvem múltiplas dimensões e requerem, evidentemente, o emprego de variado ferramental analítico para serem melhor conhecidas e, na medida do possível, equacionadas e satisfatoriamente encaminhadas”. A perspectiva da transdisciplinaridade, acentua, “é destacada claramente no chamamento do Papa para o evento em Assis, quando diz: ‘Hoje, mais do que nunca, tudo está intimamente ligado e a salvaguarda do meio ambiente não pode ser separada da justiça em relação aos pobres, nem da solução dos problemas estruturais da economia mundial’”.
Tonin também enfatiza o discurso do Papa Francisco por uma economia a favor da vida, que “recoloca a economia como um instrumento cuja finalidade não está em si mesma, mas além dela e, portanto, seus objetivos, metas, sua ética, devem ser procurados fora dela”, e nos faz um “chamado à ação”. “A convocatória nos chama a refletir para agir. Para criar, exercer e praticar uma nova economia e não somente para criticar a existente”, diz.
Neusa Serra é graduada em Economia pela Faculdade Estadual de Ciências Econômicas de Apucarana, com mestrado em Economia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC-SP e doutorado em Engenharia pela Escola Politécnica da Universidade de São Paulo - USP. Leciona na Universidade Federal do ABC, integrando o Centro de Engenharia, Modelagem e Ciências Sociais Aplicadas.
Vitor Hugo Tonin é graduado em Ciências Econômicas pela Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC, com mestrado em Arquitetura, Urbanismo e História da Cidade pela UFSC. Atualmente é doutorando em Desenvolvimento Econômico na Unicamp.
IHU On-Line - Qual a importância de compreender a economia como um campo transdisciplinar?
Neusa Serra - As grandes questões hoje colocadas à humanidade envolvem múltiplas dimensões e requerem, evidentemente, o emprego de variado ferramental analítico para serem melhor conhecidas e, na medida do possível, equacionadas e satisfatoriamente encaminhadas. Esse é o caso, por exemplo, de fenômenos como a desigualdade e o aquecimento global. A compreensão da questão da desigualdade não se restringe à esfera econômica, assim como as pesquisas em torno do aquecimento global abarcam várias áreas do conhecimento, incluindo as ciências humanas e sociais, em especial no que se refere a impactos e ao potencial de governança global para o encaminhamento dos acordos firmados.
Essa “transdisciplinaridade” é destacada claramente no chamamento do Papa para o evento em Assis, quando diz: “Hoje, mais do que nunca, tudo está intimamente ligado e a salvaguarda do meio ambiente não pode ser separada da justiça em relação aos pobres, nem da solução dos problemas estruturais da economia mundial”.
A importância de se pensar a economia como um campo interdisciplinar decorre exatamente da multiplicidade de aspectos presentes em cada tema. Do ponto de vista pedagógico me parece muito mais producente partir de problemas, como sugeriu o professor Ladislau Dowbor em entrevista ao IHU, e a partir deles acessar os campos de conhecimento e ferramentas mais adequadas do que se restringir à ótica compartimentalizada da nossa estrutura disciplinar.
Vitor Hugo Tonin - A economia foi “disciplinada” somente no final do século XIX com a chamada “revolução marginalista neoclássica” e sua hegemonia acadêmica, que por sua vez é resultado da dominação mundial do capitalismo industrial. Até então a economia não era tratada como uma disciplina à parte das Ciências Humanas. Havia uma disputa, desde a filosofia clássica, se a economia deveria ser tratada como oikonomia ou crematística. Pode-se dizer que, até a revolução marginalista, a oikonomia venceu.
Adam Smith era um filósofo moral e estabeleceu parte dos pressupostos da economia política adotada por [David] Ricardo, que depois foi superado criticamente por Marx, por exemplo. Nenhum deles considerava a economia uma ciência fechada ou um fim em si, mas um meio para atingir a riqueza e o bem-estar nacional, no caso dos dois primeiros, e para a emancipação humana, no caso do último. Então, pode se dizer que no último século e meio houve uma vitória da crematística sobre essa visão mais integral da economia, que expressa a vitória do mercado sobre a vida humana, em que a economia é uma ciência dirigida única e exclusivamente à geração de lucro e à acumulação. Uma ciência que se justifica a si mesma.
