29 Março 2021
Na semana passada, várias notícias intrigantes se espalharam a partir do Vaticano, e o mero ato de listá-las provavelmente é o suficiente para ilustrar o que elas têm em comum.
A reportagem é de John L. Allen Jr., publicada em Crux, 28-03-2021. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Na última audiência em um julgamento por abuso sexual do Vaticano, um empregado do ex-chefe da Basílica de São Pedro testemunhou que tinha sido informado das preocupações sobre comportamentos sexuais inapropriados em um pré-seminário no território vaticano, mas negou que houvesse quaisquer indicações de “violência” ou “abuso”. Um ex-pré-seminarista, que trouxe à tona as acusações, também testemunhou, dizendo ter testemunhado “dezenas” de atos que ele considerava abusivos. O principal réu no julgamento é um ex-pré-seminarista, agora padre, acusado de abusar de outro na época em que ambos eram menores.
O serviço de caridade do papa no Vaticano anunciou na semana passada que 1.200 dos mais pobres e mais vulneráveis de Roma receberão a vacina contra o coronavírus da Pfizer gratuitamente durante a Semana Santa e a Páscoa. As vacinações ocorrerão na sala de audiências Paulo VI, o mesmo ambiente onde o pessoal do Vaticano já recebeu as suas vacinas.
Em um esforço para conter um déficit crescente impulsionado pela queda de receitas relacionada ao coronavírus, o Papa Francisco decretou que as altas autoridades vaticanas terão cortes em seus pagamento, começando pelos cardeais, que verão seus estipêndios mensais reduzidos em 10% (os cerca de 40 cardeais vaticanos geralmente recebem cerca de 6.000 dólares por mês [quase 35.000 reais], o que significa um corte de cerca de 600 dólares [quase 3.500 reais] para cada um deles).
Os chefes de departamento terão um corte de 8%, e outros clérigos e religiosos perderão 3%. Os salários dos empregados leigos comuns não foram afetados, embora o papa também tenha decretado o congelamento dos aumentos automáticos por tempo de serviço.
Um tribunal do Reino Unido emitiu uma repreensão contundente aos promotores vaticanos, descongelando os ativos de um financista italiano em Londres chamado Gianluigi Torzi, que havia sido detido a pedido do Vaticano como parte de um processo em um acordo financeiro de 400 milhões de dólares [2,3 bilhões de reais] em Londres, no qual o Vaticano alega que Torzi e outras pessoas o fraudaram em milhões de dólares em taxas ilegítimas. No entanto, o juiz Tony Baumgartner, do Tribunal da Coroa de Southwark, rejeitou as alegações do Vaticano, acusando os promotores vaticanos de sustentarem declarações falsas “chocantes” e concluindo que as transações com as as quais Torzi lucrou foram todas explicitamente aprovadas pelo arcebispo venezuelano Edgar Peña Parra e pelo cardeal italiano Pietro Parolin, as mais altas autoridades da Secretaria de Estado do Vaticano.
O Papa Francisco nomeou o sobrevivente de abusos sexuais clericais chileno Juan Carlos Cruz à Pontifícia Comissão para a Proteção de Menores, o órgão criado pelo pontífice em 2013 para aconselhá-lo sobre a reforma dos escândalos de abuso e que atualmente está passando por um processo de transformação em um escritório vaticano estável. Cruz é conhecido como a figura que mudou a opinião de Francisco diante da crise na Igreja chilena.
O elemento comum em todos esses cinco acontecimentos é uma reação aos escândalos envolvendo abusos, tanto sexuais quanto financeiros, e os altos e baixos dos esforços do papa para consertar as coisas.
Francisco, como se sabe, tem um senso de justiça apurado e uma inclinação arraigada em favor das vítimas, e a iniciativa do seu braço direito na caridade, o cardeal polonês Konrad Krajewski, de garantir que os mais pobres dos pobres de Roma não sejam deixados de fora do ciclo de vacinações, enquanto pessoas com contatos, dinheiro ou ambos recebem as vacinas, é uma ilustração clássica disso.
Por falar nisso, outra ilustração disso é a insistência do papa de que o déficit do Vaticano não seja equilibrado colocando o peso sobre os “operários” e de que qualquer aperto nas contas necessário comece pelo pessoal do Vaticano que se veste de carmesim e roxo.
Com toda a honestidade, esses cortes salariais realmente não serão uma solução – economizar talvez 25.000 dólares [144.000 reais] no pagamento anual aos cardeais não é uma solução duradoura para um déficit de 60 milhões de dólares [345 milhões de reais]. Todo mundo sabe que a única forma de equilibrar as contas é cortar a folha de pagamento, de longe a maior despesa do Vaticano, mas até agora Francisco se recusou a demitir alguém em meio à pandemia do coronavírus.
Isso, é claro, também é uma expressão da real preocupação do pontífice com os “pequeninos”.
No entanto, também está claro que Francisco, como quase todo papa reformador antes dele, ainda está lutando com a tradução institucional desses instintos essenciais.
O peculiar julgamento dos abusos atualmente em andamento em um tribunal vaticano é um bom exemplo disso.
No momento, parece que os advogados de defesa estão tentando alegar que o que quer que tenha acontecido dentro do Pré-Seminário São Pio X foi um comportamento amplamente consensual entre adolescentes em desenvolvimento sexual. Seja como for, parece claro que as altas autoridades vaticanas estavam cientes das preocupações de que algo estranho estava acontecendo e, além de ordenarem a remoção do reitor, não fizeram muito até que Francisco renunciou a um requisito da lei vaticana na época que exigia que um acusador se apresentasse um ano após a suposta ofensa, a fim de iniciar um processo criminal depois que as acusações se tornassem públicas.
Pelo menos até onde sabemos, nenhuma dessas autoridades está atualmente sob investigação ou enfrentando consequências disciplinares. O papa aceitou, sim, a renúncia do cardeal Angelo Comastri, ex-arcipreste da Basílica de São Pedro e uma das autoridades que foram informadas daquelas preocupações, no dia 20 de fevereiro, mas aparentemente isso ocorreu por razões de idade, já que Comastri tem agora 77 anos.
Da mesma forma, em relação ao escândalo de Londres, o juiz do Reino Unido basicamente devolveu a bola para o tribunal vaticano, essencialmente decidindo que, se algo desagradável ocorreu, foi aprovado pelas duas altas autoridades da Secretaria de Estado. Então, em última instância, são eles os responsáveis – como nós, estadunidenses, gostamos de dizer: “Quebrou, pagou”.
Aparentemente, a estratégia tradicional do Vaticano em tais casos, que é a de encontrar um bode expiatório conveniente (geralmente um financista italiano obscuro, às vezes um agente vaticano de nível inferior), embora isole os superiores da culpa, não tem muito impacto nos tribunais fora do Estado da Cidade do Vaticano. Resta saber como os promotores vaticano vão reagir.
Em qualquer reforma, declarar princípios e encenar maneiras positivas de ilustrá-los, por mais inspiradores que sejam, é sempre a parte fácil. Descobrir como incorporar esses princípios em operações – e estar disposto a pagar o preço político por fazer isso – é onde começa o trabalho pesado, e parece ser aí onde o Papa Francisco se encontra agora.
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Francisco, o “papa dos pequeninos”, trabalha pesado pela reforma - Instituto Humanitas Unisinos - IHU