08 Junho 2011
As estruturas de poder da modernidade tendem a conservar um status quo fundamentado na concentração e na exclusão. Para focalizar a ideia de "grupo conexo", é preciso traçar uma história do conceito de "comum".
A análise é de Ugo Mattei, cátedra Alfred e Hanna Fromm de Direito Internacional e Comparativo da Universidade da Califórnia e professor de Direito do Hastings College of the Law, também na Califórnia, e da Universidade de Turim, na Itália. O artigo foi publicado no jornal Il Manifesto, 03-06-2011. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
Provoca muito desconcerto refletir sobre os tempos presentes à luz de categorias conceituais e de linguagens novas, ainda em vias de elaboração teórica, como são os bens comuns. Se os tempos ainda não parecem estar maduros para tentar definições jurídicas completas, é útil, porém, valorizar o que está sendo observado acerca da sua imanência e do seu caráter fortemente críptico.
Os bens comuns encontram-se em qualquer lugar onde haja relações, mas despontam raramente, por ocasião de conflitos, muitas vezes tumultos, que criam a sua consciência em condições estritamente ligadas às reivindicações de necessidades fundamentais.
Enquanto ligados a um contexto, os bens comuns se colocam, portanto, na antítese do universalismo típico da retórica dos direitos humanos. Sendo, no entanto, funcionais à satisfação efetiva de necessidades fundamentais autênticas (sejam elas materiais ou espirituais) da pessoa que se encontra em vários contextos relacionais, fazem parte de uma rede tendencialmente ilimitada.
O indivíduo desconectado
Daí o desafio radical que os bens comuns aportam à dimensão estatal, circunscrita pelas fronteiras e que cai na lógica da soberania que é, depois, domínio hierarquicamente organizado sobre um território. E daí também a enorme dificuldade que a elaboração teórico-jurídica encontra para fazer com que os bens comuns, entidades coletivas, inclusivas e de poder difuso, sejam compatíveis com uma estrutura fundamental do direito fundamentado no proprietário (seja ele pessoa física ou jurídica), interlocutor privilegiado do Estado (duas estruturas de concentração de poder e de exclusão).
Com efeito, embora já existam estruturas jurídicas que já disciplinam bens comuns no direito privado moderno (basta pensar no condomínio dos edifícios ou na comunhão), eles são frequentemente enunciadas como excepcionais em um contexto inteiramente dominado pela propriedade privada. Justamente enquanto exceções à propriedade privada, as atuais formas jurídicas de governo privatizador dos bens comuns não parecem ser, de fato, idôneas a incentivar aquela comunhão entre subjetividades diversas e os seus contextos de referência, que deve caracterizar as novas estruturas institucionais participativas do governo dos bens comuns.
Basta pensar em como os vizinhos de casa dão o pior de si nas assembleias de condomínio. Aqui, cada um dos condomínios, longe de ser "comunistas" (ou seja, de se interessar justamente por aquelas partes comuns que o conectam aos outros), considera-se, na realidade, como um soberano que sofre uma limitação (provocada por outros com os quais a relação só pode ser conflitante) de um seu suposto domínio livre.
Para chegar a uma elaboração jurídica do comum autenticamente capaz de difundir uma linguagem nova, isto é, que remeta ao centro o grupo conexo (a comunidade em sentido ecológico, variável segundo as circunstâncias) e que marginalize o indivíduo desconexo (celebrado na retórica de Robinson Crusoé), é portanto necessário ainda muito trabalho teórico e prático.
Do primeiro ponto de vista, é preciso traçar uma genealogia (ou até uma arqueologia) do comum, uma obra fascinante, que exige um esforço interdisciplinar, sobretudo histórico-institucional, que não pode esperar mais. Só uma tal elaboração pode responder à pergunta de fundo à qual é extremamente difícil escapar.
Quais rupturas são necessárias para transferir ao mundo das instituições jurídico-políticas (ainda baseadas no positivismo dominical) o saber holístico e "indisciplinado" que se coloca nas fronteiras da pesquisa ecológica e fenomenológica? Quanto devem ser violentas essas rupturas, ou melhor, qual é (admitindo-se que deva haver) o nível de violência mínima necessária para provocá-las?
Hoje, as estruturas de poder da modernidade, fundamentadas na concentração e na exclusão, defendem um status quo indefensável, não apenas no plano político, mas também no teórico, por meio de operações de inaudita violência. Os dados científicos desinteressados em nossa posse são unânimes ao demonstrar, por exemplo, como a sociedade nuclear não só é totalmente insustentável (resíduos radioativos não gerenciáveis), mas também constitui uma opção de visão curtíssima.
Giorgio Parisi, um dos maiores físicos e teóricos da complexidade, escreveu na seção Gaia Comune (Il Manifesto, 28 de abril), que, se substituíssemos por energia nuclear toda a produção energética decorrente de hidrocarbonetos, na taxa atual de consumo, teríamos urânio por três anos! É óbvio, portanto, dados à mão, que a energia nuclear não é uma opção energética limpa de longo prazo, mas só uma operação política de estruturação global da concentração do poder.
