03 Março 2021
Se a pandemia de Covid-19 não abrandar em 2021 e continuar matando milhões, não será porque na eterna guerra entre os patógenos e a humanidade a natureza irrefreável triunfa. “Será um fracasso humano e, mais precisamente, um fracasso político”, alertou Yuval Noah Harari, historiador e filósofo israelense, autor de Sapiens: de animais a deuses.
A reportagem é publicada por Infobae, 27-02-2021. A tradução é do Cepat.
A um ano da crise de coronavírus, avaliou que uma vez que hoje existem “o conhecimento e as ferramentas necessárias para prevenir que um novo patógeno se espalhe e cause uma pandemia”, caso vidas continuem sendo perdidas e a economia destruída, ou o SARS-CoV-2 se torne o início de uma onda de novas epidemias, seria apenas uma demonstração do despenhadeiro político. Porque a ciência está presente, diferente do que aconteceu com a peste negra e mesmo com a gripe de 1918. E hoje, inclusive, os humanos possuem um mundo virtual onde se refugiar do patógeno.
Então, se alguma coisa falhar, não existirá outro responsável a não ser a própria humanidade.
Em um artigo para o Financial Times, o best-seller de Homo Deus. Uma breve história do amanhã e 21 lições para o século XXI, resumiu, com uma perspectiva histórica ampla, o primeiro ano da Covid-19 e observou uma enorme diferença em comparação ao passado: “2020 mostrou que a humanidade está longe de ser indefesa. As epidemias já não são forças incontroláveis da natureza. A ciência as tornou um desafio administrável”.
Então, por que mais de 2,5 milhões de mortos no mundo? Por que economias inteiras em colapso e até países fechados? “Pelas más decisões políticas”, escreveu Harari, sem rodeios.
Durante a primeira onda da peste negra, quando morreu um terço da população da Inglaterra, ninguém pensou que Eduardo III a deveria ter impedido, porque os humanos não faziam ideia do que causava a doença, nem como poderia ser detida. Era uma calamidade natural, talvez a ira de deus, mas certamente não estava nas mãos de um monarca. Durante a gripe de 1918, mesmo com os avanços da ciência, as mentes mais brilhantes do mundo não puderam identificar o vírus e, portanto, muitas das medidas que foram tomadas não serviram e não teve como encontrar uma vacina, pois era buscada às apalpadelas.
Desta vez, ao contrário, a experiência foi radicalmente diferente.
“Os primeiros alarmes sobre uma potencial nova epidemia começaram a soar em fins de dezembro de 2019. No dia 10 de janeiro de 2020, os cientistas não só haviam isolado o vírus responsável, como também conseguido a sequência de seu genoma e publicado a informação online”, recordou Harari a respeito da cronologia do SARS-CoV-2. “Em poucos meses, ficou claro quais medidas podem atrasar e deter as cadeias de infecção. Em menos de um ano, houve produção em massa de várias vacinas eficazes. Na guerra entre os humanos e os patógenos, nunca os humanos tinham sido tão poderosos”.
Além da biotecnologia, muitos outros progressos permitiram que as sociedades não entrassem em colapso, como em um apocalipse, ou caíssem na fome. Em primeiro plano, destacou Harari, estão as tecnologias da informação.
Em 1918, era possível colocar em quarentena todos os que mostravam sintomas, mas não era possível rastrear os pré-sintomáticos, nem os assintomáticos, o que contribuiu para minar o êxito do isolamento, e a gripe continuou progredindo. “Ao contrário, em 2020, a vigilância digital facilitou muito o acompanhamento e a localização dos vetores da doença, razão pela qual a quarentena pôde ser mais seletiva e eficaz”, argumentou.
O mais importante da contribuição tecnológica foi que a internet permitiu – ao menos nos países desenvolvidos – um confinamento prolongado, sem que o mundo material e o mundo virtual entrassem em colapso.
Se durante milênios a produção agrícola dependeu das mãos humanas, hoje, apenas 1,5% da população dos Estados Unidos trabalha no campo, comparou Harari. Com isso, alimenta-se os 331 milhões de habitantes e também se exporta alimentos. A razão é tecnológica: “Quase todo o trabalho agrícola é feito por máquinas, que são imunes às doenças. Por conseguinte, o confinamento teve apenas um pequeno impacto na agricultura”.
Algo similar acontece com o transporte, tanto de alimentos como de outros bens. Se a peste negra passou por meio da rota da seda da Ásia para o Oriente Médio e daí, em barcos, para a Europa, foi pela necessidade de mão de obra humana nesses projetos. Ao contrário, o comércio mundial em 2020 funcionou mais ou menos constante porque poucos homens trabalham nele.
Houve a crise do papel higiênico nos Estados Unidos? As pessoas, então, compraram online e seu papéis chegaram em caixas com formulários postais da China, produzidos, empacotados e transportados por máquinas.
No século XVI, toda a frota mercante da Inglaterra podia transportar 68.000 toneladas de bens, com 16.000 tripulantes. Hoje, apenas um navio de Hong Kong pode levar quase 200.000 toneladas, com uma equipe de 22 pessoas. A única indústria de transporte que entrou em colapso foi a que se ocupa do movimento de humanos: a aviação comercial e o turismo. O volume de comércio marítimo global perdeu apenas 4%, ilustrou Harari.
