23 Março 2021
Banqueiros, empresários e economistas que elegeram e sustentaram presidente lançam manifesto crítico. Enfraquecido e isolado, capitão tenta exibir valentia. E mais: Big Pharma insiste em vender vacinas e não entregar.
A reportagem é de Maíra Mathias e Raquel Torres, publicada por Outra Saúde, 22-03-2021.
Essa semana, uma carta repleta de críticas ao governo federal deve chegar às mãos das maiores autoridades da República, incluindo o presidente Jair Bolsonaro. Iniciativas do tipo não são exatamente novidade, mas esta é diferente por partir de banqueiros, grandes empresários e economistas que ocuparam o Banco Central e o Ministério da Fazenda. E, por isso, é mais eficaz ao bater na falácia preferida do bolsonarismo, segundo a qual a retomada da economia deve se dar na marra, através da sabotagem das medidas de combate à pandemia.
O tom crítico do texto subscrito por gente como Armínio Fraga, Roberto Setubal e Pedro Moreira Salles começa pelo título: “O país exige respeito; a vida necessita da ciência e do bom governo”. A carta constata que o Brasil se tornou o epicentro mundial da covid-19 e já contabiliza mortes não causadas diretamente pela doença, mas pela incapacidade de se atender tantos doentes ao mesmo tempo. Fala da situação econômica – queda na força de trabalho, alta histórica do desemprego, tombo do PIB – para constatar:
“Esta recessão, assim como suas consequências sociais nefastas, foi causada pela pandemia e não será superada enquanto a pandemia não for controlada por uma atuação competente do governo federal. Este subutiliza ou utiliza mal os recursos de que dispõe, inclusive por ignorar ou negligenciar a evidência científica nas ações para lidar com a pandemia”.
A carta defende a adoção de quatro linhas de ação: negociar com laboratórios a antecipação de entrega de vacinas ou com países ricos o possível excedente de doses, distribuir máscaras PFF2 para a população, implementar medidas de distanciamento social, incluindo lockdown, e avançar na coordenação nacional das ações de combate à pandemia.
“O quadro atual ainda poderá deteriorar-se muito se não houver esforços efetivos de coordenação nacional no apoio a governadores e prefeitos para limitação de mobilidade. Enquanto se busca encurtar os tempos e aumentar o número de doses de vacina disponíveis, é urgente o reforço de medidas de distanciamento social. Da mesma forma é essencial a introdução de incentivos e políticas públicas para uso de máscaras mais eficientes, em linha com os esforços observados na União Europeia e nos Estados Unidos”, diz o texto, defendendo a urgência do estabelecimento de critérios para a adoção de lockdowns.
A carta critica especialmente o desdém do governo federal em relação à compra de um portfólio mais variado de vacinas, o que fez com que o país começasse a campanha dependente de dois imunizantes que, por diversas razões, sofrem com atrasos na produção.
“Poderíamos estar em melhor situação, o Brasil tem infraestrutura para isso. Em 1992, conseguimos vacinar 48 milhões de crianças contra o sarampo em apenas um mês. Na campanha contra a covid-19, se estivéssemos vacinando tão rápido quanto a Turquia, teríamos alcançado uma proporção da população duas vezes maior, e se tanto quanto o Chile, dez vezes maior. A falta de vacinas é o principal gargalo. Impressiona a negligência com as aquisições, dado que, desde o início da pandemia, foram desembolsados R$ 528,3 bilhões em medidas de combate à pandemia, incluindo os custos adicionais de saúde e gastos para mitigação da deteriorada situação econômica. A redução do nível da atividade nos custou uma perda de arrecadação tributária apenas no âmbito federal de 6,9%, aproximadamente R$ 58 bilhões, e o atraso na vacinação irá custar em termos de produto ou renda não gerada nada menos do que estimados R$ 131,4 bilhões em 2021, supondo uma recuperação retardatária em 2 trimestres. Nesta perspectiva, a relação benefício custo da vacina é da ordem de seis vezes para cada real gasto na sua aquisição e aplicação”.