As incríveis aporias da energia nuclear realizadas (para citar só um exemplo, toda a produção da central em Fukushima, uma das mais de 50 que produzem no Japão 17% da energia ali consumida, pode ser facilmente substituída limitando a iluminação noturna em Tóquio!) evidenciam dados inquietantes se vistos na perspectiva de uma genealogia histórica.
Com efeito, o nível de racionalidade dos aparatos ideológicos que apoiam a energia nuclear (e também daqueles que defendem hoje a ideologia desenvolvimentista da modernidade) é igual ao da inquisição. Plenamente racional só para para o inquisidor! Naquele tempo, se processava Galileu e se queimava Giordano Bruno com o único propósito de defender o dogma cognoscitivo (teocêntrico), que garantia o poder hierárquico da Igreja Romana contra as nascentes instituições jurídicas e políticas da modernidade, simbióticas com relação à plena realização da revolução científica.
Hoje, o poder centralizado do complexo militar industrial busca, de todos os modos, fundamentar com dogmas pseudocientíficos (a energia nuclear como solução para o problema energético) a centralidade daquelas instituições da modernidade que a plena valorização jurídico-institucional dos bens comuns (coerente com a fronteiras do saber) ameaça subverter.
Em suma, estamos começando a experimentar as reações políticas e ideológicas (brutais tanto quanto o fogo) à nova revolução copernicana fundamentada na melhor ciência que, movendo-se do antropocentrismo ao ecocentrismo, acabará quase certamente subvertendo as estruturas de poder atualmente dominantes. Daí a reação sempre mais violenta de um poder centralizado que havia se iludido de não ter mais adversários (queda do Muro) e que, ao invés, parece destinado a entrar em colapso por estar enfraquecido pelas transformações rapidíssimas que estamos vivendo (todas capturáveis pela metáfora da "rede").
Em particular, a revolução energética baseada na autoprodução difundida (que torna inútil o complexo militar-industrial), conjugada com a emergência política (e depois jurídicas) de instituições do comum, pode se soldar com as transformações demográficas e com as grandes migrações, tornando-as funcionais (em chave revolucionária, naturalmente) para as exigências de sobrevivência do gênero humano neste planeta.
Nesse quadro de transformação, os bens comuns, que emergem das lutas, desempenham diversas funções. Em primeiro lugar, eles oferecem um vocabulário novo, necessário para a emancipação, que oferece plena consciência às multidões daquilo que é "delas". Esse novo vocabulário abre caminho para a discussão sobre novos cenários de bem-estar, como por exemplo a "renda de existência" ou o "salário máximo", essenciais para enfrentar de forma sustentável os desenvolvimentos do capitalismo cognitivo, criando as condições para uma organização social baseada na qualidade de vida (de todos) e não no acúmulo (nas mãos de poucos).
Práticas de reconquista
Em segundo lugar, os bens comuns constituem uma pequena proteção capaz de defender os recursos – existentes ou em vias de geração, entretanto pertencentes a todos – de todo saque posterior, por meio do desenvolvimento da consciência crítica e da cidadania ativa (essa é a função fundamental que eles desempenham na atual campanha do referendo italiano).
O bens comuns, por fim, podem desempenhar, também no plano jurídico, um papel ofensivo e não apenas defensivo, legitimando práticas de reconquista direta de espaços e recursos (independentemente do título formal público ou privado do domínio que atualmente os governa), essenciais para o desenvolvimento da pessoa e para a plena realização e regeneração dos seus direitos constitucionais fundamentais.
É assim, por exemplo, que o direito constitucional de acesso à habitação pode se emancipar do papel subordinado na presença das condições econômicas declaradas pelo Estado e pelas entidades chamadas a satisfazê-lo como direito social concedido pelo welfare público.
No quadro da função jurídica ofensiva e da plena declinação dos bens comuns, ele pode se satisfazer, ao contrário, por meio da ocupação aquisitiva legitimada pela necessidade pública, com espaços socialmente percebidos como abandonados. O direito, também nesse caso, brota da natureza física do conflito e não pode ser gerado a partir da reflexão abstrata de quem quer que seja.
Diferentes perspectivas sobre uma nova categoria
Para aprofundar os temas aqui abordados, pode ser útil a leitura de alguns livros recentes. Em particular, os textos que contribuem para definir melhor o conceito de bens comuns são Comune. Oltre il privato e il pubblico, de Michael Hardt e Toni Negri (Ed. Rizzoli, 2010); Il saccheggio. Regime di legalità e trasformazioni globali, de Ugo Mattei e Laura Nader (Ed. Bruno Mondadori, 2010); Beni comuni. Un manifesto, de Ugo Mattei (Ed. Laterza, no prelo); Dal governo democratico dell`economia alla riforma dei beni pubblici, de Ugo Mattei, Edoardo Reviglio, Stefano Rodotà (Ed. Scienze e Lettere, Accademia Nazionale dei Lincei); Paolo Cacciari, La società dei beni comuni (Ed. Ediesse, 2010); Giovanna Ricoveri, Beni comuni vs. merci (Ed. Jaca Books, 2010); Privato, pubblico, comune. Lezioni dalla crisi globale, organizado por Laura Pennacchi (Ed. Ediesse, 2010); Property Outlaws, de Eduardo Penalver e Sonia Katyal (Yale University Press, 2010).
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Um breve genealogia dos "bens comuns" - Instituto Humanitas Unisinos - IHU