12 Fevereiro 2021
“A Covid-19 não cai do céu, mas é a consequência de um sistema capitalista patriarcal, produtivista e devastador, que alterou o equilíbrio dos ecossistemas, incluindo vírus e bactérias”, escreve Eduardo Camín, jornalista uruguaio credenciado na ONU-Genebra, analista associado do Centro Latino-Americano de Análise Estratégica, em artigo publicado por CLAE, 10-02-2021. A tradução é do Cepat.
Por bilhões de anos, a vida encontrou seu caminho em cada canto do planeta Terra. Vida em contínua mudança, não só se proliferando, mas se adaptando a todo tipo de condições, com diferentes formas de alimentação, reprodução e crescimento. Mas a história humana é apenas uma entre milhões, tantas como os ramos nos quais a árvore da vida se diversifica na Terra. Grande é a força dos conhecimentos e, armados com eles, o homem é invencível. Mas o conhecimento está disponível para nós?
É óbvio que nossa espécie está sujeita aos mesmos mecanismos de mudança e seleção que o resto dos organismos que povoam nosso habitat, nosso meio ambiente e para entender para onde estamos indo, devemos entender como chegamos até aqui.
A Covid-19 não cai do céu, mas é a consequência de um sistema capitalista patriarcal, produtivista e devastador, que alterou o equilíbrio dos ecossistemas, incluindo vírus e bactérias. O urbanismo e o desmatamento associados ao desenvolvimento capitalista estão forçando muitos desses animais a migrar e se estabelecer perto dos humanos, o que multiplica as chances de micróbios, que são benignos para essas espécies, passarem para as pessoas e se transformarem em patógenos.
Os apologistas do capitalismo argumentam que não há razão para questioná-lo. Mas quando ocorre uma crise como essa, as pessoas percebem que o sistema não funciona e que temos que contê-lo, talvez até superá-lo. Mas o problema é que hoje não parece que muita gente consiga estabelecer uma conexão entre o vírus e o capitalismo.
A doença ainda é percebida como um evento aleatório, algo que aconteceu por acaso, como um raio ou a queda de meteorito. Quase não há discussão de como o capitalismo produz pandemias, apesar de existir considerável base científica a esse respeito.
A crise do coronavírus evidencia as limitações e riscos, a nível humano e social, mas também econômico, do sistema capitalista. Isso nos coloca diante do espelho de como pode ser o futuro em um marco de emergência climática. Em um cenário de crescentes fenômenos climáticos extremos, apenas um estado de bem-estar forte, sistemas de proteção social suficientes, uma comunidade resiliente e um tecido socioeconômico nos permitirão enfrentar uma crescente vulnerabilidade.
A economia de mercado mostra, em momentos como o presente, o absurdo de um sistema financeiro especulativo e volátil. É claro que o capitalismo financeirizado e globalizado é incapaz de lidar com situações de crise humanitária como a apresentada pela pandemia de Covid19 ou a atual emergência climática.
Os problemas se espalham rapidamente, a incerteza se transforma em histeria em massa nos mercados financeiros, as dependências das importações e exportações se tornam vulneráveis e a dívida insustentável se torna um fardo que não pode mais ser carregado.
Diante dessa evidência, seria aconselhável, como enfatizam alguns economistas, valorizar os benefícios de uma nova economia de circuito curto, que produza bens e serviços que atendam às necessidades das pessoas e não às possibilidades de rentabilidade do investimento.
Acreditamos que em uma crise como a da Covid-19, a economia deve ser sustentada no saber, mas “o saber é comercializado e ao mesmo tempo privatizado”. Ao transformar o status do ser humano em relação ao saber, tornando-se "provedor" e "usuário", facilita-se a conversão deste em objeto de valor.
Para que seja facilmente assimilável ao ciclo de produção/consumo que define os diferentes objetos que são disponibilizados no mercado, (logo) o saber se torna mais uma mercadoria, que é vendida, comprada e consumida, deixa de ser um “valor de uso” para se tornar um “valor de troca”.
Em meio a uma pandemia, nos preparamos para um novo exercício dialético, onde as derivas comerciais voltarão a se apresentar. Com efeito, grupos de pesquisadores, laboratórios e empresas farmacêuticas estão atualmente se lançando na comercialização da vacina. Apenas dez meses depois, as pessoas já estão sendo vacinadas contra a Covid-19, apesar de, no início da pandemia, termos sido avisados que são necessários anos para desenvolver uma vacina.
Estamos, portanto, em uma situação de falta de legitimidade da ciência, enquadrando-nos no ciclo da valorização capitalista, que tenta passar por "saber" o que é interesse econômico. Portanto, o saber vale como forma de obtenção de mais-valia?
Sublime realidade capitalista que precede uma questão de acirrada concorrência entre Estados-nação, que, aliás, entram em conflito com grandes multinacionais, que também desejam possuir esse saber para reforçar suas posições, além de estabelecer sutilmente um marco ideológico com as vacinas chinesas e russas.
Neste marco, o saber não é mais apreciado pelo seu valor epistemológico (todo novo saber é positivo) para ser distribuído publicamente (todos têm direito ao saber), mas pelo seu valor monetário/econômico (pesquisa-se aquilo do qual se extrai rentabilidade), de modo que os fluxos de informação sejam controlados de acordo com os interesses comerciais (só terá acesso ao conhecimento aqueles que puderem pagar).
