04 Fevereiro 2020
O Estado não precisa ser mínimo, a desigualdade social está travando a economia, a mulher é dona do seu próprio corpo. Aos 62 anos, Armínio Fraga, ex-presidente do Banco Central, sócio fundador da Gávea Investimentos e um dos mais notórios economistas liberais do país, está de olho nos temas sociais. E diz que, no polarizado espectro político brasileiro, sua posição é de esquerda.
"Para o Brasil, as propostas que eu tenho feito, os estudos que eu tenho desenvolvido, me colocam à esquerda. Mas uma esquerda para valer, não é uma esquerda que fica dando dinheiro para rico", afirma, em entrevista concedida à BBC News Brasil em seu escritório em São Paulo. "É preciso falar em desigualdade de gênero, de raça, em homofobia, em tudo aquilo que faz a gente viver em um lugar melhor".
Segundo o homem que comandou o Banco Central durante o governo de Fernando Henrique Cardoso, não se trata de uma mudança radical de posicionamento. Ele diz que apenas está se dedicando mais à agenda de combate a privilégios que sempre fez parte de seus discursos, como em 2014, quando, coordenando a área econômica da campanha de Aécio Neves pelo PSDB, Fraga criticava o chamado "bolsa empresário", apelido dado pela oposição a medidas de proteção, subsídio e desoneração voltadas para empresas durante os governos petistas.
"Eu não acredito em um modelo que nem existe mais no mundo, um modelo comunista, com igualdade absoluta, ninguém acredita nisso. Mas o que nós temos aqui é muito, muito fora de qualquer razoabilidade."
"Hoje em dia ficou muito claro que tem muita coisa que poderia ajudar [a combater] a desigualdade que também ajudaria no crescimento [da economia]'.
Apesar da grande simpatia que tem à agenda econômica comandada pelo colega liberal, o economista e ministro da Economia, Paulo Guedes, Fraga é bastante crítico em relação à postura do governo em outras áreas que nem sempre são percebidas como importantes para a economia, mas que, na visão dele, são.
"Os assuntos que chamam mais atenção e afetam não só os investidores de fora, mas sobretudo nós mesmos, aqui dentro, têm a ver com meio ambiente, têm a ver com questões identitárias em geral, uma postura agressiva, às vezes até estimulando uma certa truculência".
Definindo-se como um liberal progressista, Fraga, que também é associado fundador do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (Ieps), diz que o governo Bolsonaro é mais autoritário que liberal e que, até o momento, o presidente não mostrou qual é o seu projeto de país. Vê, também, em um momento em que cerca de 500 mil pessoas esperam na fila para obter o Bolsa Família, uma "certa falência" do Estado.
Falando sobre o futuro político do Brasil, o economista não descarta participar ativamente da campanha de outro candidato à Presidência no futuro. Derrete-se em elogios ao apresentador Luciano Huck, colega de Fraga no conselho consultivo do movimento Agora, do qual Huck faz parte. "O Luciano é uma pessoa de espírito público, de coração, conhece esse Brasil como poucos."
A entrevista é de Lígia Guimarães, publicada por BBC News Brasil, 03-02-2020.
A economia começa a dar sinais de retomada, mas o investimento, que é o motor principal, está em níveis bem baixos. O que está faltando, na sua avaliação, para o investimento voltar a crescer?
Essa pergunta é fundamental, saber se o movimento, que é uma recuperação típica do pós-recessão vai se transformar num crescimento mais sustentado. Há um contraste realmente entre uma certa euforia dos mercados, que já vem do governo anterior, mas que continuou, e um comportamento muito tímido, de fato, do investimento. O investimento público está em níveis mínimos históricos. Acho que isso espelha a situação ainda muito precária do Estado em termos fiscais. Então está faltando ali.
O senhor acha que o investimento público baixo é inevitável, dado o momento das contas públicas?
É parte de um ajuste penoso, porque cortar investimento, no fundo, é comer semente. E mesmo alguém como eu, que acredita que há muito espaço para o setor privado investir em setores, inclusive alguns regulados, é muito difícil imaginar o Brasil se desenvolvendo plenamente sem o governo investir em áreas em que realmente só o governo pode.
Essa é a grande linha, eu diria, de resposta que precisa ser dada nessa área. Mas o investimento privado está muito tímido também. Um pouco disso tem a ver com capacidade ociosa, um pouco disso tem a ver com confiança, e acho que na confiança é que o governo pode trabalhar. Há uma sensação de um ambiente confuso, com temas que nem sempre são percebidos como importantes para a economia, mas que são.
O senhor acha que as polêmicas do governo acabam interferindo na vontade do investidor?
Ah, eu tenho bastante convicção em dizer isso.
Que tipos de polêmica o senhor acha que influenciam mais?
Os assuntos que chamam mais atenção e afetam não só os investidores de fora, mas sobretudo nós mesmos, aqui dentro, têm a ver com meio ambiente, têm a ver com questões identitárias em geral, uma postura assim agressiva, às vezes até estimulando uma certa truculência. A atuação em áreas importantes como a política externa, as questões de gênero, tudo isso pesa. Mesmo assim, alguma recuperação está acontecendo, essa é a recuperação da economia que quica como se fosse uma bola. Ela foi lá embaixo e ela volta. Então o desafio é grande, porque transformar uma recuperação cíclica num crescimento sustentado exige muita coisa.
Muita confiança, muito investimento, muito investimento de qualidade, em áreas sociais. O Brasil precisa criar oportunidades para as pessoas, é fundamental tudo o que se tem feito ao longo de muitos anos para combater a pobreza, isso ninguém questiona. Mas é preciso ir muito além. E esse muito além ele não só ajuda a reduzir as desigualdades com ele ajuda a crescer. Se investir na educação, investir na saúde, nas questões urbanas, nas favelas, nos transportes públicos, que as pessoas gastam horas hoje para ir trabalhar.
Tudo isso faz com que o Brasil seja um país menos produtivo e uma recuperação sustentável justamente exige isso. Agora vamos olhar o lado bom, só para eu não me alongar demais. Tudo aqui é mais ou menos, se formos comparar com os países mais avançados, com Noruega, com Estados Unidos...
O senhor se refere aos serviços públicos?
Serviços públicos, qualidade em geral do que se produz, tecnologia mais avançada, uma educação muito mais adequada do que a nossa, que ainda é um baita de um buraco que temos aqui. Então isso tudo, em um ambiente um pouco mais calmo, um ambiente um pouco mais iluminado, pensando assim no termo mais histórico da palavra, acho que poderia nos levar a uma situação muito melhor do que a atual. Não quero dizer que isso seja a minha previsão. No momento, infelizmente ela não é. Mas isso é uma possibilidade para nós ao longo do tempo, é nisso que a gente tem que apostar.
O senhor vem, de um ano para cá, falando bastante de desigualdade. E tem uma corrente que defende que o importante é combater a pobreza, e não a desigualdade. E o senhor tem falado muito, inclusive, que a desigualdade trava a nossa economia. O senhor podia explicar como a desigualdade trava a nossa economia, na sua visão?
Eu falei um pouquinho sobre isso e é verdade. A minha "tribo", isso é, os economistas mais liberais, historicamente focou mais na pobreza. Mas acontece que, hoje em dia ficou muito claro que tem muita coisa acontecendo que contribui para essa desigualdade ainda enorme que nós temos, embora ela tenha caído algo ao longo dos anos, muita coisa que poderia ajudar na desigualdade também ajudaria no crescimento.
O quê?
Educação, saúde, tudo aquilo que eu citei. Então acho que o que precisamos encarar aqui é uma situação em que o Brasil, primeiro: é de fato um dos países mais desiguais do mundo. Em função disso, surge aqui território fértil para populismo, para tudo que é tipo de aventura e isso tem nos prejudicado.
Quando o senhor fala em desigualdade, está falando em renda e em oportunidade?