Por acaso, um advogado se apresentou com um filtro de gatinho em uma audiência virtual diante dos tribunais, houve inconvenientes como esse, reconheceu o pensador, mas a justiça continuou sendo gerida.
A humanidade foi para o mundo virtual, porque o mundo material era inabitável até o controle do vírus letal, e muito da vida continuou de maneira digital. E a internet não entrou em colapso, diferente do que teria acontecido se, de repente, o trânsito sobre uma ponte física se multiplicasse monstruosamente. Na trincheira, ficaram médicos e enfermeiros, trabalhadores essenciais do comércio varejista e da segurança, e os entregadores que se tornaram a “fina linha vermelha que manteve viva a civilização”, conforme Harari os qualificou.
Contudo, o ano da Covid-19 expôs uma limitação do poder científico e tecnológico: nenhum tem o alcance para substituir a política. “Na hora de decidir uma política pública, temos que levar em conta muitos interesses e valores, e dado que não há uma forma científica de determinar quais interesses e valores são mais importantes, não há uma forma científica de decidir o que deveríamos fazer”, expôs o artigo.
“Por exemplo, ao decidir se se impõe um confinamento, não basta perguntar: ‘Quantas pessoas ficarão doentes de Covid-19, se não impormos o confinamento?’. Também deveríamos perguntar: ‘Quantas pessoas sofrerão depressão, se impormos o confinamento? Quantas pessoas receberão uma nutrição deficiente? Quantas ficarão sem escola ou perderão seus trabalhos? Quantas serão golpeadas ou assassinadas por seus parceiros?’”.
Ter contado com as ferramentas científicas para enfrentar o coronavírus foi só uma parte da equação, porque as medidas como o distanciamento social geraram um alto custo econômico e emocional. Isso foi um peso adicional à carga que a pandemia colocou sobre os ombros dos dirigentes mundiais.
“Lamentavelmente, muitos políticos não estiveram à altura desta responsabilidade”, avaliou Harari.
“Por exemplo, os presidentes populistas dos Estados Unidos e do Brasil minimizaram o perigo, negaram-se a fazer caso dos especialistas e, ao contrário, impulsionaram teorias conspiratórias”, ilustrou. “Não criaram um plano de ação federal sensato e sabotaram as tentativas das autoridades dos estados e os municípios de deter a pandemia. O descaso e a irresponsabilidade dos governos de Trump e Bolsonaro provocaram centenas de milhares de mortes evitáveis”.
A principal diferença entre o êxito científico e o fracasso político destacada pelo autor de Sapiens é a cooperação. Enquanto os cientistas do mundo compartilharam informação livremente e trabalharam juntos em benefício da pesquisa em geral, “os políticos não conseguiram criar uma aliança internacional contra o vírus e acordar um plano global”.
Assim, os primeiros meses de 2020 foram parecidos com “olhar um acidente em câmera lenta”: a onda de contágios e mortes avançou da Ásia para a Europa e depois para a América, sem que uma coordenação global de lideranças impedisse que a catástrofe tragasse o mundo.
“As duas principais potências, os Estados Unidos e a China, se acusaram mutuamente de ocultar informação vital, disseminar desinformação e teorias conspiratórias e inclusive de ter espalhado o vírus deliberadamente”, recordou. A batalha simbólica deixou baixas em campos materiais tão sensíveis como o equipamento médico. “Não foram feitos esforços sérios para reunir todos os recursos disponíveis, otimizar a produção global e garantir uma distribuição equitativa dos suprimentos”.
Em particular, destacou Harari, “o nacionalismo da vacina cria um novo tipo de desigualdade global entre os países que podem vacinar para a sua população e os que não”. Isso representa um destilado do erro político, porque revela que os dirigentes globais não compreendem um fato elementar da pandemia: “Enquanto o vírus continuar se espalhando em qualquer lugar, nenhum país pode se sentir seguro de verdade. Suponhamos que Israel e o Reino Unido tenham êxito e erradiquem o vírus dentro de suas fronteiras, mas que o vírus continue se espalhando entre centenas de milhões de pessoas na Índia, Brasil ou África do Sul, uma nova mutação de algum remoto povoado brasileiro pode tornar a vacina ineficaz e provocar uma nova onda de infecções”.
Apesar do papel positivo que as tecnologias da informação desempenharam durante a pandemia, têm também um lado B: “A digitalização e a vigilância colocam em risco nossa privacidade e aparam o caminho para o surgimento de regimes totalitários sem precedentes”, alertou o pensador israelense. “Em 2020, a vigilância em massa se tornou ao mesmo tempo mais legitimada e mais comum. Combater a epidemia é importante, mas merece a destruição de nossa liberdade no processo? Corresponde aos políticos, mais do que aos engenheiros, encontrar o equilíbrio adequado entre a vigilância útil e os pesadelos distópicos”.
Propôs algumas regras básicas que, mesmo em tempos de praga, são eficazes para proteger os indivíduos do que chamou de “ditaduras digitais”. A primeira: os dados pessoais que possam ser coletados, em particular sobre o que acontece dentro do corpo de alguém, deveriam ser utilizados para ajudar essa pessoa e não para a manipular, controlar ou causar dano.
“Meu médico pessoal conhece muitas coisas extremamente privadas sobre mim. Não considero inconveniente que seja assim, pois confio que ele utiliza esta informação em meu benefício”, deu como exemplo Harari. “Meu médico não deveria vender estes dados para nenhuma corporação ou partido político. O mesmo deveria acontecer com qualquer tipo de ‘autoridade de vigilância da pandemia’ que pudéssemos estabelecer”.
A segunda regra básica é que a vigilância sempre deveria ser de mão dupla. “Se a vigilância é apenas de cima para baixo, é o melhor caminho para a ditadura. Sendo assim, quando aumenta a vigilância aos indivíduos, simultaneamente, deveria aumentar a vigilância ao governo e as grandes corporações”, argumentou.
“Se o governo diz que é muito complicado estabelecer um modelo de monitoramento semelhante em plena pandemia, não acredite. Se não é muito complicado começar a monitorar o que você faz, não é muito complicado começar a monitorar o que o governo faz”. Isso inclui, apresentou como exemplo, a necessidade de transparência na distribuição de fundos públicos para atenuar a crise.
Nunca se deve permitir a concentração de muitos dados em um só lugar, continuou. “Nem durante a pandemia, nem quando terminar”, ressaltou. “Um monopólio de dados é a fórmula para uma ditadura. Se coletamos dados biométricos das pessoas para deter a pandemia, isto deveria ser feito mediante uma autoridade sanitária independente, não mediante a polícia. E os dados obtidos deveriam ser mantidos separados de outros espaços de informação dos ministérios governamentais e as grandes corporações”.
Harari se adiantou às críticas: isso poderia gerar redundâncias e ineficácia, reconheceu, mas manter um pouco de ineficácia lhe pareceu um preço razoável a ser pago para impedir a ascensão de uma ditadura digital.
Assim como ainda se fala da gripe de 1918 e é estudada como pandemia, o caso da Covid-10 irá reverberar nas conversas e na pesquisa dos anos futuros. Mas mesmo tão cedo, com o coronavírus ainda galopante, e independente das diferenças nas perspectivas políticas, a experiência de 2020 já deixou três lições importantes, concluiu o artigo do pensador.
“Primeiro, devemos salvaguardar nossa infraestrutura digital”, afirmou. “Foi nossa salvação durante esta pandemia, mas em breve pode ser fonte de um desastre ainda pior”.
Como isso seria possível? Em sua opinião, quando são feitas estimativas para prever ou se preparar para a pandemia que vier, é preciso pensar em um ataque à rede tecnológica global, porque é “a principal candidata” a ser “o próximo Covid-19”.
A informatização permitiu que a humanidade resistisse em diferentes planos ao ataque material do SARS-CoV-2, mas “também nos tornou mais vulneráveis ao malware e a ciberguerra”, explicou. “O coronavírus levou vários meses para se espalhar pelo mundo e infectar milhões de pessoas. Nossa infraestrutura digital pode entrar em colapso em apenas um dia”.
Em segundo lugar – continuou –, “cada país deveria investir mais em seu sistema de saúde pública”. Pode parecer uma verdade muito trivial, reconheceu, “mas os políticos e os eleitores, às vezes, conseguem ignorar as lições mais óbvias”.
Por último, seria conveniente estabelecer “um poderoso sistema global para monitorar e prevenir as pandemias”, acrescentou. “Na guerra imemorial entre os humanos e os patógenos, o front percorre o corpo de todos os seres humanos. Se esta linha for cruzada em qualquer lugar do planeta, todos estamos em perigo”. Daí que “ainda que as pessoas mais ricas, nos países mais desenvolvidos, têm um interesse pessoal em proteger as pessoas mais pobres, nos países menos desenvolvidos. Se um novo vírus passa de um morcego a um humano em um vilarejo pobre de uma selva remota, em poucos dias esse vírus pode dar uma volta por Wall Street”.
A estrutura desnuda de um sistema antivírus como esse existe, formada pela Organização Mundial da Saúde – OMS e várias outras instituições sanitárias globais. Mas seus recursos econômicos são comparáveis ao seu impacto político: mais do que escassos. “Temos que dar a este sistema algo de peso políticos e muito mais dinheiro, de tal maneira que não dependa completamente dos caprichos de dirigentes autocomplacentes”, escreveu, aludindo a vários casos que foram evidenciados em 2020.
Não cabe a eles, porque são especialistas e não autoridades eleitas pelo voto popular, tomar decisões sobre políticas de saúde. “Isso deveria continuar sendo prerrogativa dos políticos”, concluiu. “Mas algum tipo de autoridade sanitária global independentes seria a plataforma ideal para reunir informação médica, monitorar riscos potenciais, fazer advertências e dirigir a pesquisa e o desenvolvimento”.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Yuval Noah Harari: o que aprendemos em um ano de pandemia - Instituto Humanitas Unisinos - IHU