15 Janeiro 2020
Na Quarta-feira de Cinzas de 2003, um enviado do alto escalão do Vaticano visitou a Casa Branca para entregar em mãos uma carta do Papa João Paulo II ao presidente George W. Bush. O presidente pôs a carta de lado e logo começou um debate pontual e, por vezes, acalorado com o emissário, o Cardeal Pio Laghi, sobre o plano do governo de entrar em guerra contra o Iraque.
No mês seguinte, eu fiz a primeira de várias tentativas ao longo dos anos para conseguir uma cópia da carta via Lei de Liberdade de Informação. No mês passado, o arquivista da Biblioteca Presidencial George W. Bush me contatou com a notícia de que a minha solicitação havia sido concedida.
O artigo é de Paul Moses, publicado por Commonweal, 13-01-2020. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Gostaria eu de dizer aqui que a carta traz informações surpreendentes, mas a oposição do Papa à guerra de Bush contra o Iraque já é bem conhecida. Visto que o presidente Donald Trump levou as relações americanas com o Irã e o Iraque ao limite de uma catástrofe com a sua ordem para assassinar o comandante militar iraniano Qasem Soleimani no dia 3 de janeiro em Bagdá, vejo este momento como uma boa hora para recordar as objeções feitas por João Paulo II contra a guerra do Iraque e a reação morna de muitos católicos americanos.
Na carta, o papa não detalhou a sua argumentação contra a guerra. Em vez disso, pediu que Bush ouvisse o que Laghi teria a lhe dizer. João Paulo observa, na carta, que, ao enviar Laghi, ex-núncio papal nos EUA, ele estava enviando alguém “que, tenho certeza, o senhor conhece”. Laghi era um amigo da família Bush; tinha sido um parceiro de tênis do ex-presidente George H. W. Bush.
“Peço que o receba como o meu Enviado pessoal e escute a mensagem que ele traz em meu nome”, escreveu o Papa. “Esta mensagem representa o que se encontra nas profundezas do meu coração para o bem de todas as pessoas”.
Embora setores da imprensa e membros do Congresso de ambos os partidos engoliram as afirmações que Bush fez sobre o perigo que o Iraque representava, o papa e seu enviado, não. Em um relato detalhado que deu em um discurso proferido sete meses depois, Laghi descreveu o encontro.
Quando Bush dominava a conversa, Laghi lhe dizia: “Eu não vim aqui só para ouvir, mas também para pedir que escute”. Quando Bush alegou que a al-Qaeda estava treinando soldados no Iraque, Laghi replicou: “Tem certeza? Onde está a prova?”
Estas perguntas também seriam adequadas para Trump, na medida em que este faz afirmações enganadoras sobre o conflito com o Irã. Mas é difícil imaginar Trump tendo uma conversa longa e detalhada como a que Laghi e Bush tiveram.
“Nós dois conversamos por um longo tempo sobre as consequências da guerra”, disse Laghi. “Eu perguntei: ‘O senhor percebe o que vai acontecer dentro do Iraque ao ocupar o país?’ Desordem, conflitos entre xiitas, sunitas e os curdos – tudo o que, na realidade, aconteceu”.
Bush respondeu que o resultado seria a democracia. O presidente tentou encerrar a reunião com um tema comum, falando da sua oposição ao aborto e à prática de clonagem. “O cardeal respondeu que estes temas não eram o objetivo da missão”, escreveu o sítio eletrônico Catholic News Service.
A carta deixa claro que São João Paulo II apoiava plenamente aquilo que Laghi dizia: desse encontro com o presidente, o cardeal contou aos repórteres que a guerra seria “tanto injusta como ilegal” porque carecia da sanção das Nações Unidas. E a carta, juntamente com a diplomacia do alto escalão envolvida, mostra o quão profundamente convencido estava o Papa de que esta guerra em particular constituía um desastre, um desastre que abalaria as relações entre cristãos e muçulmanos, assunto tão caro a ele. O papa não iria se surpreender com as afirmações falsas de que o Iraque possuía armas de destruição em massa.
Muito embora o papa tivesse usado de toda a sua influência para tentar impedir a guerra, a reação entre os católicos americanos foi notavelmente fria. Com o início da guerra três semanas depois de Laghi se reunir com Bush, Dom Edwin O’Brien, então vigário para os serviços militares dos EUA, publicou uma carta aos capelães católicos em que dizia: “Dada a complexidade dos fatores envolvidos, muitos dos quais compreensivelmente permanecem confidenciais, é totalmente apropriado aos membros das nossas forças armadas suporem a integridade do nosso protagonismo e seus juízos e, portanto, levar a cabo os seus deveres militares em boa consciência”.
Os bispos católicos americanos emitiram uma carta pedindo a Bush que “recue diante da guerra”, mas ela recebeu pouca atenção – possivelmente porque a credibilidade moral da Igreja fora atingida pelo escândalo de abuso sexual clerical, mas também porque a maioria dos bispos não se pronunciou a respeito da guerra em suas dioceses. Na Diocese do Brooklyn, onde vivo, o jornal diocesano publicou inúmeras colunas que contestavam a visão de João Paulo II sobre a guerra a ponto de eu acabar escrevendo um artigo em defesa do pontífice. Na época, pareceu algo estranho de se fazer: ter que defender o papa da cobertura feita por um jornal diocesano.
Outros buscariam reinterpretar o significado claro daquilo que o papa e autoridades vaticanas estavam dizendo, ou argumentar que, como líder religioso, João Paulo carecia de competência para aplicar princípios da guerra justa em um caso específico. “As dúvidas levantadas aos porta-vozes religiosos são inescapáveis: Com base em que conhecimento especializado o senhor advoga a política X contra a política Y?”, escreveu o Reverendo Richard John Neuhaus. “Com que autoridade o senhor fala?”
O Papa Francisco enfrentará perguntas desse tipo também na medida em que tentar acalmar as tensões que, mais uma vez, ameaçam deteriorar as relações entre muçulmanos e cristãos – as quais ele, como João Paulo, se esforça para costurar. Francisco começou com uma declaração após a oração do Angelus, em 5 de janeiro, advertindo, como os seus antecessores, que “a guerra traz apenas morte e destruição”. E acrescentou: “Convido todas as partes a manterem acesa a chama do diálogo e do autocontrole e a evitarem a sombra da inimizade”.
“Autocontrole”: uma escolha interessante de palavras para aplicar aos líderes mundiais: mais uma razão para se juntar na repetição das palavras de São João Paulo II por Francisco: “Imploro a Deus que o inspire e inspire a todos os encarregados da mais alta autoridade civil a encontrar um caminho para a paz duradoura, o mais nobre dos empreendimentos humanos”.
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Advertências não ouvidas. Como a diplomacia vaticana fracassou em impedir a guerra do Iraque - Instituto Humanitas Unisinos - IHU