17 Novembro 2020
Entre o Relatório McCarrick do Vaticano e as eleições presidenciais dos EUA, muito tem acontecido e não foi noticiado no resto da Igreja global pelas últimas semanas.
Aqui um giro, incluindo os bispos argentinos de acusarem o presidente de ser um fantoche do “lobby do aborto”; bolivianos pedindo para o novo presidente eleito respeitar a constituição; prelados no Peru aplaudindo os protestos em meio à pandemia; e sobreviventes de abuso clerical mais uma vez se desapontando no Chile.
A reportagem é de Inés San Martín, publicada por Crux, 16-11-2020. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
Na última semana, a Congregação para a Doutrina da Fé do Vaticano considerou o padre Jorge Laplagne, um renomado padre de Santiago, capital do Chile, culpado de abusar sexualmente de um menor de idade há 15 anos.
Javier Molina, que foi coroinha de Laplagne, acusou o padre de abuso sexual e abuso de poder. Ele denunciou primeiramente em 2010, mas o cardeal Francisco Javier Errazuriz, então arcebispo de Santiago, depois de ouvir as alegações, aceitou um relatório do então promotor de justiça da arquidiocese que concluía que as acusações não eram verdadeiras, e decidiu não investigá-las.
Foi assim até 2018, quando o papa Francisco enviou um comitiva para investigar a crise de abusos na Igreja chilena, e então as coisas mudaram. Com a ajuda de uma ONG chamada “Para la Confianza” encontrou três sobreviventes de abuso clerical, Molina acusou Laplagne novamente, e acrescentou acusações de encobrimento contra Errazuriz, seu sucessor Ricardo Ezzati e o promotor de justiça.
A decisão do Vaticano foi publicada na última terça-feira, e Laplagne disse que ele está planejando apelar. Até então, ele permanece suspenso do seu ministério.
Ainda no Chile, os jesuítas rejeitaram na semana passada uma ação movida por vítimas do padre Jaime Guzmán Astaburuaga, já considerado culpado de abusos. A ordem alega que os crimes mencionados no processo foram “prescritos”, o que significa que o prazo de prescrição expirou e que ocorreram em um “contexto social muito diferente do atual”.
Quatro ex-alunos de uma escola administrada por jesuítas exigiram 150 mil dólares cada um por danos morais, porque acreditam que a ordem religiosa não só falhou em prevenir o abuso, mas também falhou em selecionar padres e professores em suas escolas.
O padre Gabriel Roblero Cum, superior jesuíta local, disse que estão dispostos a oferecer 20 mil dólares a cada uma das quatro vítimas e a continuar um “processo de reparação simbólica”. Ele afirma que os crimes foram prescritos, mas não negou que aconteceram, reconhecendo que o padre “cometeu vários atos de conotação sexual”.
Guzmán foi considerado culpado pelo Vaticano e condenado à remoção do estado clerical. No entanto, ele também apelou e aguarda uma resolução final.
Em sua resposta à ação, os jesuítas argumentaram que os eventos ocorreram há mais de 30 anos e que o que aconteceu, embora pareça repreensível hoje, foi ignorado na época. Por exemplo, os jesuítas apontaram para o fato de que toda a comunidade escolar sabia que o padre organizava retiros para os alunos e que as fotos desses retiros, “longe de estarem escondidas”, foram postadas no quadro de avisos da escola.
“Situações como as relatadas foram normalizadas a ponto de os alunos aceitarem participar dessas atividades, mesmo sabendo que nos ditos retiros os alunos tomavam banho nus, eram fotografados pelo padre Jaime Guzmán Astaburuaga, e que certamente pelo menos uma dessas fotos seria publicada em um quadro de avisos da escola, [no entanto] eles concordaram em participar dessa atividade”, argumenta o documento de defesa dos jesuítas.
Com efeito, a sugestão é que os jesuítas não podem ser culpados por não terem impedido algo que ninguém na época considerou errado.
Na última semana, o novo presidente eleito Luis Arce, que concorreu como candidato do ex-presidente Evo Morales, tomou posse. Em discurso aos parlamentares, cidadãos e convidados internacionais, ele prometeu: “nós estamos iniciando uma nova fase em nossa história, sem discriminação. Nós tentaremos reconstruir nosso país a fim de vivermos em paz”.
A Conferência dos Bispos da Bolívia parabenizou-o, dizendo que esperam que esse novo capítulo na história do país tenha um impacto positivo.
“A Bolívia é um país com grande potencial para grande desenvolvimento, mas é necessário trabalhar junto, responsavelmente, para alcançá-lo”, escreveram os bispos.
Eles disseram que Arce e o novo governo tem um “fundamental requisito: respeitar a constituição”.
“Nós sabemos que a Bolívia viveu várias crises”, e a única forma de encará-las é pelo trabalho conjunto, escreveram os bispos.
Depois de quase um ano no exílio, Morales voltou para a Bolívia na segunda-feira passada. Apesar das advertências de alguns, Arce insistiu que o ex-presidente não vai retomar o cargo – o que já aconteceu em ocasiões anteriores na América Latina, inclusive na Argentina, na década de 1970, quando o general Juan Domingo Perón não foi autorizado a concorrer à presidência no exílio, mas depois que seu candidato ganhou as eleições, voltou e uma nova votação foi convocada para que ele pudesse assumir. A presidência final de Perón levou a um governo militar e à “Guerra Suja” da Argentina.
