21 Abril 2020
A expansão da epidemia e a instabilidade política e econômica derivadas dela tem levado humanidade a um daqueles momentos em que a história acelera e entra em um momento crítico de mudança, afirma o historiador e filósofo Yuval Noah Harari (Kyriat Atta, Israel, 1976), nesta entrevista concedida via correio eletrônico.
O autor de livros como Sapiens: de Animais a Deuses e, o último deles, 21 Lições para o Século XXI, e de influentes artigos sobre a repercussão do coronavírus, acredita que os governos estão tomando decisões, nessas semanas, que marcarão o futuro imediato da humanidade, e que os cidadãos devem pressionar e controlar seus governantes. E deve fazer isso já.
A entrevista é de Fèlix Badia, publicada por La Vanguardia, 19-04-2020. A tradução é do Cepat.
Como será o mundo no dia seguinte ao coronavírus?
Somos nós que temos que decidir. A atual pandemia não nos empurra para um futuro de forma determinista. E mais, obriga-nos a fazer muitas escolhas. E escolhas diferentes moldarão futuros diferentes.
Você disse que as sociedades das próximas décadas dependerão das decisões que tomarmos no futuro imediato. Estamos, então, em um momento crítico de mudança para a humanidade?
Sim. A história está se acelerando: o antigo livro de regras está sendo rasgado e o novo ainda está sendo escrito. Entramos em um momento muito fluido historicamente. Estamos realizando enormes experiências sociais com centenas de milhões de pessoas. Indústrias inteiras passaram a trabalhar em casa, universidades e escolas passaram para o ensino on-line, os governos estão injetando bilhões na economia e considerando aspectos como renda básica universal.
Ambos, governos e pessoas individualmente, estão tentando fazer coisas que alguns meses atrás pareceriam totalmente impossíveis. Nos corredores do poder se ouvem ideias loucas. Mas essa janela de fluidez é curta. Em breve, uma nova ordem emergirá e se solidificará, portanto, o momento de influenciar a direção da história é esse.
Nesse momento em que, como você dizia, a humanidade deve fazer escolhas, que alternativas nos são apresentadas?
Nós nos deparamos com muitas. As pessoas apoiariam a ascensão dos ditadores ou insistiriam para que essa emergência fosse gerenciada de um modo democrático? Quando os governos gastam milhões para ajudar negócios arruinados, salvarão as grandes corporações ou as pequenas empresas familiares? Os países ajudarão uns aos outros em um espírito de solidariedade global ou continuarão com uma política egoísta e isolacionista?
Concordo com o que escreveu, recentemente, o Presidente do governo espanhol, no sentido de que essa crise é um teste de vida ou morte para a União Europeia. Se seus países se ajudarem e tiverem uma política comum para deter a epidemia e resgatar a economia, a União sairá dela muito mais forte. Mas se cada país desenvolver sua própria estratégia, isso poderá levar provavelmente à desintegração da União Europeia.
Foram tomadas e estão sendo tomadas decisões com enormes distâncias das pessoas. O que os cidadãos podem fazer a esse respeito?
Temos que estar em alerta, porque essa crise não é apenas de saúde, mas também política. Os meios de comunicação e os cidadãos não deveriam se deixar distrair totalmente com a epidemia. Naturalmente, é importante acompanhar as últimas notícias sobre a doença em si - quantas pessoas morreram hoje? Quantas pessoas foram infectadas? -, mas é igualmente importante se concentrar na política e pressionar os políticos para que façam a coisa certa.
Os cidadãos também deveriam pressionar os políticos para que atuem com um espírito de solidariedade global, para que cooperem com os outros países, em vez de culpá-los, para distribuir os fundos de maneira justa, para preservar os controles e os equilíbrios democráticos, mesmo em uma emergência.
O momento para isso é agora. Seja quem for que escolhermos para governar nos próximos anos, não terá capacidade para reverter as decisões que estão sendo tomadas agora. Se você se tornar presidente do governo em 2021, é como chegar a uma festa quando está quase no fim e a única coisa que pode fazer é lavar a louça.
Se você se tornar o presidente de governo em 2021, descobrirá que o governo anterior distribuiu dezenas de milhares de euros - e que você tem uma montanha de dívidas a pagar -, que o governo anterior reestruturou o mercado de trabalho - e que você não pode começar de novo do zero -, que o governo anterior já introduziu novos sistemas de vigilância - e que não podem ser cancelados da noite para o dia. Então, não vamos esperar até 2021. Controlemos o que os políticos estão fazendo neste preciso momento.
