16 Dezembro 2020
Geraldina Boni, professora de Direito Canônico, Direito Eclesiástico e História do Direito Canônico na Universidade de Bolonha, na Itália, conversa sobre a necessidade de regulamentar o papel do Papa Emérito, depois da publicação dos diários do cardeal Pell.
A entrevista é de Andrea Mainardi, publicada por Start Magazine, 15-12-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
“É preciso que os protocolos sobre o papel de um papa que renunciou sejam esclarecidos, para fortalecer as forças da unidade. Embora o papa aposentado possa manter o título de ‘papa emérito’, ele deveria ser reinserido no Colégio Cardinalício para ser conhecido como ‘Cardeal X, papa emérito’, não deveria usar a batina papal branca e não deveria ensinar publicamente.” Palavra de George Pell, cardeal da Santa Igreja Romana. Um ratzingeriano de ferro. O exato oposto de um inimigo do Papa Bergoglio.
Palavras como combustível incendiário para muitos observadores que as leem como a reabertura de um debate sobre a convivência de um papa reinante com o antecessor, que tanto incomodam os repetitivos opositores do pontificado beneditino, quanto excitam – puxando o amito papal branco – tediosos rivais apocalípticos do atual reinado franciscano.
Por que Pell falou agora? O fato é que a nota do cardeal Pell traz a data de 29 de junho de 2019, festa de São Pedro e São Paulo. Tirada do seu diário dos 404 dias passados em uma cela de isolamento em Melbourne por uma condenação por pedofilia – da qual ele foi definitivamente libertado no dia 7 de abril pela Suprema Corte da Austrália que, por unanimidade, reconheceu a inconsistência das acusações.
No entanto, a nota, publicada há poucos dias com exclusividade por Sandro Magister em uma breve antologia de trechos do diário de Pell – muito mais amplo e que aborda muitos temas diferentes – que foi publicado nessa terça-feira, 15, pela editora Ignatius Press, imediatamente despertou um debate que, desde o dia da renúncia de Bento XVI, 11 de fevereiro de 2013, propõe ciclicamente contraposições imaginárias entre dois papas. Pro domo, ça va sans dire, deste ou daquele partido. Boas para alimentar panfletismos de blogs militantes sobre o papa emérito e o reinante que convivem no recinto de Pedro.
Além disso, o complô fez sucesso. Um blockbuster que tem – estas sim – interessantes e também geniais antecipações de cenários descritivos em criações muito mais dignas do que as dos mordazes e conspiracionistas. Da “Roma senza papa” [Roma sem papa] de Guido Morselli de 50 anos atrás, ao recente “The New Pope” de Paolo Sorrentino. Bibliografia e cinematografia são amplas.
Mas a questão se situa em um nível bem diferente. No âmbito do direito. A renúncia de um papa está prevista pelo Direito Canônico. Mas não está especificado como deve ser a vida como “aposentado” do sucessor de Pedro. E, nas palavras de Pell, isso deve ser normatizado.
O trabalho dos juristas há algum tempo ferve nesse sentido: “Várias vezes vazou a notícia de projetos de lei sobre a sé apostólica impedida iniciados em Roma, e alguns canonistas se dispuseram a propor soluções normativas em artigos científicos publicados. Por outro lado, além disso, é incontestável que a disciplina do papa emérito é hoje um problema a ser enfrentado também do ponto de vista jurídico: a ciência canonística não pode deixar de se sentir interpelada a oferecer a sua contribuição ao legislador supremo”.
Assim afirma Geraldina Boni, professora titular de Direito Canônico, Direito Eclesiástico e História do Direito Canônico na Universidade de Bolonha. Consultora do Pontifício Conselho para os Textos Legislativos, há vários anos ela se ocupa da renúncia papal. Entre outros, lembramos o livro “Sopra una rinuncia: la decisione di papa Benedetto XVI e il diritto” [Acima de uma renúncia: a decisão do Papa Bento XVI e o direito] (Bononia University Press, 2015).
Professora Boni, como as anotações do cardeal Pell podem ser enquadradas?
Em poucas e eficazes palavras, o cardeal Pell aborda uma série de problemas cruciais na Igreja atual e que deveriam ser rapidamente enfrentados e resolvidos com uma normativa idônea. De fato, é preciso, como afirma o purpurado, não apenas definir o papel do papa que “renunciou”, mas também se interrogar de forma mais geral tanto sobre a renúncia do sumo pontífice, quanto também sobre a situação na qual este não seja mais capaz de cumprir, por enfermidade ou outras coisas, o munus petrinum: até agora, trata-se de uma hipótese quase exclusivamente escolar.
Mais um passo. A que se refere?
A urgência de uma legislação é determinada, por um lado, pela recente consolidação da “instituição” do “papa emérito”, totalmente desconhecida e ainda ignorada pelo Direito Canônico: no desenvolvimento cotidiano da experiência eclesial, ela inegavelmente levanta várias questões críticas – não só, obviamente, no que diz respeito às vestes, ao brasão ou à residência do “demissionário” – que se estendem por muitos aspectos e que devem ser esclarecidas sem demora.
Pell escreve no seu diário: “Sou favorável à tradição milenar de que os papas não renunciam, que continuam até a morte, porque isso ajuda a manter a unidade da Igreja. Os progressos na medicina moderna complicaram a situação, permitindo que os papas de hoje e de amanhã provavelmente possam viver mais longamente do que os seus antecessores, mesmo quando a sua saúde está muito enfraquecida”.
Com a “normalização” da renúncia, goste-se ou não – para mim, assim como para o cardeal, não muito, como escrevi várias vezes – a convivência entre dois (ou mais) papas parece estar a caminho de se tornar costumeira, em todo o caso não mais anômala e excepcional: afinal, o próprio papa reinante afirmou várias vezes que não exclui o caminho apontado pelo seu antecessor.
O prolongamento da vida, os progressos da medicina...
Exato. Existem projeções sobre a vida humana inimagináveis até poucas décadas atrás. Estão longe de ser remotas as possibilidades de que a existência das pessoas possa continuar por muito tempo mesmo em condições precárias de saúde psíquica e física, ou que se prolonguem por muitos anos em coma, estados vegetativos e de consciência mínima: também para o sucessor de Pedro.
Porém, este é realmente um cenário diferente, ulterior, mais dramático do que a renúncia de Bento XVI. Idoso, mas não impedido. Nem então nem hoje, em compatibilidade com o enfraquecimento de uma ultranonagenário.
Exige-se uma legislação, pelo menos essencial, para disciplinar adequadamente esses “casos”. A finalidade, de acordo com a vocação autêntica do direito, é a de evitar e resolver eventuais conflitos, mas também apenas gerir e dissolver o desconforto de impasses embaraçosos: inconvenientes com os quais, dada a insuprimível imperfeição humana, não devemos nos escandalizar; ao contrário, é preciso assumi-los responsabilidade. E as vozes para que isso ocorra em pouco tempo vão se multiplicando, também por parte de personalidades de autoridade, preocupadas sobretudo com a serenidade da estrutura eclesial.
E aqui voltamos à atualidade dos últimos anos, em uma dialética de relação entre papas. Nessa segunda-feira, 14, Peter Seewald, biógrafo de Joseph Ratzinger – que, em um quarto de século, amadureceu um notável hábito de relações com o ex-prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé e em seguida com o pontífice reinante e, depois, emérito –, em uma entrevista à Aleteia, admite o quanto o próprio teólogo bávaro que se tornou papa está consciente de que tudo o que escreve ou diz a partir do seu “eremitério” no Vaticano cria um contrapeso inevitável ou provoca polêmicas que fortalecem quem não ama o magistério ou as reformas do Papa Francisco. “O papa é o papa. Não deve haver um papa sombra, nem mesmo um papa paralelo”, corta Seewald secamente. “Mas isso não significa que ele (Bento) concorda com tudo o que diz o Supremo Pastor da Igreja. Ele havia anunciado que se retiraria ao silêncio. E o fez. Mas isso não significa que deveria renunciar ao seu modo de pensar ou fazer um voto de silêncio. Ele já deu ao seu sucessor um ou dois conselhos, muito discretamente. E está ao seu lado rezando por ele todos os dias”. Professora Boni, houve motivos para visões diferentes.
O que se teme é que as lamentáveis situações que às vezes sugiram nas relações entre os dois papas – ou mesmo apenas na imagem que é fornecida externamente – possam alimentar fraturas e, se não pôr em crise, certamente perturbar a unidade da Igreja, como observa o próprio Pell, ou induzir confusão no povo de Deus. Portanto, estão em jogo bens muito relevantes, que devem ser protegidos. Muitas vezes, é verdade, tais querelas são causadas por comportamentos no mínimo incautos de colaboradores de um ou outro papa: pensemos no discurso de Georg Gänswein por ocasião da apresentação de um livro em maio de 2016, no qual ele falou de um “ministério ampliado, com um membro ativo e um contemplativo, uma dimensão colegial e sinodal, quase um ministério em comum”; no caso Dario Edoardo Viganò em 2018, com a carta do papa emérito censurada; no pastiche da assinatura de Bento XVI no livro do cardeal Robert Sarah “Do profundo de nosso coração” no início deste ano, em meio ao debate sobre o celibato sacerdotal. E, acima de tudo, na polêmica provocada pela intervenção do Papa Ratzinger, repercutida na mídia mundial, a respeito das causas da difusão dos abusos sexuais na Igreja.
Duas hermenêuticas diferentes do problema: o clericalismo para Bergoglio, a homossexualidade de alguns clérigos para Ratzinger.
O fato é que existem algumas ambiguidades e incertezas que devem ser eliminadas, também por meio de um direito bem formulado.
No entanto, essa contraposição entre os dois papas, esse contraste, talvez seja mais percebido por círculos restritos, embora barulhentos, do que pelo povo de Deus que vai às paróquias aos domingos para a missa e talvez não esteja tão inquieto.
Eu também estou convencida de que, entre Bento XVI e Francisco, existe a harmonia que aparece e que foi reafirmada várias vezes. Por outro lado, a característica mansa do primeiro e a generosa do segundo ajudam e depõem fortemente nesse sentido. Mas é incontestável que os eventos dos últimos meses e anos, recém-mencionados, criaram nervosismo e evidentes tensões. E, sobretudo, se a renúncia do papa se consolidar como um comportamento comum, e os papas eméritos se multiplicarem, nem sempre é óbvio, por razões evidentes, que a concórdia poderá ser conservada. Uma lei – penso em um punhado de normas bem ponderadas e construídas – teria justamente o propósito de sempre evitar conflitos possíveis ou apenas atritos, em benefício unicamente do bem da unidade da Igreja. Sem chegar a temer, como se bradava na Idade Média, que um corpo com duas cabeças seja um “monstrum”, certamente se trata de uma situação delicada. Além disso, precisamente por meio das normas bem calibradas ao longo de um milênio, foram regulamentadas a vacância da Sé e a escolha do papa – anteriormente bastante turbulenta, e não em sentido figurado. E de forma extremamente equilibrada e eficaz.
Mais direito e menos ilações, portanto. Como conjugar isso?
É preciso preencher uma lacuna normativa, a partir da explicitação dos pressupostos substanciais e formais do ato da renúncia para se chegar à fixação do status do ex-papa: determinando aquilo que diz respeito, por exemplo, à denominação-título do renunciante, à reinserção no Colégio Cardinalício, a participação no conclave e, nele, o direito de eleitorado ativo e passivo, o cerimonial-protocolo nos encontros oficiais com outros bispos ou autoridades eclesiásticas e também seculares. Mas também especificando as funções residuais que lhe caibam, em clara demarcação com relação àquelas reservadas ao papa reinante, único titular do poder supremo de jurisdição, até se dar – com o devido respeito – indicações sobre os seus contatos sociais e midiáticos, as suas publicações, a sua participação em eventos e cerimônias, de acordo com aquilo que já foi sugerido sabiamente pelo cardeal Walter Brandmüller e por outros canonistas.
Você mencionava antes os progressos da ciência médica que felizmente prolongam a vida terrena, mas nem sempre garantem condições de saúde compatíveis com o ministério petrino. É preciso ir além da renúncia livre, como atualmente codificada?
Uma lacuna legis a ser preenchida, sem dúvida, é a relativa à disciplina da Sé Apostólica assim chamada de impedida: isto é, quando o papa, por motivos de ordem externa (prisão, confinamento, exílio, recita o Código de Direito Canônico para o bispo), mas especialmente por motivos de ordem pessoal, como uma grave incapacidade física ou psíquica, não pode absolutamente, de forma alguma, cumprir a sua tarefa. E seria preciso chegar até a prever um procedimento que verifique também a possibilidade, extrema, mas não irrealizável, de que tal situação – em caso de doença totalmente incapacitante, definitivamente confirmada como incurável – se torne definitiva e irreversível: transitando-se do impedimento da Sé Apostólica à vacância e, portanto, à nomeação de um novo papa que governe plenamente a Igreja universal. Por outro lado, todo papa poderia revogar tais normas e, soberanamente, preparar uma disciplina diferente: assim como todo papa pode modificar sensivelmente ou apenas retocar a disciplina da eleição do sucessor de Pedro e da sé vacante.
Isso seria uma revolução. Da renúncia livre à possibilidade de outros poderem dispor de um papa. Quase como uma interdição, assim como, por exemplo, previsto pelo sistema jurídico italiano em relação a pessoas com deficiências graves.
A questão é delicada, mas deveria ser abordada com realismo. E com um procedimento totalmente garantista. Acima de tudo, seria preciso que uma comissão médica independente, identificada através de critérios previamente estabelecidos (especialistas de diversos países, com títulos adequados e de competência profissional universalmente reconhecida), emitisse um diagnóstico, por meio dos instrumentos que a ciência atual permite, que declarasse a condição de doença psíquica ou física permanente e incurável que priva absolutamente o romano pontífice da capacidade de entender e de querer, ou a capacidade de manifestar a sua vontade de qualquer modo.
Alguns poderiam objetar o risco de ir no sentido de um “enfraquecimento” da figura, entre humana e sagrada, do Romano Pontífice. Homem, mas sucessor de Pedro e, como tal, Vigário de Cristo a quem foram confiadas as chaves.
São temas certamente nada simples, mas não podem ser considerados quase “tabus” intocáveis: como se abordá-los implicasse rebaixar a figura eminente do sucessor de Pedro e ignorar a especificidade do seu ofício ancorado no direito divino. Renegando, além disso, uma antiga tradição de silêncio disciplinar a esse respeito com a pretensão de limitar – se poderia dizer quase indevidamente – a inviolável libertas papal. Em relação a ambas as dimensões mencionadas, o olhar jurídico não se traduz nem em uma concepção burocrática e eficientista, ou que despreze o valor sagrado da vida humana doente ou sofredora: ou que, muito menos, hesite em se confiar à Providência divina. Pelo contrário, não é possível ignorar o elemento humano que se enxerta de algum modo no ministério petrino, inextrincavelmente ligado a ele: sem superestimá-lo pelagianamente, confiando apenas nas capacidades do homem, mas visando a orientar a sua insuprimível liberdade rumo à res iusta também nesse campo. De fato, não se pode ignorar a humanidade do romano pontífice: ela é imposta por aquela natureza intrinsecamente teândrica da societas Ecclesiae inscrita no seio da revelação cristã que o Vaticano II descreveu tão claramente. Espero realmente que a prudência do supremo legislador da Igreja possa prover tudo isso em breve.
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Por que é urgente regulamentar o papel do Papa Emérito. Entrevista com Geraldina Boni - Instituto Humanitas Unisinos - IHU