13 Janeiro 2020
O assassinato de Qassem Soleimani alojou os Estados Unidos cada vez mais profundamente em uma luta religiosa de séculos. Essa luta dentro do Islã teve início no momento da morte do profeta Maomé, em uma disputa pela sucessão à liderança da comunidade islâmica. Chegou a um ponto decisivo quando Hussein bin Ali, neto de Maomé, foi morto nos campos de Karbala, perto de Bagdá, no Iraque, e foi enterrado em Najaf. Sua morte deu origem a um cisma entre xiitas, os seguidores dos descendentes de Ali e os sunitas, que reconheceram uma sucessão que começou com Abu Bakr, amigo íntimo de Maomé. Essa luta continua até o presente.
O artigo é de James J. Fox, publicado por National Catholic Reporter, 13-01-2020. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
Os xiitas sempre foram a minoria no Islã. Hoje eles vivem divididos pelo mundo islâmico de população majoritariamente sunita. Eles encontram-se em significativo número na Síria, Líbano e Turquia, em áreas do sudoeste do Iraque, no Kuwait, Iêmen, Emirados Árabes Unidos, Omã, Afeganistão, Paquistão e Índia e mesmo na Arábia Saudita. Somente no Azerbaijão e Irã os xiitas são nacionalmente dominantes. Mas mesmo como uma minoria, os xiitas estão estimados em número acima dos 320 milhões.
Mapa de distribuição das populações xiitas e sunitas. Sunitas estão destacados em verde claro, e xiitas em verde forte. Fonte: CIA | Wikicommons
Na maioria dos lugares os xiitas se veem historicamente oprimidos e em desvantagem populacional. Sua luta pela liberdade religiosa e posição social é um aspecto profundamente enraizado de suas vidas e é comemorado no 10º dia do mês de Muharram em procissões religiosas que dramatizam o martírio de Hussein.
Em 1979, quando Sayyid Ruhollah Khomeini derrubou o xá e assumiu o controle do Irã, ele proclamou um reavivamento islâmico que coincidiu com o início do novo século, de acordo com o calendário islâmico. Para os xiitas oprimidos em todo o Oriente Médio, as declarações carismáticas do aiatolá Khomeini ofereceram grandes expectativas.
As primeiras agitações dos xiitas ocorreram no Iraque quando Khomeini pediu aos xiitas do sul do Iraque que derrubassem o governo de Saddam Hussein. Isso provocou uma sangrenta e cara guerra de oito anos (1980-1988) entre o Iraque e o Irã.
Durante essa guerra e apesar de um esforço de enfraquecer a guerra, o Irã ainda conseguiu apoiar os xiitas no Líbano após a invasão e ocupação de Israel pelo sul do Líbano. O Hezbollah foi formado por seguidores religiosos do aiatolá e recebeu ajuda do Irã via Síria. Neste momento, foram estabelecidas conexões com os xiitas do Líbano e da Síria que nunca foram abandonadas.
A derrota das forças de Saddam Hussein no Kuwait e contra os EUA na invasão do Iraque e do Afeganistão trouxe importantes oportunidades para o reavivamento xiita. De Herat, no oeste do Afeganistão, através do Irã e sul do Iraque, até os xiitas na Síria e no Líbano — mesmo antes de meados do século cuja renovação xiita o aiatolá havia proclamado — surgiu a possibilidade de um eixo através do Oriente Médio ligando as comunidades dispersas dos xiitas.
Nas turbulências do Oriente Médio, uma figura passou a representar as esperanças dos xiitas: Qassem Soleimani. Ele subiu nas fileiras da guerra Irã-Iraque e depois assumiu o comando da missão do Irã aos xiitas em apuros — primeiro no Líbano, depois na Síria e, com o surgimento do grupo Estado Islâmico com suas ideias militantes de supremacia sunita, no Iraque também. Ele era um comandante militar e estrategista, mas acima de tudo, para quem o seguia, era um defensor dos xiitas. Eu estive com os que lutaram por ele e era comumente referido, não como comandante ou general, mas como "Haj Qassem", um termo de carinho e respeito religiosos.
A morte de Soleimani teve significado maior que apenas o militar. Para os xiitas, seu martírio é comparável à morte de Hussein bin Ali. A maioria dos símbolos de poder dos xiitas foram invocados no seu enterro.
Seu caixão foi carregado por imensas multidões em profundo luto desde Bagdá até Karbala, onde Hussein morreu em batalha e em seguida para Najaf onde a tumba de Hussein é santuário principal de peregrinação para todos os xiitas. Dali, seu corpo foi levado para Mashhad, no Irã, o local do massivo mausoléu de outro santo martirizado dos xiitas, Ali al-Ridha conhecido como Imã Reza.
Certamente quando Soleimani estiver enterrado na sua cidade em Kerman, Irã, um santuário será construído em honra ao seu martírio, e ele terá lugar entre as mais reverenciadas figuras dos xiitas.
Uma reposta tática de curto-prazo criou memórias de longa duração na contínua luta religiosa. Algumas lutas são ferozmente partidarizadas e causam divisões afiadas. Mesmo no mundo sunita, Soleimani era aceito com um grau de respeito e, talvez de má vontade, com uma certa admiração como um comandante islâmico.
A geopolítica introduz uma diferente perspectiva e um diferente vocabulário. Para o Ocidente, Soleimani foi representado como um terrorista – ironicamente agrupando-o com opositores, como figuras sunitas tais quais o fundador da al-Qaeda Osama bin Landen e o califa do Daesh (Isis) Abu Bakr al-Baghdadi.
A geopolítica muda rapidamente; no Islã o que importa é o longo prazo.
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O significado religioso do assassinato de Qassem Soleimani - Instituto Humanitas Unisinos - IHU