Nessa situação, o saber como "busca do verdadeiro" perde relevância em favor de outra perspectiva substancialmente pautada pela rentabilidade econômica, o que acarreta o problema de sua perda de legitimidade. Como confiar no conhecimento dirigido por interesses espúrios?
Devido à necessidade urgente da vacina, os governos e os doadores investiram bilhões de dólares em projetos para criá-las e testá-las. Organizações "filantrópicas" - como a Fundação Gates - apoiaram a busca, bem como celebridades de todos os tipos e organizações sem fins lucrativos, que concederam quase 1,9 bilhão de dólares. No total, os governos forneceram 8,6 bilhões de dólares, de acordo com a empresa de análise de dados científicos Airfinity.
Apenas 3,4 bilhões de dólares vêm de investimentos das próprias empresas, e muitas delas dependem fortemente de financiamento externo.
A pandemia faz com que a demanda global por vacinas exceda a oferta. O mundo inteiro luta por uma possibilidade de receber a vacina do coronavírus, um bem ainda escasso e produzido por poucas empresas farmacêuticas.
Os governos assinam contratos com as empresas que desenvolveram essas vacinas em tempo recorde, mas as informações críticas sobre esses acordos permanecem ocultas do público em geral, devido a cláusulas de confidencialidade rígidas. Quanto custam ou como serão distribuídas são detalhes que, na maioria das vezes, o público desconhece, pois é exigido pelos acordos firmados.
Em resposta a um pedido de informações do Parlamento Europeu, em meados de novembro, a Comissária da Saúde, Stella Kyriakides, afirmou que "Devido à natureza altamente competitiva deste mercado, a Comissão está legalmente impossibilitada de revelar as informações contidas nestes contratos". A ministra belga do Orçamento, Eva de Bleeker, teve de retirar, pouco depois da publicação, uma mensagem no Twitter com a tabela de preços dos laboratórios com os quais a União Europeia (UE) tinha negociado.
Reclamações sobre o não cumprimento dos compromissos assumidos por alguns fabricantes de vacinas estão agora sendo acompanhadas por vozes que exigem maior transparência em uma questão vital de saúde pública. A polêmica continua crescendo, especialmente na UE, irritada após os laboratórios Pfizer e AstraZeneca informarem que não terão condições de abastecer o bloco com a o número de doses iniciais acordadas.
Isso fez com que, segundo fontes da UE citadas pela Reuters, de Bruxelas venha a exigência de que as empresas farmacêuticas tornem públicos os termos dos contratos e a ameaça de controle das exportações de vacinas produzidas na Europa.
Segundo Jonathan García, especialista em saúde pública da Universidade Harvard, nos Estados Unidos, “isso não é novidade. É frequente a inclusão de cláusulas de confidencialidade nos contratos entre os sistemas de saúde dos países e as empresas farmacêuticas”. “Os laboratórios buscam dividir o mercado para poder negociar preços diferenciados com diferentes países”, acrescenta. Isso permite que eles negociem com os países com base em seus recursos, oferecendo preços mais baixos para os países pobres ou em desenvolvimento e exigindo quantias maiores dos mais ricos.
A empresa AstraZeneca revelou que a vacina que desenvolveu em colaboração com a Universidade de Oxford custará aproximadamente de 3 a 4 dólares por dose (são necessárias duas). Mas, por enquanto, seu caso é excepcional. Além dos preços, costumam ser mantidas em sigilo as informações sobre produção e logística e as conhecidas cláusulas de responsabilidade.
Nelas são estipulados limites para a responsabilidade dos laboratórios no caso de possíveis efeitos adversos dos medicamentos e indicam que, se houver diferenças, não serão resolvidas por tribunais nacionais, mas por cortes especiais de arbitragem internacional.
As vozes que reivindicam maior transparência alertam que a urgência em desenvolver uma vacina para uma doença que já ceifou mais de dois milhões de vidas em todo o mundo, conseguiu levar os governos a aceitar limitações de responsabilidade ainda maiores.
Na Estratégia de Aquisição de Vacinas que se tornou pública pela Comissão Europeia, afirmava-se que “a responsabilidade pelo desenvolvimento e utilização da vacina, incluindo qualquer compensação específica exigida, recairá sobre os Estados-membros que a adquirirem”.
Não obstante, estamos falando de uma emergência global de saúde, algo que acontece a cada 100 anos, diante da qual haveria de se esperar que o sistema usasse mecanismos muito mais transparentes e buscasse um esquema mais cooperativo. Em vez disso, vemos que continuam buscando um mercado monopolista e manter vantagens de preço.
As diferenças no acesso às vacinas levam o mundo a um risco de "falência moral catastrófica", conforme definido pelo diretor da Organização Mundial da Saúde, o doutor Tedros Adhanom Ghebreyesus, com o risco de os países mais necessitados tenham que esperar anos para imunizar sua população.
A história das epidemias mostra que não seria a primeira vez. Já aconteceu com a poliomielite e a varíola, doenças erradicadas muito antes nos países mais avançados. Ou com o HIV, que ainda dizima muitas populações africanas, sendo que os pacientes do chamado primeiro mundo viram sua expectativa de vida aumentar significativamente graças ao desenvolvimento de tratamentos antirretrovirais.
Como resultado, os analistas de investimentos preveem que pelo menos duas dessas empresas, a americana de biotecnologia Moderna e a alemã BioNTech com sua sócia, a gigante americana Pfizer, provavelmente ganharão bilhões de dólares.
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A ciência maltratada, privatizada e comercializada. Artigo de Eduardo Camín - Instituto Humanitas Unisinos - IHU