Outro cálculo presente na carta é em relação às máscaras PFF2. Se o governo federal comprasse cinco dessas máscaras consideradas as mais eficientes na proteção dos contágios para cada uma das 68 milhões de pessoas que receberam o auxílio emergencial ano passado, desembolsaria R$ 1 bilhão. “A distribuição gratuita direcionada para pessoas sem condições de comprá-las, acompanhada de instrução correta de reuso, teria um baixo custo frente aos benefícios de contenção da covid-19”.
O principal recado da carta é para o presidente Jair Bolsonaro. “O desdenho à ciência, o apelo a tratamentos sem evidência de eficácia, o estímulo à aglomeração, e o flerte com o movimento antivacina, caracterizou a liderança política maior no país. Essa postura reforça normas antissociais, dificulta a adesão da população a comportamentos responsáveis, amplia o número de infectados e de óbitos, aumenta custos que o país incorre”. O texto termina assim: “O país tem pressa; o país quer seriedade com a coisa pública; o país está cansado de ideias fora do lugar, palavras inconsequentes, ações erradas ou tardias. O Brasil exige respeito.”
Enquanto isso, Jair Bolsonaro continua com as ideias fora do lugar – que, no caso dele, são parte de um projeto político. Na sexta-feira, o presidente defendeu uma médica do município gaúcho de Camaquã que aplicou nebulização de hidroxicloroquina em um vereador que apresentava sintomas de covid-19. A profissional foi demitida. Bolsonaro, em entrevista a uma rádio da cidadezinha, mentiu pela enésima vez sobre a existência de um tratamento precoce: “Para salvar vidas, vale qualquer coisa. Sabemos que a vacina é um custo bilionário para o mundo todo. E parece que grupos interessados em investir apenas na vacina é que deixam de lado a questão do tratamento preventivo que existe e também o tratamento logo após a contração da doença.”
No mesmo dia, chegou ao Supremo a ação direta de inconstitucionalidade contra medidas de distanciamento social adotadas pelos governos da Bahia, Rio Grande do Sul e Distrito Federal. Na ação, o governo argumenta que as medidas são comparáveis ao estado de sítio que só pode ser instituído a nível federal, com autorização do Congresso. A comparação não faz sentido, segundo juristas. Politicamente, no entanto, o presidente a tem usado para insinuar que ele próprio poderia instituir o estado de sítio.
Ontem, no seu aniversário de 66 anos, confraternizou com cerca de cem apoiadores aglomerados em frente ao Palácio da Alvorada. Disse que “só Deus” o tira do cargo enquanto ele for presidente. Voltou a ameaçar de forma velada a instituição de estado de sítio usando como justificativa gestores que estão adotando quarentenas país afora: “Estão esticando a corda e faço qualquer coisa pelo meu povo. Qualquer coisa que está na Constituição, é o direito de ir e vir. Podem confiar na gente”.
Qualquer coisa, pelo visto, não incluiu checar a situação do seu indicado ao Ministério da Saúde – que, lembremos, antes disso já tinha sido escolhido para assumir um cargo na diretoria da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS). Na sexta-feira, a imprensa descobriu o que está atrasando a nomeação de Marcelo Queiroga. O médico é sócio administrador de duas clínicas de cardiologia em João Pessoa – situação incompatível com o cargo de ministro, segundo lei federal.
Além disso, a revista Crusoé descobriu que Queiroga é réu em uma ação penal por um crime contra o patrimônio público. Nos anos 2000, ele administrou o Hospital Prontocor, e junto com outros cinco médicos foi denunciado pelo Ministério Público Federal de embolsar as contribuições previdenciárias descontadas dos salários dos funcionários. O débito previdenciário da unidade é de R$ 15 milhões. O processo, aberto em 2009, corre na Primeira Turma do Tribunal Regional Federal da 5ª Região.
Para fechar, o novo ministro teria dito a interlocutores que uma de suas primeiras ações no comando da pasta será rodar hospitais para verificar pessoalmente se as UTIs estão mesmo lotadas e as pessoas estão morrendo de covid-19. Enquanto Queiroga não assume, secretários de saúde denunciam que não há “absolutamente ninguém” no Ministério da Saúde tomando decisões.
