11 Novembro 2020
"Novo capítulo do extermínio contra o qual seu povo luta há séculos: 'O governo está entregando nosso território e nossos corpos aos inimigos'. Foram quase 15 mortes em seu povo, sobretudo idosos: 'nossas bibliotecas se queimaram'", escreve Angela Pappiani, jornalista, produtora cultural e escritora e diretora na IKORE, agência voltada à temática indígena, sobre relato de Alessandra Korap Munduruku, do médio Tapajós (AM, PA), em artigo publicado por Outras Palavras, 09-11-2020.
Problemas não faltam na Amazônia. Há séculos os europeus tentam domar o lugar e os povos que são parte desse lugar para extraírem dali a única coisa que os motiva: a riqueza. Seja o petróleo, o ouro, ferro, manganês, nióbio, e outros tantos minerais valorizados; seja pelo domínio da terra, do chão que precisa ser marcado a ferro e fogo com o nome de seu dono, com o gado, a soja, a cana, o documento fraudado registrado em cartório; seja pelas obras monumentais que drenam os recursos para represar a água que gera energia.
Há séculos esses povos originários tentam mostrar aos estrangeiros, de fora e de dentro do país, que a riqueza da Amazônia é outra: é a sua mágica teia de vida, diversa e equilibrada, com saberes e respostas para todas as necessidades dos povos que vivem ali e são parte dela.
Povos que sempre foram vistos como empecilhos para o progresso, obstáculos a serem removidos, literalmente, pela escravidão de seus corpos, pela domesticação de suas almas, pelo deslocamento e confinamento, ou pela morte justificada em “guerras justas”.
O povo Munduruku, que vive na bacia do Rio Tapajós, enfrenta o avanço do estrangeiro desde o século 17. Já foram guerreiros temidos, quando capturavam o inimigo para encolher e mumificar suas cabeças. Hoje enfrentam projetos de hidrelétrica, garimpo ilegal e desmatamento, a negação do estado em reconhecer seus direitos.
Alessandra Korap Munduruku, grande guerreira desse povo, acaba de ser reconhecida com o prêmio internacional de direitos humanos Robert F. Kennedy por sua coragem e luta, apesar das ameaças de morte que ela e outros companheiros de luta recebem com frequência. Alessandra coloca sua voz e seu rosto pintado com os desenhos ancestrais de seu povo para denunciar situações gravíssimas que colocam em risco não só os lugares e os povos indígenas da Amazônia, mas o frágil equilíbrio deste ser vivo chamado Terra. Com a palavra Alessandra Munduruku:
“Quando a pandemia veio, no começo do ano, deixou um rastro de sofrimento, as mortes que aconteceram, as cerimônias dos funerais que não pudemos fazer nas aldeias, esse corpo indígena que ficou na cidade e não pode voltar para a sua aldeia, uma cicatriz muito forte. Foram quase 15 mortes no alto, médio Tapajós e no rio Teles Pires. Aqui onde eu moro perdemos três pessoas importantes. A gente não estava preparado para perder esses parentes para a Covid-19, foi um atrás do outro, de repente, tantas vidas. Quando a gente está preparado, tem como fazer as cerimônias, cantar, lembrar de quem ele foi um dia. Nosso povo indígena tem uma biblioteca que ensina toda a tradição, passa de pai para filho. O governo incentivou queimar essas nossas bibliotecas, dizendo que era uma gripezinha, que não precisava do isolamento. Isso foi o motivo de nossas bibliotecas se queimarem. Como liderança, a gente tentou que não pegasse o fogo, depois tentou apagar, andamos nas aldeias, pedimos para o povo ficar em casa, porque não tinha vacina. A gente estava preocupado, com medo de perder mais lideranças, fizemos campanha para levar materiais de higiene e proteção, cestas básicas, mas o governo não ajudou a apagar esse fogo. Pelo contrário, ele estava ateando mais fogo para que mais bibliotecas fossem queimadas. Meu tio, meu pai, o pajé, a esposa dele, todos pegaram Covid. Mas não foram para o hospital, melhoraram com o remédio tradicional, a maioria que foi para o hospital não voltou mais.
Conseguimos fazer barreiras sanitárias, mas tem muita invasão no território, de todo lado, de todo jeito, de barco, pela estrada e até mesmo de avião. Essas pessoas levaram o vírus. A situação agravou mais ainda com a pandemia porque a gente teve que ficar isolado mas os madeireiros, os garimpeiros não respeitaram o isolamento, não existia barreira para eles. Estão cada vez mais dentro do território. Quando esse povo quer entrar, ele olha no seu quintal e diz: você não tem motor, não tem água, eu posso te dar cesta básica, combustível. Aí começa a entrar, sem pensar que o povo vai beber água suja, vai comer peixe contaminado. O rio mesmo deixa de produzir peixe, porque peixe nenhum quer ficar na lama contaminada. A gente sentiu isso.
A invasão continua. A colonização continua forte, desde 1500, oprimindo o povo. A gente tem que falar, gritar para eles pararem, mas muitas vezes, quando a gente fala isso, somos vistos como vilões, como quem atrapalha o desenvolvimento. A gente está na linha de frente contra essas pessoas que querem invadir. Por isso estamos com nossa vida em perigo, sob ameaça. Essa luta muda a vida da gente, faz perder a liberdade. Aí a gente explica para nossos filhos que a maior liberdade é você ter seu rio, seu território livre, demarcado, isso é que é viver livre. A gente não pode desistir agora, temos que continuar ainda buscando uma autonomia.
A gente sabe que os órgãos governamentais estão fracos, sem recurso para entrar nas Terras Indígenas e Parques para tirar invasores. O governo está fazendo isso, desmontando tudo para não ter transporte, combustível para os funcionários saírem do escritório, para não irem onde estão os invasores. Retiram o recurso de quem deve proteger e incentivam os invasores. A FUNAI mesmo nos nega nossa existência, nega a demarcação de nosso território. O presidente da Funai e mesmo o presidente da república negam nossa existência e incentivam a violência. Tudo que sai da boca deles é muito venenoso, e é perigoso para os movimentos sociais, indígenas, quilombolas, assentados, ribeirinhos, beiradeiros. A gente sabe que se morrer uma liderança, ninguém vai buscar quem foi que matou, porque matou, quem mandou matar. É muito perigoso o que esse governo está fazendo. Mas a gente não pode parar não, mesmo com ameaça, não vou parar não.
Estou estudando advocacia em Santarém. Tenho 2 filhos pré-adolescentes, eles têm que ficar na cidade comigo e reclamam que estão presos numa gaiola igual pintinho, quando vêm para a aldeia, têm liberdade de correr, brincar, jogar bola… não se preocupam com celular, televisão, jogo. Na cidade é outro ensinamento, diferente do que a gente ensinaria. Acho que vai demorar muito para eu me formar, nem sei se vou aprender aquelas palavras complicadas da universidade. Eles criam umas falas que a gente não entende, como vamos falar com nossas comunidades com essas palavras técnicas? É colonização de todo jeito.
Mas a gente se preocupa muito como as leis afetam nosso povo. Essa discussão do marco temporal vai afetar todas as terras indígenas. Por esse entendimento, dizem que só vai demarcar terras para quem estava no território no dia 5 de outubro de 1988, mas eles se esquecem que essa data é só a promulgação da constituição e não pode ser regra para demarcação de quem já vivia aqui há muito tempo. Quando os europeus vieram para cá, nosso povo era livre, não existia estado, não existia município, fronteira, empresas. Quem veio colocar tudo isso foi o branco. Muitos povos não estavam mais na sua terra nessa data porque foram deslocados por causa de epidemia, de projetos, de interesses. O governo coloca leis, projetos, tudo para nos prejudicar, usam manobras para negar nossa existência. Criam leis para a gente não entender e permitir hidrelétrica, gado, ferrovia, tudo em beneficio do que dizem ser o país desenvolvido. Tudo isso, a energia produzida pelas turbinas, a soja, o gado, isso não beneficia nosso povo, só beneficia o país desenvolvido. O meio ambiente não é só o mato e o animal. Quem protege o meio ambiente, quem garante o território somos nós. Mas tem que estar demarcado, porque quando não está, as invasões são maiores.
A mineração está prejudicando muito as pessoas no nosso território, a poluição dá coceira, dor de barriga, outras doenças graves. A gente fez um projeto para instalar poços artesianos nas comunidades, para ter água limpa para beber e a Funai barrou, eles negam nosso direito de fazer os poços para ter água potável. Criaram um termo que impede termos direito à água limpa, à moradia, à vida. O governo está entregando nosso território e nossos corpos para os inimigos. Esses projetos do país desenvolvido têm na sua origem o sangue das crianças indígenas.
Eu sou Alessandra Korap Munduruku, guerreira do médio Tapajós.”
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Vozes indígenas: a guerreira Munduruku vê a pandemia - Instituto Humanitas Unisinos - IHU