08 Março 2021
Da antiga cidade suméria, hoje conhecida pelo nome de Tell-al-Muquayyat e na qual se realizou o tão esperado encontro inter-religioso, Abraão partiu para a sua missão que une os destinos de judeus, cristãos e muçulmanos. Segundo o Pe. Jean Louis Ska, biblista, “a viagem de Abraão é um ato de fé e obediência. Para o povo de Israel, Abraão se torna um exemplo, um modelo sobre o qual é possível traçar a própria identidade”.
A entrevista é de Federico Piana, publicada por Vatican News, 06-03-3021. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
A figura de Abraão está no centro da viagem do Papa Francisco ao Iraque. A etapa da antiga Ur dos Caldeus, na qual se realizou nesse sábado o encontro inter-religioso com o pontífice, é uma das mais importantes e simbólicas.
Foi a partir dessa cidade, situada a poucos quilômetros de Nassiriya e hoje conhecida pelo nome de Tell-al-Muquayyat, que Abraão falou pela primeira vez com Deus e da qual iniciou a sua missão que liga profundamente os destinos de judeus, cristãos e muçulmanos.
“O povo de Israel viu no seu antepassado Abraão um exemplo e um modelo. E, aos poucos, lendo, relendo e reescrevendo as histórias sobre ele, o povo de Israel acrescentou a essas mesmas histórias elementos que permitem fixar e delimitar a sua própria identidade como povo”, explica o Pe., biblista de renome internacional erudito e professor emérito do Pontifício Instituto Bíblico de Roma.
A viagem de Abraão começa justamente a partir de Ur dos Caldeus?
De Ur dos Caldeus, ele foi se estabelecer na Terra de Canaã e, pouco tempo depois, se mudou para o Egito. Ora, esses são os dois lugares onde o povo de Israel também esteve no exílio. É uma ilustração daquilo que diz o Midrash, a exegese bíblica da tradição judaica: aquilo que aconteceu aos pais acontece aos filhos. E, portanto, os filhos de Abraão, os seus descendentes, se reconhecem nele, que viveu as grandes etapas da história do povo. Acrescento um elemento: o início da história de Israel é marcado por um ato de fé e de obediência. É Deus quem chama Abraão, que o faz partir de Ur dos Caldeus, como diz o livro do Gênesis no capítulo 15. E o ato de obediência de Abraão marca toda a história de Israel.
Foto: Reprodução Vatican Media
A viagem simboliza a fé?
É uma viagem marcada pela fé. É o chamado de Deus que leva Abraão a partir. E isso antecipa aquilo que é dito no Novo Testamento por Jesus: “Eu sou o caminho, a verdade e a vida”. Pôr-se a caminho é uma imagem que atravessa todo o Antigo e o Novo Testamentos, porque é a imagem da fé. Nos Atos dos Apóstolos, os discípulos são chamados de “discípulos do caminho”, e isso tem início em Abraão.
Abraão jamais teve dúvidas da conveniência de iniciar a viagem?
Acho que não. Depois da viagem de Abraão, vem o Êxodo. E o Êxodo é a imagem mais importante da revelação de Deus no Antigo Testamento. O Deus do Antigo Testamento, pai de Jesus Cristo, define-se como aquele que fez Israel sair do Egito, portanto aquele que leva a fazer uma experiência de passagem da escravidão para a liberdade. E o Deus do Antigo Testamento não é apenas aquele que realiza tal gesto, mas, quando se revela no monte Sinai, ele pede a Moisés que construa uma tenda como santuário: uma tenda que se desloca com o povo. A peregrinação não é a peregrinação a um templo, mas sim uma peregrinação com o templo. Deus está presente durante a viagem, e ver Deus, como afirma o Padre da Igreja Gregório de Nissa, significa seguir Deus através do deserto rumo à terra prometida. Imagem que também se encontra no Evangelho de João, quando lemos que o Verbo se fez carne e armou sua tenda no meio de nós.
Abraão era um nômade?
Certamente. Pelos textos que temos, sabemos que ele era um nômade, assim como Isaac e Jacó. Era proprietário de rebanhos e se deslocava com eles de acordo com as regras da transumância. E essa imagem, provavelmente, foi reinterpretada e usada pelos escritores bíblicos, pelo povo judeu, para definir a sua própria identidade como povo, do ponto de vista teológico e espiritual. No fundo, a vida é uma viagem, como as viagens de Abraão. O que é interessante é ver que o Deus do Antigo Testamento não é apenas um Deus local que habita no templo de Jerusalém, mas é, acima de tudo, um Deus pessoal. Por isso, a primeira definição de Deus no Antigo Testamento não é o Deus de Jerusalém, o Deus de Sião, mas sim o Deus de Abraão, Isaac e Jacó. Passa-se do Deus local ao Deus pessoal.
Os encontros que Abraão teve com Deus também foram pessoais...
Talvez a cena mais paradigmática que fornece a mensagem mais significativa dos relatos de Abraão se encontre no capítulo em que Deus aparece a Abraão na forma de três peregrinos, três viajantes, que param na frente da sua tenda. Ele os recebe preparando uma refeição durante a qual um dos personagens anuncia a Abraão o nascimento de um filho. A sua esposa, Sara, está atrás da tenda, ouvindo, e começa a rir consigo mesma, perguntando-se: como é que eu, que tenho quase 90 anos, posso ter um filho? E Deus pergunta: por que Sara ri? E Sara responde: eu não ri... Em suma, é a cena de um encontro com Deus inserido na cotidianidade, uma cena de hospitalidade. Deus chega de repente, passando pelo caminho. O encontro com Deus, segundo o que diz o livro do Gênesis, não se limita a momentos excepcionais nem a lugares particulares. Até mesmo uma refeição pode servir para encontrá-lo.
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Papa no Iraque: a etapa em Ur dos Caldeus, onde começou a viagem de Deus com o ser humano. Entrevista com Jean Louis Ska - Instituto Humanitas Unisinos - IHU