Renda e oportunidade, com certeza. Mas, além disso, é preciso falar em desigualdade de gênero, de raça, em homofobia, em tudo aquilo que faz a gente viver em um lugar melhor. É disso que a gente está falando. O tema de gênero casa com a questão da pré-escola, a pré-escola é uma unanimidade. Como? Como construir alguma coisa que funcione? Adianta fazer só a pré-escola? Não, não adianta nada gastar um zin bilhão na pré-escola e depois para a criança ir parar em uma escola primária que vai desperdiçar todo o investimento que foi feito. Então falta uma grande estratégia que aborde essas questões, e que tem tudo a ver com desigualdade. Tudo, tudo, tudo a ver.
A desigualdade é mais associada a uma agenda de esquerda. O que mudou para o senhor falar mais disso de um tempo para cá e o que o senhor acha dessa dicotomia, dessa divisão?
Eu, no passado, falava.
É que o senhor está com mais foco nisso.
É que eu tenho escrito, às vezes eu escrevo, dou uma entrevista voltada para esse assunto, assim como tenho falado um pouco sobre a qualidade da nossa democracia. Me arriscando um pouco, porque não sou cientista político, mas falo como observador, a essa altura da vida, relativamente experiente. Eu tenho uma visão, é difícil rotular as pessoas, mas eu acho que eu sou um liberal progressista.
Acho que o Estado tem um papel, não acredito em Estado mínimo, ou pequeno. Acho que o Estado tem que ser um Estado que possa fazer certas coisas para toda essa trajetória de redução das desigualdades de fato acontecer, se materializar. Agora, em determinados momentos, o que se fala é contrastado com o que se tem no poder. Eu fazia essa crítica na época do PT usando essa expressão, que acho que é do Gustavo Franco, originalmente, brilhante, do "bolsa empresário". Eu falava isso desde lá de atrás.
Sobre privilégios?
Qual o sentido que tem ficar dando moleza para quem não precisa, quando o país precisa tanto do outro lado? Precisa investir no social de fato, investimento público e privado. Então é uma questão de referencial, é muito difícil dizer: a minha posição para o país A, B, C ou D vai ser sempre igual. Alguns países já são muito mais iguais em todas as dimensões do termo, outros não. Nós somos extremamente desiguais.
Eu não acredito em um modelo que nem existe mais no mundo, modelo comunista, com igualdade absoluta, ninguém acredita nisso. Mas o que nós temos aqui é muito, muito fora de qualquer razoabilidade. Então é nesse sentido.
As propostas que eu tenho feito, os estudos que eu tenho desenvolvido, me colocam à esquerda. Mas uma esquerda para valer, não é uma esquerda que fica dando dinheiro para rico. Mas não é uma esquerda radical, eu não me considero um Piketty, eu não acredito em imposto de renda de 70%. Acho que isso não funciona na prática, acho que nem é certo porque desestimula muito e é pouco viável na prática. Mas você ter aqui mecanismos que permitem a uma pessoa que ganha até R$ 4,8 milhões por ano, R$ 400 mil por mês, pagar 5% [de imposto] é uma desfaçatez completa.
Então a gente tem que acabar com isso. É difícil entrar em um debate mais profundo sobre política pública, política social, enquanto se convive com essas aberrações.
Quando o senhor fala de prioridade para combater a desigualdade, que medidas o senhor defenderia que deviam estar na nossa prioridade?
Seria o básico: educação pública de qualidade com alguma administração privada inclusive, pode ser. Saúde pública de qualidade, transporte público de qualidade, políticas urbanas de qualidade. Isso é um oceano de oportunidades para se investir, crescer mais e ser menos desigual. Esse é o jogo. Da onde vem o dinheiro? Essa é outra pergunta. Tudo bem, você tá falando aí, só está somando.
Eu estudei o assunto, muitos estudaram também, mas cheguei a uma conclusão que me surpreendeu, embora eu me considere um estudioso nos grandes temas da economia, em geral é uma das poucas vantagens de se ter 62 anos de idade. Há três grandes blocos de gasto que precisam ser revistos. Um deles é esse dos subsídios indevidos, tem a ver com desonerações, vantagens tributárias indevidas, e outros. Seria um terço do espaço para arrumar dinheiro para investir no social.
