18 Dezembro 2020
"Mas, por mais fundamental que seja, a leitura da biografia não pode se limitar à última parte do pontificado. O interesse que desperta se deve à sua completude, à riqueza de informações e detalhes inéditos, fruto também da proximidade e do contínuo diálogo entre Seewald e Bento", escreve Massimo Franco, jornalista especializado em assuntos do Vaticano, em artigo publicado por Corriere della Sera, 17-12-2020. A tradução é de Luisa Rabolini.
“Já não pertenço mais ao velho mundo, mas o novo ainda não começou ...”. A releitura hoje dessas palavras de Bento XVI, entregues ao seu biógrafo Peter Seewald há alguns anos, causa certa impressão. São o reconhecimento do fim de seu pontificado com um retrocesso temporal, para fevereiro de 2013. E em paralelo lançam uma sombra de expectativa e esperança sobre o que aconteceu depois, com a eleição de Jorge Mario Bergoglio em 13 março do mesmo ano. A questão que surge é se a entrada no "novo mundo" já ocorreu, ou se o desafio aos resíduos do passado continua como antes.
As 1.209 páginas da biografia de Joseph Ratzinger, Benedetto XVI. Una vita, editado pela Garzanti, deixam a pergunta em aberto: também porque, apesar de mais de duzentas páginas serem dedicadas à preparação e explicação de sua renúncia, no final permanece uma aura de mistério sobre os reais motivos que a provocaram. O Papa emérito relata ao seu biógrafo, bávaro como ele, que não renunciou devido ao escândalo Vatileaks: aquele que viu o seu "mordomo" Paolo Gabriele, recentemente falecido, retirando secretamente caixas de documentos, num turbilhão de intrigas financeiras e de poder.
“...Certa vez eu disse que uma pessoa não pode pedir demissão quando as coisas não estão em ordem, mas só quando tudo está tranquilo”, confidencia-lhe Bento. "Pude renunciar justamente porque a serenidade havia voltado a respeito daquele episódio. Não foi uma saída sob a pressão dos acontecimentos ou uma fuga pela incapacidade de lidar com ela." É uma versão que reaparece várias vezes, revelando uma história convincente de uma demissão meditada e em câmera lenta, informando as pessoas mais próximas ao longo dos meses e tentando amortecer um trauma inevitável ao catolicismo. Tomar ato da verdade de Bento XVI, porém, não exime de continuar a se questionar sobre o que acontecia nos palácios apostólicos.
Seewald relata as tensões em curso entre o então secretário de Estado, o controverso Tarcisio Bertone, e o círculo papal. O secretário pessoal de Bento XVI, Georg Gänswein, entrou em confronto com ele várias vezes. E até cardeais próximos do Papa, como o arcebispo de Milão, Angelo Scola, e o de Colônia, Joachim Meisner, pediram-lhe que o substituísse. “Mas o Papa não se deixou persuadir.
Aparentemente”, escreve Seewald, “a sua resposta foi: 'Bertone fica - chega!'”. Ele não quis substituí-lo mesmo quando completou 75 anos em 2010. Gänswein, consta no livro, protestou: "Bertone já causou tantas complicações, e isso é demais." Mas Bento XVI continuou a defendê-lo. “Você não sabe o que Sodano fez. Ele cometeu erros exatamente como Bertone ...”.
A referência era a Ângelo Sodano, Secretário de Estado de João Paulo II. São passagens que revelam fatos surpreendentes. Reverberam uma sombra de fraqueza e ao mesmo tempo de obstinação sobre o Ratzinger "governante". E deixam intacto o enigma da associação entre esse teólogo refinado e tímido e seu "primeiro-ministro" Bertone, acusado no livro de ingerência na política italiana; e, "em vez de proteger o Papa, estava sempre em viagem", registra Seewald.
Pelas lentes críticas dos últimos anos do papado, forma-se uma descrição densa e informada de uma vida coerente e ao mesmo tempo atormentada por um cansaço quase existencial: com a dúvida de ter que fazer um gesto que inclusive contrariava o perfil de Ratzinger, inovador na leitura dos tempos, mas rigoroso e ortodoxo no plano da teologia. Não é por acaso que João Paulo II quis que ele fosse o guardião da Doutrina da Fé. Mas, por mais fundamental que seja, a leitura da biografia não pode se limitar à última parte do pontificado. O interesse que desperta se deve à sua completude, à riqueza de informações e detalhes inéditos, fruto também da proximidade e do contínuo diálogo entre Seewald e Bento.
O livro começa com o nascimento do futuro Papa, filho do gendarme Joseph Ratzinger: um policial pouco instruído, mas inteligente, que cuidava da pequena aldeia de Markt, 600 almas tementes a Deus na Alta Baviera. A mãe Maria Peintner tem 43 anos e dá à luz na delegacia com vista para a praça do mercado em 15 de abril de 1927. Joseph Aloisius chega depois de uma menina, Maria Theogona, e do irmão Georg. A mãe Maria era filha ilegítima de um casal de filhos ilegítimos. “De acordo com os registros de batismo”, explica o autor, “no XIX século na comunidade de Muhlbach, no Tirol do Sul, hoje Riodi Pusteria, no Trentino-Alto Adige, cerca de um terço das mulheres que davam à luz a um filho não eram casadas”.
Dessa aldeia, Joseph Aloisius vive os dramas da Segunda Guerra Mundial, ingressa no seminário Georgianum de Munique, o mais antigo depois do Colégio Capranica de Roma. Apaixonou-se pela teologia e, em 1949, chega à universidade da cidade. Suas competências como estudioso emergem rapidamente, assim como suas posições críticas contra um progressismo teológico que na Alemanha teria produzido e produz profundos atritos com a Roma dos Papas: mesmo que no início tenha sido acusado de "modernismo".
Munique, Freising, Bonn, Tübingen, Regensburg: Ratzinger foi professor em várias universidades. E sua fama de teólogo cresceu antes mesmo daquela de bispo, enquanto ano após ano se distanciava do protesto de 1968 e das derivas marxistas que o tornaram conservador. Uma definição um tanto esquemática para uma figura complexa que, como cardeal e depois Papa, tentou combater a pedofilia na Igreja, encontrando-se, revela, "retido pelo partido diplomático da Cúria Romana"; que eliminou alguns dos sinais externos do poder temporal; e que realizou o gesto mais revolucionário e radical em mais de 700 anos de história do catolicismo. A trajetória de sua vida é a de um alemão filho da Europa e do Ocidente, que internaliza e reflete a identidade e as contradições do Velho Continente.
Essas são as raízes de Joseph Ratzinger, embora provavelmente seja lembrado sobretudo pela sua renúncia, dada em latim porque, explicou ele com ar professoral, "algo tão importante deve ser feito em latim". A jornalista da Ansa, Giovanna Chirri, foi a primeira a compreender o significado de suas palavras e, após um momento de espanto, soltou a notícia. Desde então, ainda se tenta decifrar o segredo da convivência no Vaticano entre os "dois papas". “A amizade pessoal com o Papa Francisco não só permaneceu”, confirma Bento XVI a Seewald, “mas cresceu com o tempo”. Trata-se de um milagre de equilíbrio e de lealdade mútua que perdura e se renova a cada dia.
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O enigma de Ratzinger - Instituto Humanitas Unisinos - IHU