24 Fevereiro 2021
"País tem meios para retornar (e até ampliar) auxílio emergencial. Emissão de moeda é um caminho. Mas, sob o signo da “austeridade”, ministro lança projeto que exime Estado de oferecer serviços como Saúde e Educação. É preciso freá-lo", escreve Paulo Kliass, Doutor em Economia pela Universidade de Paris 10 e Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal, em artigo publicado por OutrasPalavras, 23-02-2021.
O ano era 2019, o primeiro do mandato de Bolsonaro. No entanto, as tragédias ocorridas em nosso País desde a sua posse foram tantas que tudo até parece muito mais longevo do que foi de fato. Paulo Guedes assumia sua condição de superministro da economia com toda a pompa e a arrogância que lhe são características. Sua primeira missão concluída com sucesso foi a aprovação da Reforma da Previdência. Se é verdade que o texto da votação definitiva em 23 de outubro estava bem distante da intenção destruidora total do Regime Geral da Previdência Social desejado pelo liberaloide, o fato é que as forças do financismo ficaram bem satisfeitas com o resultado obtido. Afinal, tratava-se ainda da primeira entrega do old chicago boy. Imaginava-se que as demais encomendas chegariam a pleno vapor.
Embalado pelos ventos aparentemente favoráveis e supostamente imbatíveis, o governo desembarca no Senado Federal alguns dias depois com todos os seus pesos pesados. Bolsonaro, Guedes e outros ministros vão ao gabinete da presidência entregar a Davi Alcolumbre um conjunto de três Propostas de Emenda Constitucional – as PECs 186, 187 e 188. O pacote ficou conhecido pelo enganoso nome de “Plano Mais Brasil”. Uma semana depois desse ato carregado de forte simbologia, a sensação de tratoragem seria ainda mais aumentada com a promulgação da Emenda Constitucional n°103, derivada da reforma previdenciária.
A trinca de propostas (Emergencial, Pacto Federativo e Fundos Públicos) era tão urgente que ficou parada desde então nas mãos do senador Márcio Bittar, nomeado à época como relator das mesmas. A história na sequência é conhecida por todos. O PIB de 2019 revela-se um fracasso retumbante, uma vez que a esperança toda depositada em Guedes se revela em um pibinho de minguados 1,1%, menos ainda que o já mirrado resultado obtido por Meirelles sob a gestão de Temer. A entrada em 2020 trouxe consigo a pandemia e as PECs continuaram adormecidas na gaveta do relator.
Pois agora o governo resolve aproveitar aquele texto para retomar o processo que Paulo Guedes tanto enche a boca para descrever: os famosos 3 “D”s, ou seja, desobrigar, desvincular e desindexar. Na verdade, trata-se de mais uma tentativa de rasgar os dispositivos fundamentais da política de bem-estar ainda presentes na Constituição de 1988. Os 3 “D”s de fato almejados por ele, porém, são outros. Trata-se de destruir, demolir e desmontar.
A novidade do momento é a chantagem apresentada junto ao Congresso Nacional, na tentativa de ganhar apoio de parcelas da opinião pública. A versão atual da PEC 186 é identificada na forma do substitutivo apresentado pelo relator Bittar. A narrativa do momento pretende apresentar o conjunto de maldades como uma contrapartida necessária e inescapável do restabelecimento do Auxílio Emergencial. Mentira!
É de amplo conhecimento que Paulo Guedes é totalmente contrário à renovação do benefício, instrumento essencial para que a maioria da população sofra menos as agruras da recessão e do confinamento. Além disso, a volta do auxílio é fundamental para minorar os efeitos negativos em termos macroeconômicos, uma vez que ele permite a manutenção do poder de consumo para dezenas de milhões de famílias.
Há um ano atrás, ainda quando vivíamos o início da primeira onda da covid-19, o superministro havia convencido o chefe a oferecer uma única prestação de R$ 200. O Congresso Nacional impôs uma importante derrota ao governo e definiu o valor inicial de R$ 600 mensais. Ocorre que no momento da renovação do auxílio em setembro, Guedes reduziu o valor pela metade e ainda apontou a data de validade para 31 de dezembro. Os efeitos humanos, sociais e econômicos foram trágicos. A popularidade de Bolsonaro começou a cair em razão da inexistência de amparo do governo e por sua atitude genocida com relação à urgência da vacinação.
A pressão da sociedade tem aumentado e os congressistas sentem a necessidade de apresentar alguma resposta. Pois nessa hora Guedes saca a carta escondida debaixo da manga. Com o surrado discurso enganoso de “não temos recursos”, propõe o valor vergonhoso e criminoso de R$ 250 ao mês para volta do auxílio. Além disso, impõe uma série de condicionalidades em sua aplicação, de maneira a reduzir o acesso da população à medida e, assim, reduzir o sacrossanto impacto orçamentário do mesmo.
Porém o mais grave são as condições da “negociação” que pretende impor ao legislativo na apreciação desta versão turbinada da PEC 186. Para além das medidas de redução compulsória dos salários dos servidores públicos, Guedes introduz agora as propostas de seus sonhos. Ele pretende retirar as obrigatoriedades previstas no texto constitucional para assegurar minimamente os serviços básicos do Estado nas áreas essenciais e estratégicas da educação e da saúde, entre outras. Uma loucura!
Em troca de uma retomada do auxílio emergencial por alguns meses em um valor ridículo frente as reais necessidades de sobrevivência da maioria da população, Guedes pretende deixar armada uma bomba atômica para destruir a capacidade dos governos oferecerem à população esses serviços públicos fundamentais. Ocorre que não há justificativa para que essa demolição seja colocada como pré-condição para que o auxílio seja restabelecido. O governo tem todas as condições para criar recursos no orçamento através de emissão de moeda ou aumento da dívida pública para realizar essa despesa extraordinária e essencial.
A maioria dos governos dos países do mundo capitalista reorientaram suas políticas econômicas a partir do advento da pandemia. A busca burra e cega pela austeridade a qualquer custo foi substituída pela necessidade evidente de oferecer medidas contracíclicas para superar a crise sanitária e minorar os efeitos da recessão que atinge a todos. Em momentos como o que vivemos atualmente, a exemplo do que também ocorreu a partir da grande crise de 2008/9, a função do Estado é assumir o protagonismo na recuperação das atividades e aumentar suas despesas. No entanto, Paulo Guedes segue com seu negacionismo de tais evidências do mundo real e impõe um custo fenomenal à maioria da população e ao futuro do Brasil.
Ser quisermos manter alguma esperança na capacidade de superar a crise atual e preservarmos algum espaço para a retomada de um projeto de desenvolvimento social e econômico de inclusão e sustentabilidade, então é fundamental barrar a aprovação da PEC 186. Os senadores deveriam prestar atenção ao placar da consulta virtual realizada pela Casa, onde 97% dos internautas já se manifestaram contrariamente à medida. As verdadeiras travas à possibilidade da concessão do auxílio emergencial podem ser retiradas por meio da necessária revogação da EC 95, aquela mesma que congela as despesas governamentais por 20 anos, até o longínquo exercício de 2036.
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PEC 186: Guedes prepara sua bomba atômica - Instituto Humanitas Unisinos - IHU