Tudo isso, mais a entrada de Lula no páreo, começou a causar desconexão com as lideranças do Centrão. “Ninguém vai querer se expor em um governo que pode acabar mal por causa da pandemia. Acredito que os líderes estão se afastando de Bolsonaro até ver no que vai dar esse ministro da saúde e qual plano será adotado”, afirmou o deputado federal Fausto Pinato (Progressistas-SP) em entrevista ao Estadão.
O jornal chama atenção para a mudança sutil no discurso de Arthur Lira (PP-AL). O presidente da Câmara passou a dizer que não teve tempo de examinar os pedidos de impeachment contra Bolsonaro ao invés de seguir dizendo que o afastamento não é prioridade. No Senado, a pressão pela abertura da CPI para investigar a atuação do governo federal na pandemia cresceu depois da morte de Major Olímpio (PSL-SP). Rodrigo Pacheco (DEM-MG) teria começado a dizer por aí que não sabe até quando vai conseguir evitar a investigação.
Num lance mais isolado, mas que entra também como fator de tensionamento, o subprocurador-geral junto ao Tribunal de Contas da União, Lucas Furtado, pediu que o TCU afaste temporariamente Bolsonaro e parte do seu governo das funções administrativas relacionadas à pandemia até que os ministros apurem as responsabilidades pela “situação caótica no atendimento público de saúde da população”. A lei orgânica do tribunal prevê que o TCU pode afastar o gestor público em caso de indícios suficientes de que sua manutenção no cargo pode dificultar auditorias ou causar prejuízos aos cofres públicos. De acordo com a representação, o vice-presidente Hamilton Mourão deveria assumir a execução das políticas voltadas para a covid-19.
O Ministério da Saúde mudou sua posição (mais uma vez) e, ontem, autorizou que estados e municípios usem toda a vacina contra covid-19 disponível como primeira dose, em vez de reservar metade do quantitativo para a segunda etapa da imunização. A orientação já vale para as cinco milhões de novas doses, a maior parte do Instituto Butantan, cuja distribuição foi anunciada no sábado. Ontem, chegou também um avião com o primeiro lote de vacinas adquiridas pela Covax Facility: um milhão de doses do imunizante de Oxford/AtraZeneca produzidos na Índia.
A estratégia de abandonar a reserva de vacinas foi aventada pela primeira vez em 19 de fevereiro, mas, dias depois, o ministério voltou atrás. Agora, ao que parece, é para valer. Segundo a pasta, a medida vinha sendo estudada há duas semanas e foi proposta devido à “garantia da segurança das entregas por parte dos fornecedores”, com base nos cronogramas do Butantan e da Fiocruz.
Por um lado, isso amplia o número de pessoas com algum grau de proteção. Por outro, se houver mais atrasos nas entregas – forçando a ampliação do tempo entre a aplicação das duas doses –, o tiro pode sair pela culatra, já que os efeitos na imunização ainda são pouco conhecidos. Vale lembrar que, neste momento, os dois institutos de pesquisa brasileiros dependem da importação de matéria-prima para que a produção siga conforme os planos.
Em tempo: o Instituto Serum, da Índia, informou que vai atrasar o envio da vacina de Oxford/AstraZeneca para o Brasil, Marrocos e Arábia Saudita. No caso brasileiro, o contrato previa a chegada de oito milhões de doses até julho. O laboratório também anunciou que deve adiar a entrega de doses para o Reino Unido e para o Nepal. Segundo a empresa, um dos problemas é a escassez de matéria-prima.
Segundo o ainda ministro da saúde Eduardo Pazuello, o Brasil contratou 562 milhões de doses de vacinas contra covid-19 que deverão chegar ao longo este ano – o que nos deixaria em posição relativamente confortável. O número inclui dois contratos recém-assinados com a Pfizer (cem milhões de doses) e a Janssen (38 milhões). Mas, segundo a reportagem da Folha, quase 40% de todas as doses anunciadas ainda têm algum tipo de entrave.
