03 Dezembro 2020
“Existem aqueles católicos de esquerda que se valem das ciências sociais para diagnosticar o que aflige a Igreja, e não há nada de errado nisso. Mas fica errado quando esquecemos que o Espírito Santo está agindo na vida da Igreja, que os modelos analíticos podem ser bons até onde eles vão, mas o Espírito sopra onde quer. Técnicas de gerenciamento aprimoradas podem ajudar a introduzir maior responsabilidade na vida da Igreja, mas a reforma mais importante da Igreja na história, a fundação e disseminação das ordens mendicantes no século XIII não começou com um relatório da McKinsey; e sim quando São Francisco beijou um leproso pela primeira vez”, escreve Michael Sean Winters, jornalista, em artigo publicado por National Catholic Reporter, 02-12-2020. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
Ao menos nas últimas audiências gerais, o papa Francisco expressou sua preocupação sobre os grupos católicos que escrevem seus próprios caminhos. Suas palavras são desafiadoras para aqueles que tanto na esquerda quanto na direita desprezam a importância de pensar com a Igreja.
“Às vezes, eu sinto uma grande tristeza quando eu vejo uma comunidade que, com boa-vontade, assume o caminho errado porque pensa que se faz igreja através das reuniões como se fosse um partido político: a maioria, a minoria, o que um pensa disso ou daquilo, ou outro dizendo ‘isso é como um sínodo, um caminho sinodal que precisamos assumir’”, diz o Santo Padre. “Eu pergunto a mim mesmo: ‘Onde está o Espírito Santo? Onde está a oração? Onde está o amor da comunidade? Onde está a Eucaristia?’ Sem essas quatro coordenadas, a Igreja torna-se uma sociedade humana, um partido político”, afirmou. “Mas nesses o Espírito Santo não está”.
“Se o Espírito Santo, que atrai pessoas a Jesus, está faltando, então não há Igreja ali. Ali é um clube de amigos, bom, com boas intenções, mas não é Igreja, não é sinodalidade”, acrescentou.
Nós estamos acostumados com o Papa usando palavras duras contra os legalistas conservadores na Igreja. “Uma rigidez nascida do medo da mudança, que acaba erguendo cercas e obstáculos no terreno do bem comum, transformando-o em um campo minado de incompreensão e ódio”, repreendeu Francisco no discurso de Natal do ano passado à Cúria Romana, equivalente do Vaticano de um discurso do Estado da União. “Lembremo-nos sempre que por trás de toda forma de rigidez existe algum tipo de desequilíbrio. Rigidez e desequilíbrio se alimentam em um círculo vicioso. E hoje essa tentação de rigidez se tornou muito real”.
Na última semana, porém, suas palavras parecem ser dirigidas a nós, a ala mais liberal da Igreja Católica. E convém a nós prestar atenção a isso, porque se nós somos honestos conosco mesmos, nós sabemos que o Papa está diagnosticando um problema real.
Esse é um dos mais tristes fatos sobre um certo tipo de católico liberal que, como diz o Papa, com boa-vontade, assumem o cominho errado com uma agenda que talvez seja defensível ou até louvável em alguns espaços, mas não pertencem ao caminho católico. Eles consideram as doutrinas que definiram nossa Igreja por séculos como muito massa de modelar em suas mãos, para serem estivadas de qualquer forma para chegar a um objetivo não reconciliável com a fé católica. Eu já disse isso antes e direi novamente: somente porque um católico teve uma ideia não significa que é uma ideia católica.
Ou, especialmente entre os estadunidenses, esquecemos que a nossa Igreja é universal e que reformas, que parecem atrasadas para nós, arriscariam romper com a comunhão da Igreja em todo o mundo. Todos os humanos são passíveis de miopia, mas um católico precisa reconhecer e lutar com reivindicações para além de sua cultura. Justiça e unidade devem ser reivindicações em nossos corações e mentes.
Tenho sido irrestrito em minhas críticas aos grupos católicos conservadores, como o “Padres pela Vida”, que reduzem o testemunho público da Igreja à luta contra o aborto. Esta é uma distorção grosseira da plenitude do ensino da igreja. Mas é igualmente problemático quando os católicos liberais o fazem, como quando se recusam a defender o nascituro ou dão desculpas para os políticos que se recusam a defender o nascituro. O mesmo ensino que nos leva, liberais, a lutar pelos indocumentados e pelos pobres, deve incluir os que ainda não nasceram ou não estaremos mais pensando com a Igreja. Se amamos a Igreja, devemos estar dispostos a nos distanciar não apenas de grupos como “Padres pela Vida”, mas também de grupos como “Católicas pelo Direito de Decidir”.
