05 Março 2021
"Na 'terra arrasada' iraquiana, a própria presença de Francisco também será um lembrete de que o delírio daqueles que contaram a mentira de uma expansão da democracia ocidental acabou causando dor e destruição, aniquilou o Estado laico, alimentou o terrorismo e o fundamentalismo, guerras civis, atentados sangrentos e crises econômicas. É um alerta aos Estados Unidos e aos políticos israelenses de direita que ontem jogaram lenha na fogueira para que Bush iniciasse uma aventura militar no Iraque e hoje alimentam incessantemente um confronto com o Irã", escreve Marco Politi, jornalista, ensaísta italiano e vaticanista, em artigo publicado por Il Fatto Quotidiano, 04-03-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.
O Papa Francisco retorna ao cenário internacional. É uma missão que está no centro nevrálgico da "terceira guerra mundial em pedaços", que Bergoglio denunciou desde o início de seu pontificado como um tema crucial do século XXI. A viagem ao Iraque, que começa na sexta-feira e termina na segunda-feira, testará o físico do papa de 84 anos que em apenas três dias se deslocará entre Bagdá, Najaf, Nassiriya, Ur, Mosul, Erbil, Qaraqosh, encontrando-se com fiéis católicos e autoridades políticas de um país destruído pela guerra e dilacerado por conflitos, dialogando com o líder espiritual dos xiitas iraquianos al-Sistani, confrontando-se com os líderes da região autônoma curda, experimentando a emoção de estar aos pés da pirâmide em degraus de Ur - com quatro mil anos de idade - no lugar de onde a tradição faz Abraão partir para a Terra Prometida.
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O voo para o Iraque - interrompendo o jejum de viagens imposto pela pandemia - é uma peregrinação religiosa e ao mesmo tempo um evento altamente político. A missão situa-se na linha de João Paulo II, que pretendia visitar a terra de Abraão já por ocasião do jubileu do ano 2000, mas acima de tudo foi um ferrenho opositor da guerra do Iraque desencadeada por George W. Bush em aliança com Tony Blair. Se hoje um papa romano pode se apresentar abertamente no Iraque, falando a todas as etnias, correntes religiosas e nacionalidades, é porque Karol Wojtyla em 2003 se opôs ativamente à agressão de Bush motivada pela falsa alegação de que Saddam Hussein possuísse armas de destruição em massa. O papa polonês mobilizou a diplomacia do Vaticano em todo o mundo, reuniu as principais igrejas ao seu redor, tomou medidas para garantir que Estados católicos como México e Chile impedissem a formação de uma maioria no Conselho de Segurança da ONU a favor da intervenção de Bush.
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Nessa linha, o papa argentino prosseguiu com sua própria força e criatividade. Wojtyla dizia que o Islã não deve se tornar o "inimigo" por excelência no século XXI e Bergoglio assinou o pacto de fraternidade entre cristianismo e islã com o grande imã de Al Azhar, centro espiritual dos sunitas, estabeleceu relações com o presidente-teólogo xiita iraniano Rohani e, no sábado, se encontrará com o líder xiita al-Sistani.
No coração do Oriente Médio, atormentado há anos pelo terrorismo fundamentalista do Isis, Francisco chega para reafirmar que as religiões devem colaborar juntas em um espírito de fraternidade e contrastar todo tipo de fundamentalismo. Em nome da igualdade civil e da justiça social. “O Papa não vem para defender e proteger os cristãos... ele não é o chefe de um exército - declarou o patriarca caldeu, cardeal Luís Raphael Sako - Francisco vai encorajar os cristãos, vai levar-lhes conforto e esperança para ajudá-los a perseverar, ter esperança e também para colaborar com outros cidadãos”. Mas o Papa não vem para alimentar o espírito de facção: “Ele vem para todos os iraquianos, não apenas para os cristãos. Ele sabe que todos sofreram, não apenas os cristãos”.
Mapa do Iraque, em destaque as localidades que serão visitadas pelo Papa Francisco. Fonte: Universidade do Texas
Num dos grandes epicentros da crise internacional, Francisco chega trazendo a mensagem de que Deus é o pai de todos e que todos os filhos de Deus devem ser salvaguardados e respeitados: sejam eles maioria ou minoria, sunitas ou xiitas, judeus, cristãos, yazidis, seguidores de outras visões de mundo. Mas na "terra arrasada" iraquiana, a própria presença de Francisco também será um lembrete de que o delírio daqueles que contaram a mentira de uma expansão da democracia ocidental acabou causando dor e destruição, aniquilou o Estado laico, alimentou o terrorismo e o fundamentalismo, guerras civis, atentados sangrentos e crises econômicas. É um alerta aos Estados Unidos e aos políticos israelenses de direita que ontem jogaram lenha na fogueira para que Bush iniciasse uma aventura militar no Iraque e hoje alimentam incessantemente um confronto com o Irã.
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Já um ano depois de ser eleito, voltando de sua viagem à Coreia, o Papa Bergoglio enfatizou: “Devemos ter memória! Quantas vezes, com esta desculpa de deter o injusto agressor, as potências se apoderaram dos povos e travaram uma verdadeira guerra de conquista! Uma só nação não pode julgar ...”. Cabe às Nações Unidas decidir. Justamente dos EUA, durante a sua visita à ONU em 2015, Bergoglio quis salientar que “não faltam provas graves das consequências negativas das intervenções políticas e militares não coordenadas entre os membros da comunidade internacional”. Em outras palavras, o unilateralismo falhou. No Afeganistão como no Iraque.
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Nesse sentido, um dos objetivos desta viagem é incentivar o novo governo Biden a relançar o multilateralismo para chegar a soluções de paz, sem se abandonar à deriva de novas guerras frias. Isso vale para as relações entre o Ocidente e a China. Especificamente vale para o médio Oriental para a retomada do diálogo entre Washington e Teerã, que para a Santa Sé deveria desembocar em um equilíbrio regional de paz entre iguais, sem apoiar os impulsos hegemônicos do novo eixo israelense-saudita. Diante do Congresso dos Estados Unidos, em setembro de 2015, o papa argentino alertou que devemos ter cuidado com "toda forma de polarização" que divide o mundo em dois campos: o bem ou o mal, ou justo e pecadores ... Na política interna e na política externa.
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A viagem do Papa ao Iraque é uma peregrinação, mas também um evento altamente político. Artigo de Marco Politi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU