09 Outubro 2020
“É por isso que o Sínodo da Amazônia apelou a modelos econômicos alternativos, e porque o papa Francisco condenou as relações coloniais (em curso). Não é novidade para Roma ou para os residentes da Amazônia que grande parte da destruição resulta de atividades econômicas e decisões políticas no Norte Global, mas, como a recepção do Sínodo nos Estados Unidos está indicando, ainda é novidade para muitos de nós”, escreve Bryan P. Galligan, jesuíta estadunidense, em artigo publicado por Commonweal, 06-10-2020. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
O Documento Final do Sínodo Pan-Amazônico e a Exortação Pós-Sinodal Querida Amazônia descrevem uma crise social e ambiental de proporções históricas. Francisco retrata a crise como “um clamor que sobe até os céus”. A crise que ameaça a região da Amazônia com o ecocídio e o etnocídio, e – por causa do papel que cumpre a floresta amazônica na regulação do clima global – também ameaça o planeta como um todo. Ainda, a mensagem de urgência do sínodo foi afogada nos Estados Unidos por controvérsias ideológicas sobre a ordenação de padres casados, viri probati, o valor da inculturação, e as acusações racistas de idolatria. Um ano depois, o “dramático estado de destruição” ao qual o documento final do sínodo se refere só tem piorado, e católicos no Norte Global ainda parecem não saber.
Muitos dos moradores das regiões mais pobres da Amazônia moram em comunidades rurais e casas informais. O desenvolvimento da região levou ao crescimento econômico nos últimos anos, mas ali são poucas as evidências de que as condições de vida melhoraram. A segurança alimentar segue sendo um problema persistente; trabalhadores da indústria extrativista estão expostos a doenças como malária e raiva; e também uma falta severa de infraestrutura de saúde e saneamento.
A pandemia do coronavírus exacerbou muitos desses problemas pré-existentes, e as comunidades indígenas têm sido fortemente atingidas. Celia Xakriaba, uma líder indígena brasileira, descreveu o risco de saúde pública que enfrentam as comunidades indígenas como um extermínio. Ela alerta que um recente relatório demonstra que membros de comunidades indígenas estão sendo infectados pelo vírus em torno de duas vezes mais que a média proporcional de outros brasileiros, e que também são os que mais morrem quando infectados pelo vírus. A negligência do governo, a falta de cuidados médicos, e o crescimento de invasões em terras indígenas por indústrias extrativistas ilegais como apontadas como a razão para esse resultado desproporcional. O povo Arara, por exemplo, que tem a maior taxa de infecção por covid-19 registrada entre as tribos indígenas na Amazônia brasileira, também está frequentemente afetada por madeireiras e garimpo ilegal.
Antes mesmo de a pandemia chegar à região amazônica, a desapropriação de terras indígenas já estava aumentando: o Conselho Indigenista Missionário (CIMI) relatou 160 grilagens de terras em 2019, contra 96 apenas dois anos antes. A maioria dos funcionários do governo (incluindo policiais), ativistas e trabalhadores de ONGs retiraram-se da Amazônia enquanto o vírus se aproximava em uma tentativa de proteger as comunidades indígenas e limitar a propagação da doença. Tragicamente, no entanto, as indústrias extrativistas exploraram essa ausência e o desmatamento agora está acelerando. Embora o presidente Jair Bolsonaro tenha delegado militares para a região na tentativa de evitar a repetição dos incêndios de agosto do ano passado, dados de satélite mostram que a taxa de desmatamento continua muito maior do que 2019.
A violência contra os povos indígenas e servidores do governo designados para protegê-los também aumentou. De acordo com a Human Rights Watch, o desmatamento da Amazônia é em grande parte impulsionado por sindicatos do crime organizado que defendem seus interesses com ameaças, intimidação e violência. Seus crimes geralmente não são investigados e nem punidos. Neste contexto de violência e impunidade, grupos de direitos humanos têm alertado que alguns grupos indígenas estão em risco de “massacres iminentes”. O governo ainda não deu atenção a esses avisos.
A mudança climática e o desmatamento, ambos comandados primordialmente pelas forças econômicas de outras partes do mundo, estão fazendo com que a má situação na Amazônia fique ainda pior. Enquanto a taxa de desmatamento caiu entre 2004 até 2010, nos últimos anos tem tido uma constante e dramática tendência de crescimento. Em agosto de 2019, o desmatamento foi três vezes maior que no mesmo mês de 2018. Isso foi acompanhado com 30% do aumento do número de incêndios, um evento que produziu manchetes e galvanizou a opinião pública ao redor do mundo. No último mês de junho, grupos da sociedade civil e ambientalistas previram que a temporada de queimadas deste ano poderia ser pior e, como escrevi, ainda é possível que essas previsões possam se tornar verdade.
Muita culpa cai sobre Bolsonaro, que encorajou o desmatamento ilegal e tem minado a lei. Ele também esvaziou muitas das agências públicas responsáveis pela proteção ambiental e emitiu políticas que limitam suas ações. Mas a culpa não é apenas de Bolsonaro e o desmatamento não é limitado apenas ao território brasileiro.
No Equador, as concessões petrolíferas continuaram crescendo em áreas protegidas do país e o presidente Lenín Moreno repetidamente tem quebrado sua promessa de respeito aos direitos das comunidades indígenas de determinarem como as suas terras serão usadas. Dois oleodutos associados a essas concessões explodiram em maio, poluindo os cursos d'água dos quais cerca de 27 mil indígenas dependem para obter alimentos e água. O desmatamento também está aumentando na Bolívia, principalmente com incêndios florestais.
Embora o desmatamento às vezes possa ser revertido e seus efeitos mitigados, a situação na Amazônia parece estar chegando a um ponto sem volta. Em carta publicada no final do ano passado, dois importantes cientistas, Thomas Lovejoy e Carlos Nobre, alertaram que “a preciosa Amazônia está à beira da destruição funcional e, com ela, nós também”. No parágrafo final, eles escrevem: “hoje, estamos exatamente em um momento do destino: o ponto de inflexão é aqui, é agora”.
O ponto de inflexão a que se referem Lovejoy e Nobre tem sido um tópico ativo de discussão na comunidade científica desde o início dos anos 2000, mas ainda não foi abordado ou mesmo reconhecido pelos formuladores de políticas. O mecanismo para esse ponto de inflexão é simples, mas dramático. Quando a chuva cai na Amazônia, ela é absorvida pelo solo, absorvida pelas árvores e eventualmente liberada de volta na atmosfera para cair em algum outro lugar da floresta, em média, cinco a seis vezes antes de deixar o sistema. É por meio desse processo de reciclagem que a Amazônia conserva água e mantém seus ecossistemas vivos. À medida que o desmatamento avança, prevê-se que esse ciclo perca impulso e, finalmente, pare, resultando em reduções dramáticas nas chuvas, na morte da floresta e na conversão de grandes áreas em um ecossistema de savana seca. Essa transformação teria implicações desastrosas para a mudança climática. Também geraria uma crise humanitária.
Conforme a floresta desaparece e deixa de regular a quantidade de água que flui rio abaixo, algumas coisas podem acontecer. A produção de alimentos sofrerá de maneira geral, já que grande parte da agricultura da região depende da Amazônia para chuvas e polinização. A segurança da água e o saneamento também serão comprometidos; a cólera normalmente se espalha na estação de seca, quando a água da chuva e limpa se torna indisponível e secas extremas são mais frequentes, agravando essa tendência. Os grupos indígenas e outros que dependem diretamente dos ecossistemas locais serão os mais vulneráveis. Provavelmente perderão suas casas e seu modo de vida.
Os ribeirinhos, um grupo de aproximadamente sete milhões de residentes de várzea com ascendência indígena e europeia mista, são um desses grupos particularmente vulneráveis. Suas atividades econômicas são inteiramente estruturadas em torno dos ciclos sazonais do rio e secas e inundações podem levar à escassez de alimentos. Quando as enchentes anuais baixam, os ribeirinhos aproveitam a umidade e os nutrientes deixados para trás para fazer as plantações na várzea. Na mesma época do ano, os peixes ficam presos em lagos e lagoas, que normalmente fornecem comida suficiente para as comunidades próximas. No entanto, episódios de seca confinam os peixes em corpos d'água menores e mais populosos, fazendo com que alguns deles morram por falta de oxigênio. As secas também tornam os peixes amazônicos mais vulneráveis à pesca e caça para operações comerciais, o que compromete a disponibilidade de alimentos para os pescadores de subsistência a longo prazo. Quando termina a estação da seca e o rio inunda novamente as suas margens, torna-se muito mais difícil de pescar e todos os ribeirinhos, exceto os mais seguros financeiramente, sofrem de grave insegurança alimentar sazonal. Em anos com ciclos de enchentes mais extremas, essa temporada de fome dura ainda mais. Nos últimos anos, já assistimos a várias secas e inundações históricas, que parecem ser os primeiros sinais de uma desestabilização geral do ecossistema. E, salvo uma reviravolta dramática no desmatamento e nas emissões de carbono, a situação tende a piorar.
Atingir um ponto crítico na Amazônia também pode ser desastroso para a saúde pública de uma forma mais geral. A região já é considerada um hotspot global para doenças infecciosas emergentes, e um estudo recente sugere que o desmatamento pode ser o principal culpado. Ecossistemas biodiversos como a Amazônia são sempre mais propensos a abrigar patógenos, e perturbar esses sistemas pode fornecer oportunidades para o surgimento de novas doenças. A atual destruição da Amazônia e a concomitante movimentação de pessoas entre as cidades e a floresta, todos em um contexto geral de condições sociais marginais e falta de infraestrutura de saúde e saneamento, criam uma situação ideal para que os surtos se transformem em epidemias. Os casos de malária voltaram a aumentar no Brasil à medida que as taxas de desmatamento se aceleraram nos últimos anos, e uma epidemia de febre amarela, outra doença associada ao desmatamento, matou 745 pessoas entre o final de 2016 e o início de 2018.
A contínua destruição social e ambiental da Amazônia não é apenas um problema local ou sul-americano. O mundo inteiro depende desta região devido ao seu papel na regulação do clima. A floresta tropical mantém os gases de efeito estufa fora da atmosfera, armazenando carbono em formas orgânicas, representando cerca de 10% do estoque de carbono biológico do planeta. A conservação e o reflorestamento podem dar ao mundo muito tempo enquanto tentamos reduzir as emissões de carbono. As previsões atuais do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas das Nações Unidas sugerem que 2030 é o ano em que teremos evitado ou nos comprometido com 2,7 graus de aquecimento, um nível que eles descrevem como catastrófico. Alguns estudos mostram que a conservação e o reflorestamento da floresta tropical podem estender esse prazo até 2040.
Tampouco é a perda de armazenamento de carbono a única maneira pela qual as mudanças na Amazônia podem afetar os climas regionais em outras partes do mundo. Alguns modelos climáticos mostram que as mudanças na circulação atmosférica que resultariam do desmatamento maciço na Amazônia alterariam as trilhas de tempestades do Atlântico Norte e da Europa, causariam temperaturas mais baixas no sul da Europa e levariam a uma tendência de aquecimento no inverno em partes da Ásia. As consequências de cruzar o ponto de inflexão na Amazônia seriam verdadeiramente globais.
O resto do mundo compartilha não apenas das consequências da destruição da região, mas também da responsabilidade por ela. O desmatamento é impulsionado pela economia global e, particularmente, pelo consumo nos países mais ricos do mundo. O Brasil produz cerca de 30% da soja mundial, grande parte da qual é exportada para a Europa e China. O cultivo de soja em grande escala é responsável tanto pelo desmatamento quanto pelas emissões de carbono. E embora muitas grandes empresas de exportação tenham feito promessas de fornecer soja de forma sustentável, em terras fora da região amazônica, suas operações em expansão geralmente deslocam outros usuários da terra, empurrando-os para a borda recuada da floresta tropical. As exportações de carne bovina para a Europa e os Estados Unidos também são um problema: a cadeia de abastecimento brasileira é tão opaca que raramente se pode dizer se um determinado corte de carne veio de uma vaca que pastava em terras desmatadas.
De maneira mais geral, as commodities que dependem do desmatamento tropical tornaram-se tão integradas às cadeias de abastecimento globais que é quase impossível para os consumidores saber que danos estão causando ao comprar um determinado produto. Grandes empresas foram avaliadas por seu impacto no desmatamento tropical (ironicamente, a Amazônia tem taxas muito baixas), e há certificações para produtos mais obviamente relacionados à floresta, como papel e madeira (repare os rótulos do Forest Stewardship Council e da Rainforest Alliance), mas as implicações ecológicas das escolhas de alguém como consumidor são frequentemente obscuras. A soja brasileira é usada como ração animal em outras partes do mundo, o que significa que a carne suína criada na China pode indiretamente causar tanto desmatamento quanto a madeira do Brasil, e a polpa de madeira, embora normalmente usada para fazer papel, também aparece em produtos alimentícios, têxteis e celofane. O ouro extraído ilegalmente é usado em nossos eletrônicos, e o petróleo de terras indígenas no Equador acaba em nossos tanques de gasolina.
Felizmente, existem alguns sinais de que a comunidade internacional está despertando para sua responsabilidade pela devastação na Amazônia. Devido à temporada de incêndios de 2019, a mobilização da opinião pública e da conscientização foi altamente eficaz. Em junho deste ano, um grupo de empresas de investimento, que juntas administram cerca de 3,75 trilhões de dólares, expressou preocupação com o desmatamento e abusos dos direitos humanos em uma carta aos embaixadores brasileiros. Sete empresas europeias, com mais de 2 trilhões de dólares em ativos administrados, ameaçaram explicitamente desinvestir. No entanto, apesar desses sinais de esperança, o desinvestimento está longe de ser uma panaceia. A revista The Economist estima que as empresas de capital aberto são responsáveis por apenas cerca de 14% das emissões mundiais de gases de efeito estufa. Tampouco está claro que retirar dinheiro dos títulos do governo brasileiro em um momento em que os serviços sociais e ambientais já estão sendo destruídos seja uma boa ideia. Temos que encontrar maneiras melhores de responder.
Enquanto a maioria dos ribeirinhos passam meses do ano pulando refeições por falta de uma geladeira, e enquanto os povos indígenas em toda a Amazônia estão perdendo suas vidas para proteger suas terras, a maioria de nós nos Estados Unidos ignora complacentemente como nossas vidas estão conectadas com a deles. À medida que aumentamos a consciência de nossa cumplicidade com as forças que estão destruindo as florestas tropicais, descobriremos que nada menos do que uma revolução moral e econômica provavelmente será uma solução adequada. Não será suficiente expressar preocupação, ajustar nossos hábitos de consumo individualmente ou mudar a forma como investimos. Um problema dessa escala e urgência exigirá ação coletiva e cooperação global. É por isso que o Sínodo da Amazônia apelou a modelos econômicos alternativos, e porque o papa Francisco condenou as relações coloniais (em curso). Não é novidade para Roma ou para os residentes da Amazônia que grande parte da destruição resulta de atividades econômicas e decisões políticas no Norte Global, mas, como a recepção do Sínodo nos Estados Unidos está indicando, ainda é novidade para muitos de nós.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Balançando na beirada... Um ano depois do Sínodo da Amazônia, a crise continua - Instituto Humanitas Unisinos - IHU