01 Março 2021
"Pressão social repercute no Congresso e frustra tentativa de acabar com investimento obrigatório em Saúde e Educação. Porém, “gatilhos”, que podem cortar serviços públicos e salários em todas as áreas sociais, ainda ameaçam", escrevem Maíra Mathias e Raquel Torres, editoras do portal Outra Saúde, na newsletter diária sobre as principais notícias sobre saúde do dia publicada por Outras Palavras, 26-02-2021.
O dia no Senado começou ontem com a aguardada reunião de líderes. Lá o governo sofreu a primeira derrota do dia ao ver adiada a votação da PEC Emergencial para a semana que vem. O assunto, contudo, não foi retirado da pauta do plenário e a expectativa da base governista era conseguir dar o pontapé inicial na tramitação da proposta com a leitura do famigerado relatório de Márcio Bittar (MDB-AC). Não deu.
Na descrição do próprio presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), no plenário houve “grande reação” à desvinculação dos pisos da saúde e da educação. A oposição lançou mão de instrumentos regimentais para tentar barrar a leitura do relatório do jeito que estava. Diante de um requerimento para que a PEC seguisse uma tramitação normal e fosse enviada à Comissão de Constituição e Justiça, o líder do governo no Senado, Fernando Bezerra (MDB-PE), negociou um acordo com a oposição: a leitura do relatório seria adiada em troca da retirada do requerimento. Ele também afirmou que Bittar apresentaria uma nova versão do seu relatório na segunda-feira.
Àquela altura, a equipe econômica já tentava se descolar da proposta da desvinculação. O secretário do Tesouro, Bruno Funchal, afirmou a jornalistas que a proposta se assemelhava a “dar cavalo de pau em transatlântico” e defendeu a ideia de unificação dos pisos da saúde e educação. Segundo ele, essa era a proposta original do governo quando enviou ao Congresso a PEC do Pacto Federativo em 2019. É mentira. A proposta original sempre foi a desvinculação, e a unificação só surgiu graças à grande resistência gerada pelo fim de qualquer carimbo para as áreas.
Tudo isso irritou Márcio Bittar, que não fez questão de esconder. O senador começou o dia com bravatas, chegando a falar em “ditadura” quando perguntado sobre as críticas à desvinculação. “Há corporações que dominam as universidades, fazem campanha contra essa proposta mentindo descaradamente”, acusou, como se a resistência se concentrasse aí e não tivesse arrebanhado governadores, prefeitos, procuradores, etc.
Diante do anúncio de Bezerra sobre uma nova versão do relatório, Bittar adotou um tom malcriado: “pergunta para o líder do governo” foi a resposta que deu a repórteres que o questionaram se, enfim, iria retirar a desvinculação do texto. No final do dia, teve que admitir: “Serei obrigado a fazer isso. O plenário não quis sequer discutir a questão da desvinculação”, disse. E completou: “Se eu insistir com o relatório, vou perder os gatilhos”, em referência às propostas de travas de despesas que o ministro Paulo Guedes gosta de chamar de “novo marco fiscal”.
Como se sabe, os presidentes da Câmara e do Senado sinalizaram com o fatiamento da PEC Emergencial, manobra através da qual poderia se autorizar novas rodadas do auxílio emergencial primeiro e discutir o tal “novo marco fiscal” depois. Com o recuo em relação aos pisos da saúde e educação, essa possibilidade parece ter se afastado.
Os repórteres Renato Machado e Thiago Resende dão destaque a um ponto interessante na Folha. Segundo sua apuração, “alguns senadores apontam que a inclusão da desvinculação seria parte da estratégia para não haver questionamento sobre outros pontos”. Uma espécie de boi de piranha para que a PEC Emergencial passe com os gatilhos, que de fato encontram bem menos resistência na classe política como um todo. Se o governo tem ou não capacidade para fazer esse tipo de manipulação fica ao critério de cada um. Os líderes governistas negam a estratégia, aliás.
A expectativa é de que o novo relatório seja apresentado na terça-feira e a votação comece na quarta. Pacheco está tentando um acordo para que a PEC seja votada em dois turnos neste mesmo dia. De acordo com o regimento, no entanto, por se tratar de uma mudança na Constituição, deveria haver um intervalo entre uma votação e outra de cinco dias.
Durante transmissão ao vivo, Jair Bolsonaro anunciou que o valor do auxílio emergencial deve ficar em R$ 250, mas admitiu que isso está sendo conversado com os presidentes da Câmara e do Senado. Devem ser pagas quatro parcelas do benefício para um contingente de 40 milhões de pessoas. Ele não perdeu a chance de inflamar a população contra medidas de isolamento social: “Quem quer auxílio emergencial, e cidade está fechada, vão (sic) cobrar do prefeito. Vão cobrar do respectivo govenador“, disse. O presidente sinalizou que o governo deve fazer “uma nova proposta para o Bolsa Família” após o fim da nova rodada do auxílio, em julho.
Exatamente um ano após a confirmação da primeira infecção pelo novo coronavírus no país, o Brasil registrou ontem o maior número diário de mortes pela doença: 1.582. A média móvel, que ficou em 1.150, também foi a mais alta do ano. Pelo menos 13 estados enfrentam grandes dificuldades e cresce o número de gestores locais que decidiram impor medidas mais duras de restrição. Ontem foi a vez de Santa Catarina, Rio Grande do Sul, Bahia e Distrito Federal fecharem vários serviços.
Como sempre tem acontecido, as decisões só foram tomadas tarde demais, com os serviços de saúde à beira do colapso. Vejamos o exemplo de Santa Catarina: desde pelo menos novembro o aumento nos casos de SRAG (Síndrome Respiratória Aguda Grave) e de diagnósticos de covid-19 era nítido. Em dezembro, pela primeira vez, todas as regiões do estado se encontravam em risco gravíssimo e a taxa de ocupação de leitos de UTI já estava em 84% na rede pública. Nenhuma restrição muito eficaz foi feita a partir desses dados, além de um decreto proibindo aglomeração durante as madrugadas. Na época, o governo tinha acabado de liberar o retorno de cinemas e eventos com público em todo o estado, e nem nisso voltou atrás. As reaberturas, pelo contrário, continuaram: na semana passada, com o caos já instalado, escolas em vários municípios retomaram aulas presenciais.
“Preciso informar a todos que a situação da pandemia deteriorou no estado todo e, a exemplo do que acontece nas regiões mais a Oeste, estamos entrando em colapso!”, diz a mensagem enviada ontem pelo secretário de Saúde André Motta Ribeiro a gestores de hospitais. Eles certamente já sabiam disso: na véspera, 99% dos leitos para adultos estavam ocupados e havia mais de 80 pessoas na fila. O governador Carlos Moisés (PSL) decretou um lockdown meio torto: serviços não-essenciais ficarão totalmente fechados, mas só durante dois fins de semana seguidos. Nos dias úteis vão valer regras aprovadas na véspera, que basicamente restringem público e horários de funcionamento de locais como academias, casas noturnas e ônibus.
Mas talvez isso seja melhor do que o lockdown instalado pelo governador Rui Costa (PT) na Bahia: haverá restrição das atividades não essenciais, mas só neste fim de semana. Há dez dias, tinha sido decretado um toque de recolher durante as madrugadas, mas não fez efeito. Se for mantida como está, a nova restrição também não deve adiantar muita coisa.
Vale lembrar que, em dezembro, o secretário estadual de Saúde dizia que a Bahia já estava em uma segunda onda da covid-19, com taxas de crescimento iguais às de junho – mas numa situação pior, porque o aumento acontecia em todas as regiões ao mesmo tempo. Hoje, há quase 200 pacientes esperando vagas em unidades de tratamento intensivo. E isso porque o governo abriu 200 leitos nos últimos dez dias, em adição aos mil que havia antes.
O que vai acontecer no Distrito Federal também é só um toque de recolher entre 20h e 5h, durante duas semanas; o começo das aulas deve ser adiado e os servidores públicos vão voltar ao home office. A ocupação das UTIs já ultrapassou os 90%.
É no Rio Grande do Sul que as medidas estão mais fortes, com o fechamento de espaços como academias, restaurantes, bares, igrejas e comércio em geral. As escolas ficam abertas para crianças pequenas.
O ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, tem se colocado em uma posição confortável ao creditar a piora da pandemia no Brasil à circulação de novas variantes, especialmente a de Manaus – como se ela fosse irrefreável, uma surpresa do destino da qual não poderíamos escapar. Ontem, em reunião com secretários de saúde, ele voltou a dizer que a cepa de Manaus é três vezes mais transmissível (o que, até onde se sabe, não foi calculado em lugar nenhum) e que, por isso, estamos enfrentando uma “nova etapa” da pandemia. E emendou: “Esse vírus ou essa cepa já faz parte do cotidiano e já está em muitos estados brasileiros. Não é uma situação de ‘não vamos deixar chegar aqui, em tal lugar’. Ela já está”.
