Sobre o sacrifício e o sinal, sem exagerar. Ideias para um entendimento católico-protestante. Artigo de Andrea Grillo

Foto: Biblioteca Apostolica Vaticana

09 Outubro 2020

"A 'ficção' desse Lutero contemporâneo expressa talvez com eficácia o objetivo secreto daquele diálogo ecumênico que hoje paga a necessidade de uma grande renovação de estilo, confiando muitas esperanças à redescoberta do primado da Eucaristia celebrada sobre a Eucaristia definida e conhecida: quase a necessária recuperação do primado da forma ritual como horizonte da forma verbal dentro da qual brilha a essencialidade da fórmula, que já não pode mais ostentar qualquer autossuficiência em relação ao contexto. Tanto a tradição católica como a evangélica caminham para esse objetivo: e não é de modo algum certo que, ao longo do caminho, não possam tornar-se boas companheiras, ou talvez até amigas do coração", escreve Andrea Grillo, teólogo italiano e professor do Pontifício Ateneu Santo Anselmo, em artigo publicado por Come Se Non, 07-10-2020. A tradução é de Luisa Rabolini.

 

Eis o artigo.

 

“Eu me deixaria incinerar antes de admitir que alguém que reza missa seja com sua obra igual ou superior ao meu Salvador Jesus Cristo. Portanto, somos e permanecemos eternamente divididos e contrapostos"
M. Lutero

"Ambas as formas de culto, a litúrgica e a espiritual, são cooriginárias"
E. Jüngel

 

Partir do significado para chegar ao sinal é a lógica dos museus, e daquela parte embalsamada que não pode deixar de estar presente em toda teologia humana. Passar do sinal ao significado é a lógica da vida e daquele mínimo de vitalidade que não pode deixar de estar em qualquer fé cristã. A "segunda virada antropológica" [1] tem o mérito de contribuir hoje para trazer de volta ao centro das atenções este banalíssimo fato: que "ninguém nasce sabendo tudo" – como diz o provérbio - e que se a liturgia tem um sentido é também o de "nos ensinar” – originalmente e originariamente – o que é vida em Cristo.

O grande ganho da "primeira virada antropológica" foi descobrir que o sinal por si só não pode valer como significado. Deve haver uma ulterioridade do sinal para que o sinal permaneça tal. Essa admissão – apesar de sua urgência inatacável – induziu, no entanto, a pensar que a ulterioridade em relação ao sinal possa depois se comunicar independentemente do sinal. Que isto se revele uma impossibilidade é a grande novidade representada pela "segunda" virada antropológica, inevitavelmente ligada à experiência simbólico-corpóreo-sacramental sobre a qual repousa a fé cristã.

Nesse âmbito, a questão da diferença entre sacrifício ritual e sacrifício espiritual, bem como entre a missa e a cruz, teve uma história exemplar. Num primeiro momento foi uma distinção dentro de uma relação, depois uma oposição entre espiritual e ritual, até chegar a uma recompreensão da prioridade, do primado "significativo" da interioridade e de um primado "sígnico" da ritualidade.

A esse respeito, gostaria de fazer uma referência rápida e significativa a um padre venerado e insuperável da primeira virada antropológica.

De fato, para poder usar uma famosa expressão de Agostinho no mundo moderno ("Ipse homo ... in quantum mundo moritur ut Deo vivat, sacrificium est" [2]), é necessário prestar muita atenção: é preciso ter uma forte sensibilidade para os detalhes, uma percepção aguda das sinuosas imprevisibilidades do mundo, e sabiamente adequar a isso uma sempre necessária teoria da fé.

O estilo da primeira virada antropológica tendia a olhar para o significante a partir do significado, ao imediatismo a partir (e em razão da) mediação. Como H. De Lubac disse com elegância:

“Quem diz sacramento, diz passagem. Embora restando indispensável em nossa condição terrena, a ordem sacramental é feita para levar sempre além do imediato. O significante nunca existe, senão em vista do 'significado mais profundo', e nunca o expressa de modo adequado" [3].

Essa feliz afirmação, tão rica em sabedoria clarividente, equivale à lúcida consciência do regime transitivo (e transitório) dos ritos, de seu estrutural “estar para outra coisa”.

Mas chega um momento – e este é o nosso tempo – em que, para garantir a possibilidade de fazer ainda aquela mesma passagem, é preciso voltar a intender também os direitos do imediatismo, o significante para chegar ao significado, o desejo para chegar ao dom. Afinal, sempre continua sendo verdade que “Há um tempo para defender uma tese e um tempo para propor a tese complementar. Com maior frequência ainda, será necessário defender uma e a outra ao mesmo tempo” [4].

Assim, com base nessa dupla consciência, vou reformular a frase do grande teólogo, mas com as prioridades invertidas, como hoje parece decididamente necessário retomar uma relação correta também com o sacrifício ritual:

“Quem diz passagem, diz sacramento. Embora feita para conduzir sempre além do imediato, a ordem sacramental resta um imediato de nossa condição terrena. O significado mais profundo nunca existe senão graças a um significante, embora este nunca o expresse adequadamente”.

É bem provável que assim também falaria o Padre De Lubac hoje.

Da mesma forma Lutero dizia, nos Artigos de Esmalcalda:

“Eu me deixaria incinerar antes de admitir que alguém que reza missa seja com sua obra igual ou superior ao meu Salvador Jesus Cristo. Portanto, somos e permanecemos eternamente divididos e contrapostos".

Enquanto hoje acredito que um Lutero contemporâneo poderia dizer, sem contradições consigo mesmo:

"Eu me deixaria incinerar em vez de admitir que alguém que reza missa está com sua ação simbólico-ritual em concorrência ou superior ao meu Salvador Jesus Cristo. Portanto, somos e permanecemos em uma fundamental comunhão eclesial, apesar de tudo”.

A "ficção" desse Lutero contemporâneo expressa talvez com eficácia o objetivo secreto daquele diálogo ecumênico que hoje paga a necessidade de uma grande renovação de estilo, confiando muitas esperanças à redescoberta do primado da Eucaristia celebrada sobre a Eucaristia definida e conhecida: quase a necessária recuperação do primado da forma ritual como horizonte da forma verbal dentro da qual brilha a essencialidade da fórmula, que já não pode mais ostentar qualquer autossuficiência em relação ao contexto. Tanto a tradição católica como a evangélica caminham para esse objetivo: e não é de modo algum certo que, ao longo do caminho, não possam tornar-se boas companheiras, ou talvez até amigas do coração.

 

Notas:

[1] Para um esclarecimento geral dessa categoria, cf. A Grillo, Il rinnovamento liturgico tra prima e seconda svolta antropologica. Il presupposto rituale nell’epoca del postmoderno, (Quaderni della Rivista di Scienze Religiose, 2), Rome-Monopoli, Edizioni Vivere In, 2004.

[2] Augustinus, De civitate Dei, X, 5-6.

[3] H. De Lubac, Pico della Mirandola. L’alba incompiuta del rinascimento,, Milão, Livro Jaca, 1994 (2), 419s.

[4] H. De Lubac, Paradossi e Nuovi Paradossi, Milan, Jaca Book, 1989, p.20.

 

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