Qual é a importância da cooperação internacional na situação atual e, sobretudo, essa cooperação é possível?
Sem liderança global, os países não podem confiar nas informações que recebem uns dos outros. E essa informação é nosso ativo mais importante nesta crise. A grande vantagem dos humanos em relação aos vírus é que podemos comparar de uma maneira que para vírus não é possível.
Um vírus na Coreia não pode aconselhar um vírus na Espanha sobre como infectar as pessoas, mas o que um médico descobre na Coreia, pela manhã, pode salvar vidas na Espanha à tarde. O governo espanhol enfrenta dilemas que o governo coreano enfrentou há um mês e pode pedir conselhos. Por que repetir os mesmos erros que outros governos fizeram no passado? E quando, em um mês, a Argentina enfrentar um dilema semelhante, a Espanha poderá ajudar.
E em relação à economia?
A liderança global é também vital para a produção e distribuição de equipamentos médicos, como ventiladores, testes, máscaras e luvas. No momento, os países estão competindo entre si, de maneira que a produção é ineficiente e a distribuição injusta. Precisamos de um acordo global para otimizar a produção e para garantir que as equipes vão para os países que mais necessitam, e não para os países que podem pagar mais.
A liderança também é necessária no terreno econômico. A menos que tenhamos um plano de ação global, muitos países poderão colapsar completamente. Países ricos como os Estados Unidos, Alemanha e Japão provavelmente ficarão bem, mas como poderão administrar a crise países como Equador, Egito ou Bangladesh?
E como se alcança a coordenação?
Não sou político e não sei como unir os líderes mundiais e acordar um plano de ação global. Espero que os meios de comunicação e os cidadãos de diferentes países pressionem os governos para que pensem globalmente sobre isso, e para que atuem com um espírito de solidariedade global. Temos que lembrar cada um constantemente que enquanto a epidemia se expandir em um país, todos os países estarão em risco. E se alguns países falharem, o caos, a violência e as ondas de imigração resultantes desestabilizarão o mundo inteiro.
A informação, na atual situação, é muito importante, mas temos pouca ou muita?
A informação é nosso ativo mais importante. Nada pode ser feito sem informação. Mesmo as quarentenas e confinamentos estão baseadas em informações de boa qualidade. Se você não compreende como a doença se espalha, como pode confinar as pessoas contra ela?
Por exemplo, o isolamento contra a AIDS é muito diferente do isolamento contra a Covid-19. Para se isolar contra a AIDS, você deve usar preservativo, mas não há problema em conversar cara a cara com uma pessoa com HIV, apertando as mãos e abraçando-a. A covid-19 é diferente.
Para saber como se isolar de uma epidemia específica, primeiro é necessário informação confiável sobre o que a causa. É um vírus ou uma bactéria? É transmitido através de fluidos ou respiração? Põe em perigo as crianças ou os mais velhos? Existe apenas uma cepa do vírus ou existem várias mutações?
Compreender tudo isso é importante não apenas para os governos, mas também para os cidadãos. É por isso que é tão importante dar uma boa educação científica na escola a todos os cidadãos. Na crise atual, se alguém tentar convencê-lo de uma teoria da conspiração sobre a origem e a disseminação da covid-19, peça primeiro que explique o que é um vírus e como causa a doença. Se não tem ideia, não confie nessa teoria. Ter um doutorado não é obrigatório, mas conhecer um pouco de biologia básica é necessário.
Você é otimista ou pessimista?
Não posso prever o futuro, só posso tentar influenciar as decisões tomadas no presente. Em última análise, acho que nossos maiores inimigos nesta crise não são os vírus. Nossos maiores inimigos são nossos demônios interiores: ódio, a cobiça e a ignorância. Se as pessoas responsabilizam os estrangeiros e as minorias pela epidemia, se as empresas gananciosas se preocupam apenas com seus lucros, e se acreditarmos em todos os tipos de teorias da conspiração, será muito mais difícil vencer essa epidemia e viveremos em um mundo envenenado por ódio, cobiça e ignorância.
Por outro lado, se neste momento de crise mostrarmos solidariedade com outras pessoas ao redor do mundo, se ajudarmos generosamente os mais necessitados, se fortalecermos nossa confiança na ciência e nos meios de comunicação responsáveis, será muito mais fácil vencer essa epidemia e finalmente viveremos em um mundo muito melhor.
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“Controlemos o que os políticos estão fazendo neste preciso momento”. Entrevista com Yuval Harari - Instituto Humanitas Unisinos - IHU