Da mesma forma, aqueles que acreditam que a oposição à tolerância para gays e lésbicas é uma parte central de nossa religião – não é – são tão problemáticos quanto aqueles que clamam pelo casamento gay sem qualquer preocupação sobre o efeito que tal mudança teria sobre a unidade da igreja universal.
Existem aqueles católicos de esquerda que se valem das ciências sociais para diagnosticar o que aflige a Igreja, e não há nada de errado nisso. Mas fica errado quando esquecemos que o Espírito Santo está agindo na vida da Igreja, que os modelos analíticos podem ser bons até onde eles vão, mas o Espírito sopra onde quer. Técnicas de gerenciamento aprimoradas podem ajudar a introduzir maior responsabilidade na vida da Igreja, mas a reforma mais importante da Igreja na história, a fundação e disseminação das ordens mendicantes no século XIII não começou com um relatório da McKinsey; e sim quando São Francisco beijou um leproso pela primeira vez.
A tradição intelectual e moral católica certamente deve envolver o mundo das ideias além de si mesma. Mas por que tantos ensaístas invocam essa tradição de maneiras sentimentais e não rigorosas, ao mesmo tempo que citam tolices acadêmicas, do marxismo à teoria de gênero, como se tudo isso estivesse fora de questão?
Existe uma moda na esquerda política à qual a esquerda católica resistiu? Não consigo pensar em nenhuma. A capacidade da esquerda secular e da esquerda católica de se automarginalizar nunca deixa de surpreender, mas sejamos claros: quando alguém diz que acredita que os direitos dos transgêneros são a questão dos direitos civis de nosso tempo, como Joe Biden fez uma vez, eles estão jogando para as câmeras para um público pequeno e de elite. O resto do país e a Igreja coçam a cabeça. Uma das razões pelas quais Biden conseguiu vencer esta última eleição é porque ele não repetiu tal tolice.
Quando li a encíclica do Santo Padre Fratelli Tutti, vi uma voz diferente da esquerda dominante. Como um todo e em tantos parágrafos distintos, aquele documento desafiou a direita católica muito mais do que desafiou a esquerda católica. Como não poderia? A direita católica americana contemporânea está tão longe do ensino social católico tradicional, tão embriagada com o libertarianismo da época, que todo papa desde Leão XIII a desafia.
Mas houve momentos, ao ler aquela encíclica, em que pensei que o Papa estava falando de maneiras que não eram mais comuns na esquerda católica. Logo no início, o Santo Padre cita a atitude de São Francisco, compartilhada com seus irmãos, “de estar sujeito a toda criatura humana por amor de Deus”. A 'sujeição do eu' não é levada em conta atualmente, quando a autoafirmação é o padrão.
Da mesma forma, o Papa escreve: “Embora eu tenha escrito [esta encíclica] a partir das convicções cristãs que me inspiram e sustentam, procurei fazer desta reflexão um convite ao diálogo entre todas as pessoas de boa-vontade”. Ele cita todas as Escrituras e começa todo o documento com uma reflexão poderosa e multifacetada sobre a parábola do Bom Samaritano.
Esse tipo de dependência profunda da tradição está frequentemente ausente de muitos escritos católicos hoje, nos quais as referências bíblicas servem como textos de prova, não como fundamentos para um argumento particular.
No parágrafo 13, o papa diagnostica com precisão o beco sem saída que tem sido o desconstrucionismo e, no parágrafo seguinte do texto, ele fala contra a colonização cultural da qual o Ocidente tantas vezes é culpado. No parágrafo 166, Francisco discute a concupiscência – quando foi a última vez que você viu um teólogo escrevendo aqui no NCR sobre isso?
E no parágrafo 206, Francisco confronta o problema com o relativismo, que realmente é um problema, embora seja comum na esquerda católica ouvir as pessoas prefaciar seus argumentos com as palavras: “Falando como um [preencha o espaço em branco]”, palavras que às vezes são usadas para convidar um interlocutor para um conjunto diferente de experiências, e outras vezes para marcar uma reivindicação de hermenêutica privilegiada, o fim da discussão erguendo um muro de relativismo.
Os católicos conservadores têm mais com que se preocupar quando ouvem que Francisco está prestes a dar um discurso importante ou a redigir uma nova encíclica. Mas o Papa nos convida, do lado esquerdo do espectro, a expandir e crescer também. O discurso da audiência-geral da semana passada foi para todas as idades e recomendo a todos.
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Papa Francisco desafia a esquerda católica - Instituto Humanitas Unisinos - IHU