Em entrevista durante a campanha, Arce disse que o “maior erro” cometido no ano passado foi ter Morales como candidato, o que teria sido seu quarto mandato consecutivo, apesar de um referendo em 2016 onde o povo votou contra uma emenda constitucional para fazer isso possível.
O Peru está em crise desde que o congresso votou pelo impeachment do presidente Martin Vizcarra, acusado de corrupção e má-gestão da pandemia de covid-19.
Os apoiadores de Vizcarra tomaram as ruas, e o presidente interino Manuel Merino ordenou uma repressão que acabou com pelo menos três mortos e 13 feridos no sábado. O congresso peruano pediu pela “imediata renúncia” de Merino, que acatou o pedido no domingo, depois de apenas cinco dias no cargo.
Desde que Vizcarra foi destituído, vários bispos peruanos apoiaram os protestos contra a destituição de Vizcarra e o novo governo, apesar da crise do coronavírus. O Peru registrou mais de 900 mil casos de covid-19 e mais de 35 mil mortes.
Entre esses bispos está o cardeal Pedro Barreto, arcebispo de Huancayo, que disse a uma rádio local que estão “defendendo a dignidade do povo peruano”.
Falando da destituição do ex-presidente, Barreto disse que “embora alguns digam que foi legal, não é considerado legítimo, porque a sociedade também tem uma palavra a dizer”.
O arcebispo Carlos Castillo, de Lima, descreveu os protestos como “contundentes, grandes e fortes”. Ele acrescentou que, assim como Barreto, está disposto a ajudar a alcançar um “entendimento” entre manifestantes e autoridades.
Em março, o presidente argentino Alberto Fernández pediu a seus compatriotas que ficassem em casa para evitar a disseminação da covid-19 porque uma “vida perdida é uma vida que não vai ressuscitar”, enquanto, argumentou, a economia sempre poderia se recuperar.
Depois de quase 230 dias de lockdown, a Argentina está entre os 10 principais países em termos de mortes per capita e casos positivos, e as estatísticas mostram que 50% da população do país estará abaixo da linha de pobreza no final do ano. Os hospitais funcionam em capacidade máxima há meses, com muitos estados proibindo cirurgias não essenciais.
Nesse contexto, Fernández está decidido a cumprir sua promessa de campanha de tornar o aborto “legal, gratuito e seguro”, medida que o Congresso argentino rejeitou em 2018 depois que milhões foram às ruas dizendo que não querem a prática. Na época, a Anistia Internacional pagou cerca de um milhão de dólares para comprar um anúncio de última página no The New York Times para emitir um “aviso” às autoridades eleitas da Argentina: “Estamos a vigiá-los”.
O aborto atualmente é permitido na Argentina na maioria dos estados, seguindo um protocolo que o torna disponível para as mulheres quando suas vidas estão em risco, se o bebê não sobreviver ao parto ou se a gravidez for resultado de estupro.
Entre os muitos prelados que falaram contra a legalização mais ampla está o bispo Alberto Bochatey, auxiliar de La Plata e presidente da comissão episcopal argentina para o ministério da saúde.
“Está claro que o presidente tem um forte compromisso com alguns grupos e com o lobby pró-aborto”, disse ele a uma estação de rádio em 12 de novembro.
Fernández afirma que está tentando cumprir uma promessa de campanha, mas Bochatey argumentou que há outras promessas que ele fez que são muito mais urgentes, incluindo o aumento da aposentadoria dos idosos do país, que, segundo ele, estão “sendo mortos” por novas medidas governamentais que cortam fundos de pensão.
O bispo disse acreditar que o governo está usando o aborto como uma cortina de fumaça política para distrair os cidadãos de uma queda econômica, a crise da covid-19 e as tentativas de reforma do sistema judiciário para garantir que as acusações de corrupção contra a vice-presidente, Cristina Kirchner, sejam retiradas.
Bochatey afirmou que a “cidade de Buenos Aires registrou mais de oito mil abortos no ano passado, e neste ano já são mais de quatro mil”. Se a prática fosse legalizada, disse ele, “seria a primeira vez que os legisladores argentinos aprovariam uma lei que implica a morte de um ser humano”.
Ele também questionou as estatísticas fornecidas por grupos pró-aborto, afirmando que há entre 370 e 500 mil abortos anuais na Argentina, uma nação com 43 milhões de cidadãos. Esses números significariam que há mais de mil abortos por dia e quase 50 por hora, muito superior ao número de nascimentos.
Grupos pró-aborto também afirmam que milhares de mulheres morrem todos os anos devido a abortos ilegais mal realizados.
“Se tantas mulheres morrem” devido a esta prática, Bochatey perguntou, “onde estão os corpos? Eles tiveram que ser enterrados, um médico teve que assinar a certidão de óbito e então os membros da família os levaram para um cemitério”.
O registro de óbitos da Argentina afirma que apenas 40 mulheres morreram devido a complicações da perda da gravidez, tanto naturais quanto induzidas, em 2018. Grupos pró-vida há muito argumentam que, embora todas as vidas sejam importantes, o aborto ocupa o 40º lugar na lista das 50 causas de morte para mulheres em idade fértil.
“Existem 39 causas mais graves de morte”, disse Bochatey. “Não se deixe enganar, o aborto é uma questão ideológica, é uma questão de pactos e obrigações que [o governo tem] com as organizações internacionais para estabelecer o ‘novo direito’ de eliminar a vida do ser humano por nascer”.
“Isso é o que Francisco chama de colonização ideológica”, concluiu.
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Tumultos sobre abuso sexual, aborto e corrupção atingem a Igreja na América Latina - Instituto Humanitas Unisinos - IHU