Entre elas, 140 milhões têm pendências de contrato: estão neste bolo 110 milhões de doses que a Fiocruz prevê produzir no segundo semestre e 30 milhões de doses do Butantan, que ainda constam como intenção de compra pelo Ministério. Fora isso, outras 68 milhões de doses são de vacinas que ainda não têm autorização da Anvisa para uso no Brasil: Sputnik V, Covaxin e Janssen.
Quanto à Sputnik V, a confusão continua à toda. Na semana passada, o Estadão publicou trechos de um áudio em que o dono da União Química, Fernando Marques, acusa a Anvisa de travar a aprovação da Sputnik V para favorecer a Fiocruz e o Butantan – que, segundo ele, estão “nas mãos” do PT, do PCdoB e do governador de São Paulo, João Doria (PSDB). A Anvisa rebateu: está há mais de dois meses esperando que a farmacêutica envie os dados sobre o imunizante.
Um levantamento a partir de informações de embaixadas argentinas mostra quantas vacinas foram acordadas e quantas foram efetivamente recebidas até agora por 23 países. Os números são descritos em reportagem do jornal La Voz e, no geral, indicam que as entregas ainda estão muito, muito aquém daquilo que foi contratado: a Argentina recebeu 6,6% do que comprou; o Brasil, 4,4%; a Alemanha, 4,9%; o Japão, menos de 1%… e assim por diante.
Claro que esses percentuais são mais preocupantes para nações que encomendaram poucas vacinas. O Reino Unido, por exemplo, recebeu mais ou menos 6% do que contratou. Porém, como encomendou mais de 420 milhões de doses para 67 milhões de pessoas, mesmo com os atrasos já deu para alcançar metade da população adulta.
O país que mais recebeu pelo que pagou foi a Índia, que adquiriu 176 milhões de doses (sendo 166 milhões da vacina de Oxford/AstraZeneca) e recebeu 77 milhões, ou mais de 43%. Ainda é muito pouco para sua enorme população, claro – até agora cerca de 44 milhões de pessoas receberam alguma dose, o que dá menos de 3% dos habitantes.
Depois vem o Chile, um dos países mais rápidos do mundo na vacinação. Das 36 milhões de doses contratadas, mais de dez milhões já foram recebidas. É quase 30% – mesmo percentual da população que já foi vacinada até agora. Por lá, as maiores apostas foram na Pfizer (dez milhões de doses compradas) e na Sinovac (dez milhões também). O resto se divide entre AstraZeneca, Janssen, Covax e algumas outras. No entanto, praticamente todas as doses entregues são da Sinovac – a Pfizer entregou menos de um milhão.
Já os Estado Unidos, que compraram 700 milhões de doses (300 milhões da Pfizer, 300 milhões da Moderna e outras cem milhões da Janssen), receberam 135 milhões – quase 20%. Cerca de um quarto da população do país já tomou pelo menos uma injeção.
A média móvel de mortes no país bateu ontem seu 23º recorde seguido, chegando a 2.255. Em 14 estados e no Distrito Federal, esse número mais do que duplicou nos últimos 30 dias. Mesmo com os domingos sendo em geral dias de poucos registros de óbitos devido a represamentos, ontem foram mais de 1,2 mil computados.
No Rio e em São Paulo, a decisão sobre a junção de vários feriados em um longo feriadão de dez dias gerou conflitos entre os governadores e prefeitos. Em SP, foi o prefeito Bruno Covas (PSDB) quem decidiu pelo feriadão, o que foi criticado por João Doria. No Rio foi o contrário: o governo deve decretar a folga prolongada entre 26 de março e 4 de abril, enquanto os prefeitos da capital e de Niterói são contra.
Especialistas ouvidos pela imprensa tendem a rechaçar a ideia do megaferiado: pode haver redução da circulação em ônibus e comércio, mas ao mesmo tempo um convite ao aumento de festas e viagens. Em maio do ano passado, a cidade de São Paulo usou a estratégia do feriadão para manter as pessoas em casa. Não deu muito certo: o índice de isolamento só subiu entre 1% e 3%.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
O poder econômico começa a abandonar Bolsonaro - Instituto Humanitas Unisinos - IHU