05 Dezembro 2020
Recursos que ajudariam a promover vacinação em massa contra covid estão sendo torrados pelo ministério público em fake news. Campanhas difundiram uso da cloroquina e estimularam população a quebrar quarentena.
A reportagem é de Maíra Mathias e Raquel Torres, publicada por OutrasPalavras, 04-12-2020.
Eduardo Pazuello gastou mais com propaganda na pandemia do que os antecessores, Luiz Henrique Mandetta e Nelson Teich. Foram R$ 88 milhões – recurso que daria para comprar 2,8 mil refrigeradores capazes de armazenar doses das vacinas da Pfizer e da Moderna. Não que manter uma linha de comunicação com a sociedade não seja fundamental durante uma crise sanitária que exige tantas mudanças de hábitos como esta. Mas, como mostra o repórter Diego Junqueira, apesar do considerável gasto público esse objetivo esteve bem longe de ser atingido – até mesmo porque não foi mirado.
O Ministério da Saúde preferiu exaltar o agronegócio, fazer propaganda da entrega de insumos a estados e municípios e emplacar a cloroquina ao invés de prestar informações sobre as formas de transmissão do coronavírus e recomendar distanciamento social. A peça dedicada ao agro custou R$ 30 milhões. “Vamos voltar, gente, vamos seguir em frente”, diz uma caminhoneira na propaganda que foi ao ar entre julho e agosto, quando o país registrava mais de mil mortes todos os dias.
Uma instrução normativa da Secretaria de Comunicação diz que o ministério deve usar sua verba publicitária para “informar, educar orientar, mobilizar, prevenir ou alertar a população para a adoção de comportamentos que gerem benefícios individuais ou coletivos”. Ao invés disso, a pasta gastou outros R$ 35 milhões em causa própria, fazendo marketing daquilo que seria sua obrigação: distribuir verbas, medicamentos, máscaras e equipamentos.
A terceira peça publicitária mapeada na matéria da Repórter Brasil é ainda mais simbólica da deterioração institucional que atinge a pasta. Vocês certamente lembram dos planos para o “Dia D”, evento previsto para outubro no qual o general Pazuello pretendia lançar o “kit-covid” contendo as drogas ineficazes para a covid-19 que são a cortina de fumaça do governo Bolsonaro. A notícia causou tantas críticas que o ministro desistiu. Mas a propaganda, que custou R$ 3,4 milhões, foi ao ar mesmo assim. Na campanha “Coronavírus, tratamento precoce”, a pasta vende para os brasileiros a ilusão de que existe tal coisa.
Todos os especialistas ouvidos pela reportagem demonstraram indignação com os fatos. Já o ministério não deu informações sobre gastos com outras campanhas, não disponibilizou um plano de comunicação para a pandemia cobrado pelo TCU com a desculpa de que ‘está em atualização’ e rebateu questionamentos com as invenções de sempre, como a de que o Supremo conferiu somente a estados e municípios a prerrogativa de falar sobre distanciamento social.
O Brasil passou vergonha ontem na reunião dos ministros de saúde do Mercosul. É o que dá para concluir a partir dos trechos do discurso de Pazuello liberados pelo Ministério da Saúde, já que o evento virtual foi fechado. Do alto da segunda maior montanha de cadáveres acumulados nessa pandemia em todo o mundo, o general vendeu a resposta brasileira como um caso de sucesso a ser imitado. “O que fez e faz diferença para nós foi o tratamento precoce, a mudança de protocolo de cuidado aos pacientes com covid-19”.
Apareceu mais uma pitada de estranheza em relação aos ensaios da vacina de Oxford/AstraZeneca: há agora relatos conflitantes sobre o que teria levado à diferença no padrão de dosagem do imunizante, que por sua vez levou a distintas eficácias. Como se sabe, os resultados preliminares apontaram 62% de eficácia no grupo de voluntários que recebeu duas doses da vacina, enquanto ela esteve perto dos 90% no que recebeu primeiro meia dose, e depois uma inteira.
Como também se sabe, na época o chefe de pesquisa da farmacêutica afirmou que o regime que incluiu meia dose havia sido descoberto por casualidade – uma sorte a partir de um erro. Mas agora Adrian Hill, pesquisador da universidade que atuou no desenvolvimento da vacina e liderou os testes no Reino Unido, disse à Reuters que não foi nada disso.
“Isso não é verdade. O que sabíamos é que estávamos usando um lote diferente de uma vacina de um fabricante diferente. Nós conhecíamos as medidas e estávamos em discussões com os reguladores sobre como seguir em frente”, disse ele, completando: “A dosagem que iniciamos com aquele novo lote foi meia dosagem em comparação com a que havíamos utilizado anteriormente”. A AstraZeneca não quis comentar.
Em tempo: o Senado aprovou ontem a MP que destina R$ 1,99 bilhão para o Ministério da Saúde e a Fiocruz viabilizarem a compra, o processamento e a distribuição das cem milhões de doses desse imunizante, já acordadas com a AstraZeneca. E a escritura do terreno onde vai se instalar a nova fábrica da fundação, anunciada como o maior centro de produção de biológicos da América Latina, foi assinada ontem.
Todas as atenções estão voltadas para a vacina da Pfizer depois que ela recebeu autorização da agência reguladora do Reino Unido. Destacamos por aqui o recado de um dos diretores da farmacêutica no Brasil, que disse que a janela do governo federal para negociar a compra de doses é de “alguns dias, ou talvez uma semana”. A empresa já negociou 54,3 milhões de doses com Peru, México e Chile. Ao que parece, o mesmo não deve acontecer por aqui.
Questionado ontem pela imprensa sobre a aquisição da vacina da Pfizer (e também da CoronaVac), o secretário de vigilância do Ministério da Saúde respondeu com evasivas. Arnaldo Medeiros disse que o governo está aberto a adquirir vacinas que tenham registro na Anvisa… Talvez seja tarde demais quando isso acontecer, pelo menos no caso da Pfizer. Segundo o Estadão, a proposta da farmacêutica, protegida por acordo de confidencialidade, expira semana que vem.
O governador João Doria (PSDB) afirmou que a vacinação em São Paulo acontecerá no mês que vem. “Por que iniciar em março se podemos fazer no mês de janeiro, como outros países começam a fazer agora, no mês de dezembro?”, questionou. As afirmações foram feitas ontem no aeroporto, onde o tucano foi receber 600 litros do princípio ativo da CoronaVac que serão usados para produzir um milhão de doses. No total, SP negociou 46 milhões de doses com a Sinovac – o suficiente para vacinar toda a população do estado.
O anúncio de Doria causou uma onda de preocupação entre governadores, de acordo com a coluna Painel. Eles temem que o descompasso entre a campanha paulista e o cronograma nacional de vacinação do Ministério, que começa em março, seja um estímulo para que pessoas de outros estados viajem até São Paulo para tentar receber o imunizante. Ao que parece, o incômodo não é com o tucano, mas com o governo federal. A senadora Simone Tebet (MDB-MS) aposta que a pressão popular vai fazer com que Jair Bolsonaro reveja sua posição contrária à incorporação da CoronaVac ao Programa Nacional de Imunizações. “Senão haverá desgaste em sua popularidade”, disse ela. Governadores como Renato Casagrande (PSB-ES) e Wellington Dias (PT-PI) também pressionam.
E há outros sinais de como se dará o comportamento social diante da realidade cada vez mais próxima de uma vacina. Um grupo do Ministério Público de São Paulo encaminhou ao procurador-geral do estado pedido para que a instituição defenda a inclusão dos procuradores como grupo prioritário para receber a imunização. Dizem que “não é uma questão de egoísmo” já que trabalham em atividades com contato social. O procurador-geral Mário Sarrubbo é contra. Em áudio vazado, ele afirma que o pleito “não tem o menor cabimento” e que os procuradores precisam entrar nas regras gerais. Elas serão conhecidas na segunda-feira, de acordo com Doria.
O prazo do governador abriu nova rodada de especulações, já que a viabilidade da campanha depende, até que se prove o contrário, da aprovação do imunizante pela Anvisa. Mas o UOL afirma, com base na leitura da lei 13.979, que prefeitos e governadores podem adotar no âmbito de suas competências e com base em evidências científicas “autorização excepcional e temporária para a importação e distribuição de quaisquer materiais, medicamentos, equipamentos e insumos da área de saúde sujeitos à vigilância sanitária sem registro da Anvisa considerados essenciais para auxiliar no combate à pandemia”. A reportagem também destaca um trecho que diz que para obter tal autorização o produto teria que ser registrada por pelo menos uma das agências reguladoras dos EUA, da União Europeia, do Japão ou da… China.
De qualquer forma, o diretor do Butantan informou ontem que pretende apresentar à Anvisa os resultados de eficácia da CoronaVac até o próximo dia 15. Disse também que o instituto vai buscar o registro definitivo, não o emergencial para grupos específicos anunciado pela agência reguladora anteontem.
O Observatório Covid-BR descobriu e a TV Globo investigou: na capital de São Paulo, mais de cem mil casos suspeitos de covid-19 que tiveram amostra coletada para o teste de PCR estão, desde setembro, sem confirmação ou descarte. Depois que os casos são analisados, são classificados como ‘positivo’, ‘negativo’ ou ‘inconclusivo’; mas os que estão na conta dos cem mil são os que continuam como ‘em branco’.
É claro que nem todos esses casos devem ser positivos; a reportagem contextualiza que, pelo histórico recente, na verdade a maioria deve dar negativo. Ainda assim, é um grave problema. Mesmo depois que uma pessoa recebe o resultado do seu exame, seu caso só entra para as estatísticas oficiais – e, portanto, nos cálculos usados pelas autoridades para definir fechamentos e reaberturas da economia – depois que a classificação é atualizada no sistema.
E tem mais: depois de procurada para explicar os números, a prefeitura mudou o sistema público de consulta aos casos, escondendo os campos que permitiam ao Observatório identificar a falha. Por aqui, imaginamos se a mesma falta de atualização não deve acontecer também em outras cidades.
Ontem, representantes da indústria tiveram reunião com a Anvisa. Na pauta, o uso de testes cuja data de validade tenha sido ampliada. Como o Valortinha adiantado na semana passada, ao julgar um caso semelhante ao do Ministério da Saúde, a diretoria colegiada da agência acatou argumentos da procuradoria do órgão e mandou incinerar testes sorológicos estocados no Brasil, embora tenha chancelado a extensão do prazo de validade dos produtos. Ou seja: a empresa poderia importar mais testes, mas não usar aqueles que já estão aqui. O argumento principal é que a manipulação do rótulo para alteração do prazo pode afetar o produto. A justificativa é definida como “legalista” pelo presidente da Câmara Brasileira de Diagnóstico Laboratorial (CBDL). A entidade agora estima que nove milhões de testes estocados pelo setor privado podem ser descartados caso a agência não mude de posição (na semana passada esse número era de 15 milhões). E deposita as esperanças no enrosco do ministério, que pode receber autorização para usar os 7,1 milhões de testes PCR que vencem a partir desse mês.
Os casos de SRAG (síndrome respiratória aguda grave) continuam subindo, conforme o último boletim do Infogripe. Essa medida é boa para monitorar o novo coronavírus, já que ele está por trás de quase 98% dos casos de SRAG. E, entre 22 e 28 de novembro, nada menos que 22 estados tiveram pelo menos uma macrorregião com crescimento nas últimas três ou seis semanas. Ou seja: em quase todo o país, a situação é grave. A medida das mortes também não engana: foram 776 registros ontem, levando a média da última semana para 544.
A rede pública de saúde do Rio já está em colapso, segundo uma nota técnica divulgada ontem pelo Monitora Covid-19, da Fiocruz. “Dentro dos hospitais estamos com muitos problemas, mas fora também. E nem todos foram por covid-19, mas indiretamente ficaram sem assistência. Além disso, ser hospitalizado não garante vaga em UTI. Muitos estão morrendo por covid-19 fora de UTIs, mesmo confirmados como casos de covid-19”, diz n’O Globo Christovam Barcellos, membro da equipe. Na capital, há 99% de ocupação nos leitos ofertados pela prefeitura e 92% na rede SUS regulada pelo município. Em todo o estado, a taxa de mortalidade é maior do país, segundo dados do grupo: 131 óbitos por cem mil habitantes; o governo prometeu abrir mais 1.053 leitos.
O Rio Grande de Sul continua quase inteiro em ‘bandeira vermelha’, que indica alto risco de transmissão. Temos ali apenas um entre tantos exemplos de medidas tomadas sem embasamento na ciência: a permanência em locais públicos, como parques, foi proibida, ao passo que academias de ginástica continuam funcionando normalmente. Em Curitiba, que tem mais de 90% das UTIs ocupadas, restaurantes funcionam sem nem ao menos restrições para a capacidade máxima.
O número de mortos pela covid-19 no mundo bateu 1,5 milhão ontem. A cifra é maior do que o total de óbitos por tuberculose em todo o ano passado (1,4 milhão) – sendo que a tuberculose é a doença infecciosa que mais mata no planeta. Por um lado, a chegada iminente das vacinas deve começar aos poucos a frear os números; por outro, há neste momento recordes sendo batidos em vários cantos, e provavelmente as coisas ainda vão piorar bastante antes que melhorem.
Esta semana os Estados Unidos chegaram pela primeira vez a mais de três mil mortes registradas em um único dia, ao mesmo tempo em que o número de internações simultâneas por covid-19 chegou a cem mil. Isso é mais que o dobro do que se observava um mês atrás. Por lá, são quase 280 mil vítimas até agora. Já a Itália registrou ontem 993 mortes em 24 horas, um número que seria grande mesmo em países continentais; o recorde anterior era do começo da pandemia, quando houve 969 mortes no início de março. A França tem novos picos diários quase toda semana desde outubro. A Alemanha chegou a um milhão de casos registrados.
Mesmo no leste asiático, onde em geral os países têm conseguido administrar muito bem a pandemia, há sinais de alerta. No Japão, hospitais das áreas mais afetadas suspenderam o tratamento para o câncer e outras doenças para darem conta do coronavírus. Na Coreia do Sul os casos atingiram o maior número dos últimos nove meses; para nós, não parece muito, já que são 629 casos (e não mortes). Com isso, em Seul, foram adotadas restrições de horário para o comércio; e as autoridades pediram que a população de todo o país cancele suas festas de Natal e Ano Novo.
Para o governo sul-coreano, uma preocupação extra são os exames de admissão para a universidade, que aconteceram esta semana. Com quase meio milhão de alunos ocupando 31 mil salas de aula ao mesmo tempo, as chances de eventos de superespalhamento não eram pequenas. Vale a pena ler, no New York Times, como foi o esquema para oferecer segurança e não deixar os alunos para trás – já que, ao contrário do que se vê por aqui, a educação é uma prioridade naquele país e mais de 70% dos jovens têm ensino superior. “As clínicas de saúde administradas pelo governo pernoitavam para testar os alunos e examinar qualquer pessoa infectada com o vírus no último minuto. Aqueles com febre ou dor de garganta eram escoltados para salas separadas para fazer os exames”, diz a matéria. Nem mesmo os alunos que testaram positivo foram privados de fazer as provas: “O Ministério da Educação e as autoridades de saúde prepararam câmaras de pressão negativa no Centro Médico de Seul e 24 outros hospitais para que 35 alunos com covid-19 pudessem fazer seus exames enquanto os administradores de exames vestindo roupas de proteção Nível-D vigiavam”.
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Como o governo desvia verba pública para desinformar - Instituto Humanitas Unisinos - IHU