O segundo bloco é a Previdência. O governo fez uma reforma, uma boa reforma, acho que dá para dobrar o resultado numa próxima reforma que deveria ocorrer nos próximos cinco a dez anos. Um excelente avanço, a reforma em si do ponto de vista social é ok, mas ela geraria recurso para fazer muita coisa boa no social do outro lado, se ela fosse um pouco maior.
Então vamos lá: um bloco é essa coisa ali do patrimonialismo, um segundo bloco é a Previdência e o terceiro seria uma reforma do Estado. Aí teria um objetivo duplo: primeiro o de fazer o Estado funcionar melhor. Primeiro teria que ter um Estado onde as pessoas sejam avaliadas, e onde isso tenha peso.
É algo parecido com a reforma administrativa do governo?
É a reforma administrativa. Mas eu estou focando em uma coisa mais simples que eu, imagino, vai fazer parte dessa reforma que o governo está desenvolvendo, eu só sei do que eu leio pelo jornal, tem muita coisa, vamos ver o que o governo vai apresentar. Eu tenho focado, com colegas, em aspectos mais básicos que são: avaliar o funcionalismo público, de uma forma justa, onde não haja espaço para favoritismo, de uma forma que o Estado funcione melhor. Então as pessoas, para serem promovidas, vão ter que ter um histórico de RH e vão ser promovidas pela sua competência, pela responsabilidade que assumem, etc.
Depois tem o lado mais negativo. Quem for recorrentemente mal não vai ter promoção, eventualmente pode até ser demitido. Eu acho que daí não sai um ajuste fiscal a curto prazo, isso não existe, vai fazer um grande expurgo, é mais demorado. Mas nós temos um custo do funcionalismo no Brasil que é totalmente fora da curva. O gasto com funcionalismo, somado de funcionalismo e Previdência no Brasil, chega a 80% do total do gasto público, olhando o governo como um todo. No mundo todo está entre 50% e 60%, é muito maior. Então aí é que temos espaço para, em alguns anos — acho que levaria entre cinco a dez anos para ter todo o efeito — fazer uma revolução aqui. Ter dinheiro para gastar mais no social, para investir mais.
Eu tenho entrado nessa discussão chamando a atenção para a situação grave das nossas desigualdades, no plural, algumas eu posso falar com um pouco mais de ênfase, que eu conheço melhor, e do outro lado tentando mostrar soluções. De onde pode vir a resposta. Minha intervenção tem sido nessa linha. O que é isso, se isso é de esquerda, é um pouco de esquerda talvez. Mas por que? É porque estamos tão longe do outro lado que isso é necessário.
Agora falando um pouco de uma situação prática de desigualdade. Na recessão, muitas pessoas entraram na pobreza, a gente tem mais de 13 milhões de pessoas que vivem com menos de R$ 145 por mês. E na época, em 2017, o Banco Mundial e economistas liberais, como o Ricardo Paes de Barros, defendiam que se o país quisesse passar a recessão protegendo os pobres poderia ter feito uma opção em criar um colchão social, aumentar o Bolsa Família para que essas pessoas não fossem tão desprotegidas. E agora mesmo a gente vê o Bolsa Família voltou a ter uma fila de 500 mil pessoas. Daria para proteger essas pessoas mesmo com dificuldades fiscais?
Isso é um sinal de uma certa falência do Estado.
O senhor vê erros?
O que eu vejo é um erro sim, mas é um erro histórico que nos levou a essa situação de ter um gasto público alto para um país de renda média e mal direcionado nesses 80% que eu estou falando. Uma vez que se chegou a esse ponto, isso cria uma certa inércia, isso aí é uma espécie de catraca, não é fácil reverter. Vai ser um processo. No caso da Previdência, nós brasileiros temos discutido esse assunto há mais de 20 anos. Não dá para esperar mais 20 para resolver o resto. Mas também não dá para esperar da noite para o dia. Vamos ver agora a reforma administrativa que é que sai, nós temos tido a sorte de ter um Congresso que vive um momento de foco em muitas questões importantes.
Há algumas semanas, o secretário de cultura Roberto Alvim caiu do governo porque reproduziu um discurso e referências estéticas da propaganda nazista. Na ocasião, alguns economistas, até liberais, foram confrontados com isso e falaram olha, a polêmica do nazismo na cultura é ruim, mas não interfere na agenda econômica. O senhor concorda que uma coisa não interfere na outra? Dá para analisar a agenda econômica liberal separadamente?
Não, não dá, não dá, não dá para separar.
Eu conversei há um tempo com o Eduardo Gianetti e ele cobrou uma postura mais dura da equipe econômica, o Paulo Guedes, que deviam se pronunciar em situações como essa. O que o senhor acha?
Eu não tenho dúvidas, eu acho que sim, que seria o ideal. Paulo Guedes volta e meia fala que é um liberal democrata e qualquer um que pense em nazismo tem que repelir esse tipo de atitude do sujeito lá que foi demitido, o Roberto Alvim, isso é uma loucura completa. O presidente do Banco Central (Roberto Campos Neto), recentemente, acho que lá de Davos, ou voltando de Davos, fez comentários importantes sobre o meio ambiente. Disse 'pessoal, acordem, vocês não está entendendo: isso aqui vai ser uma barreira para a integração do país ao mundo ao qual nós pertencemos'.
Nós não pertencemos ao mundo autoritário, ou mesmo ao mundo insensível. Essa sensibilidade existe aqui no Brasil, tem uma minoria que vai lá e taca a serra e corta [as florestas, o meio ambiente]. Então precisamos ter um governo que, no fundo, responda aos anseios da população. Acho que é meio ambiente em geral. Não é só uma questão da Amazônia.
E é uma questão que influencia a economia, inclusive.
Então, isso tudo influencia. Eu acho bom, inclusive, no tema do meio ambiente sair do meio ambiente um pouco. Não que a Amazônia não seja importante, a Amazônia é crucial, e é muito delicada, todo mundo sabe disso. Se passar de um certo ponto não tem volta, aquilo não é uma camada de solo fértil gigante, é muito delicado aquilo tudo lá.
Mas tem outras coisas. Eu sou do Rio de Janeiro. Imagina se as águas do Rio de Janeiro, lido maravilhoso, fossem limpas. O que ia acontecer? A baía de Guanabara limpa, ia ser bom para nós mesmos. Nossa qualidade de vida, nossa saúde. Ia ser bom para o turismo, íamos atrair um turismo, provavelmente, de maior poder aquisitivo.
Os temas maiores de uma sociedade livre, tolerante, plural, têm impacto econômico sim. Uma coisa da cultura, é onde as pessoas querem viver. Hoje estamos vendo muita gente indo embora do Brasil, é uma tristeza, uma tragédia.
Isso pode ter impacto no nosso futuro?
Só tem, só tem. É a famosa fuga. De talentos, de gente que tem garra, não tem às vezes nem dinheiro nem educação e vai no peito, na raça, e se vira, e em duas três gerações consegue progredir, existe talvez mais espaço pra isso em outros lugares. E as pessoas vão.
Mas o senhor acha que por parte do mercado financeiro, em nome dessa agenda liberal, falta um posicionamento mais duro em relação a essas polêmicas? Da equipe econômica?
Eu acho que as pessoas estão se posicionando. As defesas estão ativadas. Eu diria que o sistema é ameaçador, e nós não podemos achar que uma boa democracia é um dado. Não é. E o mundo está repleto de exemplos, mas existem sim, eu diria, reações e defesas que estão funcionando. O governo vem atacando sistematicamente a imprensa. Isso é um sinal terrível. Todo mundo sabe que, em uma sociedade em que não há imprensa livre, o arbítrio reina e a incerteza aumenta imensamente.
Daí você fala 'eu vou querer me instalar aqui nesse país, construir uma fábrica com 30 anos de horizonte?'. Não vou, vou para outro lugar. Nós mesmos. Vamos sempre nos lembrar: aqui existe uma certa obsessão com o investimento estrangeiro. Mas o que importa mesmo é o nosso, e o nosso está fraquinho também. Ele pode voltar. A bolsa subir tem algum impacto, porque as empresas podem emitir ações a um preço mais alto e investir. Esse mecanismo pode até começar a funcionar. Mas estamos ainda sendo bombardeados de incertezas.