Pois é… Poderia não estar, se os níveis federal e estadual tivessem feito alguma coisa para evitar seu espalhamento. Na verdade, ela poderia nem existir, se não houvesse condições ideais para que aparecesse. Por aqui, salientamos que, embora essa cepa já esteja em vários estados, não sabemos se é dominante nos locais que enfrentam maiores problemas agora, portanto não dá para saber se está mesmo relacionada ao caos generalizado que vai se instalando.
Nesta semana, o Ministério da Saúde anunciou ter descoberto ao todo 204 infecções relacionadas às novas variantes em vários estados, sendo 184 da brasileira e 20 casos da originada no Reino Unido. O problema é que não se sabe direito quantas amostras passaram por sequenciamento genético no mesmo período em que esses casos foram identificados – então não dá para estimar qual o percentual que as novas cepas representam em cada estado. De acordo com dados da Rede Genômica Fiocruz, foram feitos, no total, 3,7 mil sequenciamentos genéticos no Brasil, mas seria importante que o Ministério informasse os dados semanais.
De todo modo, mesmo que possam ser mais transmissíveis ou escapar da imunidade, as novas cepas não se esquivam dos meios de prevenção que já conhecemos bem: ventilação, distanciamento social, máscaras de qualidade, higiene – e Pazuello sequer as mencionou. O Reino Unido conseguiu conter as transmissões por lá, com lockdown rigoroso e muita vacina. A África do Sul também segurou sua curva e baixou tremendamente os casos, internações e mortes no último mês – sem vacinas, e estando totalmente dominada pela cepa que até agora se mostrou mais preocupante. O que o país fez foi decretar restrições de mobilidade desde o fim de dezembro, que nem foram tão duras quanto as do Reino Unido, mas também alcançaram bons efeitos.
Sem orçamento aprovado pelo Congresso, o Ministério da Economia decidiu liberar recursos para o restante da Esplanada a conta gotas. No caso do Ministério da Saúde foi fixado um valor de pouco mais de R$ 12 milhões por mês para as despesas discricionárias, ou seja, os gastos que vão além do pagamento de salários e aposentadorias. Com isso, várias ações da pasta estão ameaçadas de paralisação: Farmácia Popular, assistência de saúde a indígenas, médicos na atenção básica, bolsas de residentes, o programa Academias de Saúde…
Um ofício enviado por Eduardo Pazuello a Paulo Guedes dá um exemplo dessa conta que não fecha: Farmácia Popular e Academias de Saúde custam, juntos, R$ 39,9 milhões mensais. No total, o Ministério da Saúde pediu a liberação urgente de R$ 240,1 milhões no dia 18 de fevereiro. Segundo a Folha, depois de afirmar que esse pedido sequer havia sido encaminhado à Secretaria de Orçamento Federal, o Ministério da Economia respondeu que o processo estava “sob análise da equipe técnica”. No fim do dia, contudo, a pasta publicou uma portaria remanejando R$ 237,2 milhões para a Saúde.
Você deve se lembrar de Carlos Wizard – o fundador da escola de idiomas que foi conselheiro do Ministério da Saúde e quase assumiu a Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos da pasta. Agora, ele está ao lado de Luciano Hang liderando a articulação de empresários brasileiros pela compra de vacinas contra a covid-19. E foi recebido ontem pelo secretário-executivo do ministério, Élcio Franco, que lhe fez uma promessa encantadora: a partir do segundo semestre deste ano, as aquisições estariam liberadas. A informação é da colunista do Globo Bela Megale, mas pode não dar em nada. Afinal, de acordo com as recentes movimentações no Congresso, o prazo vai depender de que todos os grupos prioritários já tenham sido vacinados pelo SUS, o que pode não acontecer até lá.
Isso se não houver novos projetos de lei, claro. E, no Valor, Wizard deixou claro que os empresários querem propostas muito mais abrangentes do que as já em pauta: por enquanto, os parlamentares vetaram que as empresas venham a comercializar os imunizantes adquiridos, mas Wizard disse já planejar a venda em farmácias.
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PEC antiSUS: a primeira derrota do governo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU