30 Outubro 2020
Singular, importante e conflitivo são os termos que o padre jesuita Víctor Codina qualifica o Sínodo Pan-Amazônico, do qual participou como teólogo assessor, um ano depois de encerrada a assembleia sinodal na cidade de Roma.
A entrevista é de Manuel Cubías, publicada por Vatican News, 29-10-2020. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
O jesuíta Víctor Codina defende que o Sínodo Pan-Amazônico é singular porque aborda um tema universal, a ecologia integral, mas desde um lugar geográfico concreto: a Amazônia. Importante, porque resume o magistério de Francisco (Evangelii gaudium, Laudato Si’, Episcopalis communio) e constitui, segundo alguns, como o ponto alto do seu pontificado, e conflitivo, porque é crítico aos organismos financeiros, econômicos e políticos que exploram e destroem a Amazônia, e crítica também frente ao poder do clericalismo eclesial.
Para se aprofundar nesta análise, Codina levanta sete chaves teológicas que se auto-implicam e se solapam mutuamente:
O tema central do Sínodo é a vida, afirma Codina, e este faz parte integrante da missão eclesial de todos os tempos, prolongar a missão de Jesus que passou pelo mundo fazendo o bem e libertando de toda a ameaça de morte (Atos 10, 38), que anuncia um Reino de vida, que envia seus discípulos a dar vida e libertar do mal.
Codina remete-nos a uma visão integral da vida que inclui a vida do planeta, a vida humana material, cultural e espiritual dos povos amazônicos, a vida plena das comunidades eclesiais amazônicas; é a vida humana começando pelo mais elementar e material (bios) e humana (psyche) e a vida plena, salvífica, divina que nos comunica o Espírito do Senhor ressuscitado (zoe) (Instrumentum Laboris 11). Corresponde à Igreja anunciar e defender a vida, e denunciar todas as ameaças de morte e lutar pela vida.
Por esta razão, argumenta o teólogo, é unilateral e enviesado reduzir o Sínodo à mudança climática ou à ordenação de homens indígenas casados, enquanto se silencia a dimensão ecológica integral.
A metodologia do sínodo não é a da Lumen Gentium, que começa a partir da Trindade (LG 1-4), destaca Codina, mas sim a da Gaudium et Spes, que parte da realidade (GS 1-10): ver, julgar e agir. Francisco também nos adverte que a realidade é mais importante que a ideia (EG 231-233). No entanto, acrescenta, a novidade do Sínodo consiste em que, ao ver, acrescentou-se o escutar, superando assim o risco de cair em uma frieza sociológica objetiva e distante. Escutar implica em passar de ser mero agente a ser receptor e paciente, deixando-se impactar pela realidade humana, pelo clamor do povo, como Javé escuta o clamor do povo explorado no Egito que sobe até o céu (Ex 3, 7-10), como Jesus que sente que se comovem as entranhas frente ao sofrimento do povo que vive com ovelhas sem pastor (Mc 6, 34).
Escutar é o momento necessário para um julgar e atuar compassivo diante da dor alheia.
Destacando isso, Francisco em Puerto Maldonado (Peru), preferiu escutar os indígenas antes de dirigi-los a palavra, e acrescenta Codina, no caso da Amazônia não apenas se trata de escutar o povo, mas sim de escutar a um povo pobre que faz parte daqueles privilegiados bíblicos a quem os mistérios do Reino de Deus foram revelados (Lc 10, 21-22).
A atitude de escuta permite, diz Codina, estar atento aos gritos dos povos amazônicos que vão em duas direções: primeiro, o clamor constante diante da destruição que as multinacionais causam em seu habitat e que colocam em risco suas vidas, em decorrência do esforço lucro de grupos financeiros, econômicos e políticos. Em segundo lugar, o clamor pela ameaça que paira sobre sua identidade humana, cultural e espiritual, já que a terra não é um lugar ou um objeto, mas um sujeito, a Mãe Terra, cujas veias são cortadas por multinacionais e sangram até a morte. Nunca o povo amazônico foi tão ameaçado como agora.
Por essas razões, enfatiza o teólogo jesuíta, o Sínodo Pan-Amazônico é providencialmente atual, pois apela ao diálogo e à conversão ecológica das partes envolvidas.
O Concílio Vaticano II, sublinha Codina, reconhece o valor das Igrejas locais, com a sua própria identidade cultural e histórica, a sua diversidade litúrgica e canônica que enriquece a Igreja universal (LG 23, SC 37-40; 65, AG 22). A Igreja é um Povo de Deus com muitas faces (EG 115.121).
Por sua vez, o Sínodo escuta a voz das comunidades cristãs amazônicas que, na extensa pesquisa realizada, expressam, como vimos, um duplo aspecto. Por um lado, agradecem os 500 anos de evangelização da Igreja missionária que fundou e formou as várias comunidades cristãs ao longo dos séculos e pedem que continuem a ajudá-las com centros de formação e a defender-se das atuais agressões das multinacionais.
Mas, ao mesmo tempo, lamentam que ainda sobreviva um sentido colonial e vertical da missão, pouco inculturado e dialógico, com uma pastoral que é mais uma visita do que uma presença estável. Os missionários são chamados a conhecer a língua e a cultura do povo e a ter uma visão positiva sobre as capacidades dos povos indígenas de liderarem suas comunidades eclesiais nas várias formas de missão e ministérios, já que são eles quem melhor conhecem as pessoas e sabem acompanhá-las e conduzi-las. Uma Igreja local madura deve ter seus próprios ministros indígenas.
Para Codina, é legítimo falar de uma Igreja com rosto amazônico, desde que seja uma Igreja que responda aos anseios e necessidades dos povos deste território, defendendo suas vidas e anunciando o Evangelho de forma inculturada. Por isso, é solicitada a constituição de uma Organização Episcopal Regional Pós-Sinodal para a Região Amazônica (IL 115), que possa discernir e realizar as propostas sinodais. O fruto dessa reflexão foi, diz o jesuíta, a constituição não de uma Conferência Episcopal da Amazônia, mas da Conferência Eclesial da Amazônia.
Em relação a este aspecto, Codina faz questão de superar a visão que alguns setores têm sobre os povos amazônicos e em que se acentuam sua pobreza e necessidade de proteção, esquecendo sua grande riqueza humana, cultural e espiritual e que possuem sabedoria milenar e ancestral, anterior ao cristianismo.
À beleza do território devemos somar, diz o jesuíta, a abordagem dos povos amazônicos em relação à vida, em harmonia com a natureza, com a comunidade e com Deus, bem como uma espiritualidade integral, que se expressa no sentido de celebração e da festa, uma sabedoria tradicional no cuidado da terra, da saúde, dos remédios, um conceito de desenvolvimento e progresso muito diferente do conceito moderno de progresso tecnocrático que acumula bens nas mãos de poucos e destrói a natureza.
Só depois de falar da necessidade de defender a Amazônia das ameaças que a destroem, destaca Codina, é que se fala da Eucaristia. Sem justiça não há Eucaristia, não seria a Ceia do Senhor (1 Cor 11). Antes de oferecer a oferta, é preciso reconciliar-se com os irmãos (Mt 5,23-24). Por isso, ainda se suspeita que alguns setores queiram reduzir o Sínodo Pan-Amazônico à questão dos ministérios dos homens casados e do diaconato feminino.
Codina cita Henri de Lubac que sintetiza a tradição patrística: “a Eucaristia faz a Igreja, a Igreja faz a Eucaristia” e que João Paulo II apresenta em Ecclesia de Eucharistia, mostra a centralidade da Eucaristia na vida cristã, pois como diz o Vaticano II, a Eucaristia é a fonte e o ápice de toda a vida cristã (SC 10; PO 5).
Por isso, argumenta Codina, as comunidades não podem ser privadas da Eucaristia por anos inteiros por falta de ministros e grandes distâncias, sob o risco de que se tornem comunidades evangélicas da Palavra ou simplesmente desapareçam. Daí a urgência de dotar as comunidades de ministros ordenados para a evangelização, o serviço e a celebração dos sacramentos, especialmente da Eucaristia.
Nesta última seção, Víctor Codina afirma que devemos partir do fato de que o Povo de Deus acredita que quem o guia é o Espírito do Senhor que enche o universo (GS 11) e que toda a Igreja, especialmente pastores e teólogos, devem ouvir, discernir e interpretar, com a ajuda do Espírito, as muitas vozes do nosso tempo (GS 44), para compreender os planos de Deus e assim a Verdade revelada possa ser melhor percebida (GS 44).
Da mesma forma, argumenta o jesuíta, a história humana não é homogênea, mas há momentos de graça, de kairós, que clamam por uma conversão, uma mudança profunda para o Reino de Deus. Este Espírito presente nas profundezas da história, que se manifesta através dos últimos, pobres, marginalizados e abandonados, é aquele que agora clama pelos povos amazônicos, pedindo justiça em sua terra, liberdade para viver sua identidade e sua cultura, para que seu território, a Mãe Terra, seja respeitado. O clamor dos pobres se junta ao clamor da terra, é o Espírito do Senhor clamando por eles e nos convidando a ouvir sua voz para que abandonemos os caminhos da morte e nos convertamos a uma ecologia integral.
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“É enviesado reduzir o Sínodo à ordenação de homens casados, enquanto se silencia a dimensão ecológica integral”. Entrevista com Víctor Codina, s.j. - Instituto Humanitas Unisinos - IHU