Portanto, pensar a economia como um campo transdisciplinar, recuperando o debate antigo sobre oikonomia, a economia política e a sua crítica, é fundamental para restabelecer esta ciência como um instrumento em favor da vida humana, da sociedade e do meio ambiente.
IHU On-Line - Como avalia a convocação do Papa Francisco para pensar uma nova economia no evento intitulado “Economia de Francisco”, realizado de forma online nesta semana em Assis?
Neusa Serra - Como bastante oportuna, tendo em vista a urgente necessidade de criar e fortalecer repertórios e narrativas que se contraponham ao mainstream, que vem naturalizando processos como a acelerada devastação ambiental, o aumento da desigualdade e a exclusão de vastos contingentes populacionais da cobertura de sistemas de seguridade social e de condições mínimas de vida. Em outras palavras, é uma oportunidade de ampliar a compreensão das dimensões humana, social e ambiental dos processos econômicos, desnaturalizando a racionalidade individualista calcada na competição e na meritocracia, impostas pelo neoliberalismo.
Vitor Hugo Tonin - Penso que esta convocatória passa pelo Encontro realizado em Assis, mas sua importância se mostrará muito além do Encontro. Se olharmos com atenção, veremos uma quantidade gigantesca de iniciativas econômicas populares, solidárias, comunitárias que, por estarem isoladas, fragmentadas, invisibilizadas, acabam se fragilizando e de uma forma ou outra se subordinando à hegemonia dos grandes monopólios. De outro lado, se olharmos a economia capitalista hoje, vemos que sua dominação não ocorre mais apenas pela propriedade privada dos meios de produção. O grande sistema financeiro, por exemplo, se utiliza da poupança nacional para extorquir elevadas tarifas e juros de nossa comunidade nacional. Ele pode ser substituído por cooperativas de crédito, bancos comunitários e de microcrédito. Ainda mais agora com o desenvolvimento das finanças digitais e das criptomoedas.
Pelo lado do mundo do trabalho, o setor de serviços, que mais emprega pessoas atualmente, está cada vez mais dominado por atravessadores digitais, que são os aplicativos de intermediação. Uma tecnologia que não é nem um pouco difícil de ser apropriada e reconstruída com outros fins. Nos alimentos, é cada vez mais evidente que o modelo convencional de produção remunera muito pouco para os verdadeiros produtores da terra e cobra caro dos consumidores na cidade. São os grandes atravessadores, os produtores de veneno e os grandes atacadistas que ficam com a maior fatia do bolo, enquanto produtores e consumidores estão empobrecidos e envenenados.
Já existem várias experiências alternativas de circulação de alimentos que articulam os consumidores urbanos com os pequenos produtores rurais que não utilizam agrotóxicos. Nesse sentido a convocatória de Francisco pode dar uma grande ajuda na articulação, visibilização e união dessas iniciativas, conferindo-lhes a importância política que lhes é justa.
IHU On-Line - Que aspectos da convocatória do Papa são mais pertinentes, na sua avaliação, considerando o contexto que vivemos hoje?
Neusa Serra - Um primeiro aspecto a ser novamente destacado é o reconhecimento da interdependência entre os fenômenos e, por conseguinte, entre os campos teóricos de explicação. Um segundo é o chamamento aos jovens, estudantes ou recém-formados, aqueles com maior potencial de “pôr em prática uma economia diferente, que faz viver e não mata, inclui e não exclui, humaniza e não desumaniza, cuida da criação e não a devasta”. Um terceiro aspecto é a referência clara à necessidade de corrigir os modelos de crescimento excludentes e ambientalmente insustentáveis ora praticados.
A convocatória é explícita ao condenar a cultura do descarte, tanto de objetos quanto de pessoas, derivada em larga medida de nossos padrões de produção – que se sofisticam e não empregam (ou empregam precariamente) – e consumo – excessivo em algumas parcelas da população e insuficiente em outras.
