06 Novembro 2020
"Esses povos que já conheceram o fim do mundo em algum momento de sua trajetória, que já viram desabar o céu sobre seu modo de vida, a morte de parentes e dos antepassados que sucumbiram a epidemias e escravidão, estão de pé, com os maracás na mão, o conhecimento ancestral revigorado e o canto ritual pronto para afastar o mal", escreve Angela Pappiani, jornalista, produtora cultural e escritora e diretora na IKORE, agência voltada à temática indígena, sobre relato de Bel Juruna, do povo Yudjá, da Volta Grande do Rio Xingu (MT), em artigo publicado por Outras Palavras, 04-11-2020.
Belo Monte deixou povos sem a pesca, dependentes da cidade e de auxílio de empresas. Com a pandemia, situação piorou: ficaram isolados, sem comunicação ou ajuda médica. Força e cuidado feminino foi fundamental.
Num momento de especial dificuldade, com uma pandemia ameaçando vidas, consumindo energias, apagando memórias e saberes, quebrando os ritos funerários que asseguram o caminho dos mortos, os povos indígenas ainda enfrentam desafios maiores como invasões a seus territórios, desmatamento, fogo, violências contra a teia da vida na floresta, abandono e pressão por parte de governantes e das populações locais iludidas com falsas promessas de progresso.
Mas em todos os depoimentos de pessoas indígenas das mais variadas regiões do país, a sabedoria ancestral pulsa. Esses povos que já conheceram o fim do mundo em algum momento de sua trajetória, que já viram desabar o céu sobre seu modo de vida, a morte de parentes e dos antepassados que sucumbiram a epidemias e escravidão, estão de pé, com os maracás na mão, o conhecimento ancestral revigorado e o canto ritual pronto para afastar o mal.
São exemplos de resistência e luta, e nos convocam como aliados nesse caminho, para buscarmos dentro nós essa força viva que vem da natureza e pode segurar o céu para não desabar.
A vozes que ouviremos, neste e no próximo artigo, vêm das mulheres, das guerreiras, das sábias mantenedoras da cultura, das mães que querem um futuro bom, sadio, digno para seus filhos e netos.
Bel Juruna, do povo Yudjá, da Volta Grande do Rio Xingu, abre o ciclo feminino. Ela nasceu em plena luta de seu povo contra a construção da Hidrelétrica que se chamaria Kararaô. Barrada pela grande mobilização que reuniu muitos povos no I Encontro dos Povos Indígenas em Altamira, em 1988, ressurgiu com o nome de Belo Monte. Muitos estudos e evidências mostravam que a barragem era questionável do ponto de vista técnico e econômico e viria a prejudicar de forma irreversível os povos indígenas e ribeirinhos, mas os alertas foram ignorados, numa guerra de interesses poderosos, com muito dinheiro de propina em jogo. Hoje, a cidade de Altamira se transformou num inferno, num amontoado de gente deslocada de seu chão, em habitações precárias e sem perspectiva, outros sem raiz e sem rumo, todos disputando a sobrevivência num lugar sem infraestrutura, sem condições de enfrentar o inchaço provocado pela construção da barragem, o que resulta em violência extrema. Os povos originários do médio Xingu sucumbiram diante do grande feitiço que é Belo Monte e ainda lutam contra a implantação de Belo Sun, a maior mina de ouro a céu aberto do mundo. Mais um mega projeto, mega devastador, que vai enriquecer mais ainda pouquíssimos mega ricos globais. Mas esses povos não perderam a esperança e a vontade de viver bem. Com a palavra, Bel Juruna:
“As primeiras informações que chegaram sobre o vírus foi pela TV. Vimos que estava matando muitas pessoas. Muita gente ficou com o psicológico abalado. Todos os canais de TV que a pessoa mudava estava passando a tragédia. Não sei se era coisa só da televisão ou estava acontecendo mesmo, mas era o que a gente estava vendo. Não foi fácil. Muito sofrimento ver as pessoas que não tinham nem como velar um corpo, enterrar um ente querido, aquela quantidade de covas abertas, de pessoas mortas… abalou bastante, tinha gente entrando em depressão. A única forma de ajudar um ao outro era conversar.
A primeira consequência da pandemia foi a paralisação de atividades do PBA (Plano de Básico Ambiental que prevê ações para mitigar os impactos da obra) de Belo Monte dentro da comunidade, as atividades com projetos novos que tinham o acompanhamento técnico das empresas terceirizadas pela Norte Energia. Coisas que a gente não mexia antes, como criação de peixe, plantação de cacau, cultivar produtos na roça que não eram de costume da gente, por isso tinha necessidade do acompanhamento. A Funai ordenou ao DSEI (Distrito de Saúde Indígena) que essas pessoas saíssem da aldeias imediatamente. Depois ficamos totalmente isolados, sem comunicação nenhuma, só agora, depois de meses da pandemia, conseguimos recurso para o sinal de internet em quatro aldeias. Os dois rádios que havia antes já estavam inativos, sem manutenção. Ficamos isolados.
Para mim foi muito difícil trabalhar na saúde sem ter comunicação direta com o DSEI, sem prevenção, itens de higiene, máscara, para se proteger. Em situações de emergência, a gente teve que sair da aldeia para a cidade e não tinha esse material no posto. Nem na farmácia, quando encontrava era pouca quantidade e muito caro.
A estratégia foi fazer reuniões internas com as outras aldeias e decidimos fechar a porteira da estrada. Aqui estamos numa região próxima à cidade de Altamira, no trecho de vazão de água reduzida com a formação do lago de Belo Monte. A água do nosso rio foi desviada para as turbinas para gerar energia. Ficamos sem água e com praia demais. Então as pessoas estavam vindo para cá, principalmente em final de semana e a gente teve que fechar porque ficamos com medo, não sabíamos com o que a gente estava lidando, não dá para ver quem está com o vírus. Mas foi difícil e teve algumas falhas. Por isso a contaminação chegou aqui.
Outra decisão foi de todo mundo se ajudar. Porque aqui a dificuldade em se manter é enorme. Nesse sentido as mulheres foram muito importantes. Nossas atitudes, nosso olhar de cuidado fez a diferença, um olhar do coletivo. Aqui tem gente que tem renda e outros que não têm, e esses estavam passando por problemas mais sérios. Agora a gente está obrigado a consumir bastante coisa da cidade, porque o rio não tem mais condição de oferecer. Então a gente teve o cuidado de dividir o que tinha e também na fabricação e distribuição das máscaras. Minha mãe tem máquina de costura, então ela copiou o modelo da máscara e fez com tecido que tinha aqui para doar pra nossa comunidade e para outras vizinhas que vieram buscar, porque é tudo família.
A gente era uma comunidade pesqueira. Pescava para se alimentar e pegar peixes ornamentais para se manter, tinha água e peixe abundante. Com o desvio do rio, mudou tudo, acabou nossa atividade pesqueira para gerar renda e quase não tem mais peixe para o consumo. Então as pessoas estão passando dificuldade. Por isso combinamos que uma única pessoa sairia para fazer as compras e atender a necessidade de todas as famílias. Depois essa pessoa ficava de quarentena para evitar a contaminação. Foram essas as nossas estratégias para evitar a contaminação.
A Funai está totalmente desestruturada, criaram protocolos, mas sem olhar a necessidade de cada aldeia, não ajudou em nada, só dificultou nossa vida, se não era para ajudar, devia pelo menos não ter atrapalhado.
Só no terceiro mês da pandemia, de tudo parado e a gente isolado, os funcionários de uma empresa terceirizada fizeram uma vaquinha e doaram itens como máscara e álcool. Foi ação dos funcionários, não da empresa. No quarto mês, teve casos na aldeia Muratu, gente com sintomas semelhantes a Covid. Um casal de idosos da aldeia ficou mal, o neto deles levou para a cidade e ficou confirmado que estavam com Covid. Então ele acionou o Ministério Público e solicitou que o atendimento da saúde entrasse dentro da comunidade. Teve que ter uma ação do MP para que o distrito que trabalha na saúde específica indígena entrasse dentro da comunidade. Foi só então que uma equipe chegou para fazer triagem, mas não foi feito testes para a gente saber quem estava contaminado para poder isolar. Essa equipe não trouxe nenhum material, nem levou em conta os relatos do povo da aldeia. A vida na comunidade é todo mundo muito junto. A gente frequentava a aldeia onde os velhinhos foram confirmados com Covid.
A segunda ação da equipe fez testes e confirmou 14 casos só na aldeia Muratu. Meu pai, minha mãe, meus dois filhos de 10 e 7 anos estavam contaminados. Fazer o isolamento dessas pessoas foi o mais difícil. A aldeia parecia de luto. Todo mundo dentro de casa, muito triste, sem nem poder fazer suas atividades na roça, com medo da morte.
Minha filha teve que ficar no isolamento. Ela tinha o vírus mas não sentia nada. Fiquei com ela isolada numa parte da casa sem contato com os outros. Fiquei pensando bastante, como é dentro de uma comunidade? Fiquei me perguntando o que é ser índio na verdade, o que é morar dentro da aldeia. Uma criança dentro da aldeia tem uma vida livre, de brincar, de correr, de ir para o rio banhar, pescar, jogar bola, dançar e de repente tem que ficar isolada dentro de casa. A tristeza que eu via nos olhos de minha filha estava me partindo o coração. Não sei como ela pegou essa Covid, porque ela nunca saiu da aldeia, nem ela nem o pequeno. Isso me abalou muito. Ela dizia que queria sair, que não aguentava mais ficar presa naquele espaço e não sabia porque estava ali. Eu tentava explicar. Ela não sabia o que estava acontecendo. Passou. Todos ficaram bem.
Como técnica de saúde eu tentei fazer meu trabalho, mas restringido, também com medo, sob pressão, sem nenhum apoio do DSEI. Foi um momento muito triste, uma tragédia no mundo todo e nos afetou mentalmente. Não tivemos pensamento de realizar nada, nem buscar nada, a gente ficou paralisado com a situação, amedrontado, aterrorizado com tudo que a gente estava vendo na televisão e com medo de chegar aqui na nossa aldeia e morrer as pessoas, nossos pais, nossos filhos, a gente mesmo. Nos voltamos muito para a atividade na roça. Usamos o tempo para trabalhar, para ocupar a cabeça, foi assim que a gente focou. Não teve como aproveitar esse momento para se fortalecer na cultura porque não tinha motivo para isso, a gente não tinha cabeça.
Um ponto positivo foi que as atividades dos condicionantes da Norte Energia a gente teve que dar sequência sozinhos. A gente achava que precisava do apoio técnico, mas percebeu que eles estavam mais atrapalhando do que ajudando. Sem eles a gente trabalhou melhor, deu andamento nos projetos, se desenvolveu bastante, aprendeu, fez as coisas por nossa conta e deu certo, está dando certo. Precisamos do fornecimento dos materiais, mas damos conta de tocar qualquer projeto com o conhecimento dos mais velhos que nos orientam, pessoas formadas com o conhecimento tradicional. Foi bastante aprendizado.
A gente se manteve firme dentro da comunidade, usou estratégia para que a coisa não saísse do controle, não tivemos nenhum óbito. O que aconteceu foi para a gente refletir. Esse vírus não escolheu o indígena, o branco ou o negro, nem o pobre, nem o rico, escolheu a população do mundo. Esse vírus que veio do nada, que ninguém vê, mostrou que somos iguais. Muita gente sofreu perdas e ainda vai precisar de atendimento psicológico para enfrentar o trauma. Em muitas comunidades indígenas o povo não teve como velar e enterrar seus entes queridos. Fico triste por muitas aldeias que tiveram que enfrentar situações muito mais difíceis do que a nossa.”
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Vozes indígenas: no Xingu, mulheres encaram a covid - Instituto Humanitas Unisinos - IHU