Mas o senhor acha que essas incertezas políticas, essas polêmicas podem atrapalhar a agenda econômica do governo?
Pode também. Pode, pode. E se isso gerar uma reação social maior, como nós já vivemos aqui, em 2013, com certeza pode. Mas mesmo não chegando a um extremo, como se vê agora no Chile, pode sim.
Em 2014, o senhor coordenou a equipe da campanha do candidato à Presidência Aécio Neves, que tornou-se réu por suspeita de corrupção, de receber propina do empresário Joesley Batista. O senhor se arrependeu de ter coordenado? E o senhor voltaria a fazer esse trabalho por outro candidato à presidente?
Não me arrependi não. Eu ali me liguei a um grupo do qual fiz parte, que era o PSDB mais assim, original, e eu enxergava ali traços de um Brasil velho, mas não enxergava algo assim mais escrachado. A situação depois, a gravação do Aécio, foi realmente uma situação muito triste. Mas eu enxergava um governo que fosse ser de continuidade com a linha Fernando Henrique, que me parecia muito boa. E eu tive espaço para trabalhar. Depois eu não sei o que teria acontecido. É muito fácil olhar para trás. Lá, naquele momento, eu estava engajado. Era uma campanha muito censurada, muito policiada, muito patrulhada.
Patrulhada pelo partido, o senhor diz?
Pelo populismo, no caso, do governo, PT e seus aliados, que operavam bem as ferramentas que eles tinham de propaganda, tudo o mais. Foi uma campanha pesada. Mas eu não me arrependo não, acho que faz parte, a gente tem que aprender a lidar com isso. E entender inclusive, que aquele modelo, depois, explodiu o país. A economia do Brasil foi para o vinagre. E acho que essa relação de causa e efeito precisa ser bem entendida. Eles foram para um modelo velho, que no geral é regressivo, inclusive, do ponto de vista distributivo, e deu tudo errado. Como alguns tentaram dizer, eu mesmo disse em debate e escrevi, até bem antes, isso está tudo dando errado.
Agora, hoje, isso é uma pergunta muito pessoal. Eu tenho bastante experiência e tenho, portanto, alguma capacidade de ajudar. E eu acho que é meu dever, se eu puder ajudar, ajudar um governo com o qual eu me identifique.
O senhor está participando do conselho consultivo em torno do Luciano Huck.
Isso, do Agora.
Como é a sua interlocução com ele?
É excelente, o Luciano é uma pessoa de espírito público, de coração, conhece esse Brasil como poucos. As pessoas enxergam ele no programa, mas elas esquecem que, a cada programa desse eles passam por dois cantos do Brasil, tipicamente muito pobres, conversam com as pessoas, visitam a escola, visita o posto de saúde onde tem. Então ele tem na alma dele uma vontade de ajudar e de repente surgiu para ele esse espaço e ele está indo, acho que, a essa altura, nem ele próprio sabe onde vai parar.
Mas vocês têm tido reuniões frequentes?
O movimento Agora, do qual ele faz parte, criou um conselho consultivo do qual o Luciano, o Paulo Hartung e eu fazemos parte. E nós conversamos assim, de vez em quando, não é uma coisa muito intensa. Mas nós conversamos, em geral, com pessoas de outros partidos, os que são políticos, que não é o meu caso, mas eu converso também, converso com muita gente.
Acho que é uma fase de construção de caminhos, eu tenho muita convicção de que o caminho que deu errado, o governo Dilma, tem que ser evitado a todo custo, mas eu também tenho sido bastante crítico do governo atual em vários aspectos, não em todos. Mesma coisa para o governo Dilma, não em todos, mas em muitos. E eu acho que nós podemos fazer melhor, alguma coisa mais pelo meio, mais liberal para valer, mais social para valer, as duas coisas.