A inspiração em São Francisco de Assis, um arauto da “simplicidade voluntária”, é reveladora dessa preocupação. Assistimos a um claro descompasso entre a vasta produção e o consumo de bens e serviços não essenciais e um suprimento inadequado e insuficiente de serviços básicos como saúde e saneamento. Esse processo é acentuado pela crescente privatização das empresas estatais, dos serviços de saúde e educação, dos recursos ambientais como a água e os parques naturais e até dos espaços públicos de lazer. Com isso, perde-se a dimensão do comum, do compartilhamento, do interesse e da ação coletivos.
O questionamento que a convocatória faz, explícita ou implicitamente, a respeito de todos esses aspectos, coloca na ordem do dia temas como as experiências de economia solidária, comércio justo, bancos comunitários, movimentos de agroecologia, economia feminista e gestão comunitária de recursos comuns.
Vitor Hugo Conin - Vou elencar apenas três aspectos para não me alongar. Em primeiro lugar, a anunciação de uma nova economia para a vida e não para a morte, recoloca a economia como um instrumento cuja finalidade não está em si mesma, mas além dela e, portanto, seus objetivos, metas, sua ética, devem ser procurados fora dela. Em segundo lugar, ter feito esse chamado para fora da Igreja, de forma independente, garantindo o ecumenismo e principalmente a autonomia desse movimento de construção de uma nova economia. O Papa Francisco assume uma transcendência institucional e um papel civilizatório, nesse sentido.
Por fim e mais importante: o chamado à ação. A convocatória nos chama a refletir para agir. Para criar, exercer e praticar uma nova economia e não somente para criticar a existente. Para criar novos cursos de economia, novas pedagogias, enfim, uma nova práxis reprodutiva da vida humana. Esse aspecto é muito importante, pois vemos no universo intelectual acadêmico ou partidário brasileiros uma crítica econômica muito competente na dimensão do discurso, da crítica à economia atual, mas muito vazia e que não raro menospreza a construção de alternativas populares, solidárias e comunitárias de práticas econômicas.
IHU On-Line - Como a proposta do Papa Francisco de discutir uma nova economia se relaciona com sua área de pesquisa ou atuação?
Neusa Serra - A relação se dá, em especial, pelos pontos de convergência entre a proposta de discussão de “uma nova economia”, formulada pelo Papa, e a crítica ao neoliberalismo que vem sendo feita em especial por estudiosos como Pierre Dardot e Christian Laval, em obras como A nova razão do mundo e Comum, ensaio sobre a revolução no século XXI. Adicionalmente, pela conexão entre essas ideias e as pesquisas a respeito da gestão comunitária de recursos de uso comum, realizadas por Elinor Ostrom e sua equipe em diferentes partes do mundo e que representam o ponto de partida dos meus temas de pesquisa.
Vitor Hugo Tonin - Na pesquisa de doutorado que realizo no Instituto de Economia da Unicamp, investigo a incapacidade de o mercado imobiliário garantir o direito à moradia digna para a população no Chile, país que, até a explosão social há um ano, era divulgado como exemplo a ser seguido também nesse tema. Mas para o Encontro em Assis fomos selecionados para apresentar o projeto da Livres – Rede de Produtos do Bem, um projeto apoiado pelo sindicato dos Químicos Unificados e que visa integrar produtores e consumidores de alimentos numa rede livre tanto de atravessadores quanto de venenos. Com isso é possível elevar a remuneração dos produtores, diminuir o custo para os consumidores, aumentar a saúde de todos e proteger o meio ambiente. Além das iniciativas já existentes em Campinas, Osasco e Baixada Santista, estamos trabalhando num ponto dentro do mercado municipal de São Paulo e a articulação com iniciativas financeiras solidárias, como o microcrédito e os bancos comunitários. Quem quiser conhecer mais e participar pode encontrar a Livres – Rede de Produtos do Bem nas redes sociais.
IHU On-Line - Deseja acrescentar algo?
Neusa Serra - Eu só acrescentaria que espero que as discussões em Assis avancem para a necessidade de construção de pactos sociais que deem substrato às mudanças que queremos e ajudem a desenhar trajetórias de políticas públicas para a gradativa viabilização da “nova economia”.