Pelo que falamos estamos em um momento em que temos uma agenda liberal, que combina com a sua visão para o país, e temos essas polêmicas, esses retrocessos que o senhor citou em outras áreas. Quando o senhor olha para o futuro, no curto prazo, em cinco, dez anos, o senhor está mais otimista ou mais pessimista?
Estou mais para preocupado, pelas razões que nós discutimos. Nós ainda somos um país que tem um Estado que vive uma precariedade enorme nas suas contas. Somos um país imensamente desigual e temos tido dificuldade em crescer de maneira sustentada. O Brasil dá esse voozinho de galinha e tal, mas logo cai numa recessão e volta. Então nós temos que fugir disso.
Na agenda atual existem alguns itens importantes: a reforma da Previdência foi feita, é um avanço, vai precisar mais, mas valeu muito a pena. Vai ser interessante acompanhar esse ano como vão evoluir a reforma tributária, e ela precisa ser bem feita, e como vai ser exatamente essa reforma administrativa e se ela é viável. Seriam dois passos muito importantes num contexto em que muito mais precisará ser feito. São dois pilares que, inclusive, não acho que sejam muito ideológicos.
O imposto sobre consumo tende a ser regressivo, porque os pobres consomem praticamente toda a renda e os ricos poupam, então, proporcionalmente, eles consomem muito menos. E aí o governo vem também soltando algumas ideias, vamos ver o que vem, em relação a Imposto de Renda, essa brechas, o que pode ser feito. Na reforma administrativa, a oportunidade é enorme também. Aí as resistências, acredito, vão ser muito grandes, Brasília é uma cidade de funcionários públicos. Eu estou curioso para ver exatamente para onde isso vai.
Eu apostaria numa reforma mais simples, que não precisaria nem mexer na Constituição, um pouco menor na linha do que descrevi aqui no início da conversa. Isso que eu disse é bem óbvio e tenho a impressão que isso vai estar na proposta. Me preocupa um pouco a obsessão em não mudar nada para os funcionários atuais. Eu realmente sou contra isso. Eu acho que os funcionários atuais têm que ser avaliados.
Por quê?
Eles têm que ser avaliados como todos, como tudo o que se faz com dinheiro público. É algo que se deve à sociedade. As pessoas precisam ser avaliadas, para que elas possam se aprimorar, se aperfeiçoar, melhorar, e esse incentivo têm que existir. Eu não defendo no governo um modelo agressivo de empresa privada, de jeito algum. Mas nós estamos no polo oposto. Não há qualquer avaliação que preste. Isso precisa acontecer porque nós, brasileiros, merecemos muito mais do que o Estado tem podido entregar. Não vou dizer que não se entregue nada, muita coisa melhorou nos últimos 30 anos. Mas pode melhorar muito mais.
Essas são medidas econômicas que podemos esperar para ver. E nas outras áreas?
Eu geralmente acho que o quadro político precisa evoluir na direção de discussões mais programáticas mesmo. Assim, olha: aqui está uma proposta de país.
Pensar um projeto de país?
É. Isso não está muito claro. Existia um projeto da social-democracia, depois passou-se o bastão para o projeto do PT, ele avançou também, depois descarrilou. Agora tem uma tentativa liberal, mas que não é tanto, essa que é a verdade, nosso presidente não é liberal.
Existe esse conceito de liberal na economia e conservador nos costumes.
Conservador ou autoritário, né? Não é só conservador. Não, eu entendo, as pessoas têm o direito de ter as suas preferências, por exemplo, a mulher. Eu acho que a mulher é dona do seu corpo, ela faz o que quiser. Se tem uma pessoa que tem uma religião, que quer ter oito filhos, que tenha. Outra não quer, não tenha. Esse é um tema atômico de falar, mas eu não sou político, falo o que eu acho. A mulher tem que ser dona do seu corpo. Ponto. Isso é o que eu acho. Se vou apanhar ou não, não estou preocupado, não sou candidato. Agora faz falta esse tipo de coisa.
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Arminio Fraga: 'Minhas propostas me colocam à esquerda, mas esquerda para valer, não a que dá dinheiro para rico' - Instituto Humanitas Unisinos - IHU