29 Julho 2020
Oito novos bilionários surgiram na América Latina, desde o início da crise sanitária, enquanto 52 milhões ficarão pobres até o fim de 2020 no continente. Imposto extraordinário sobre a riqueza arrecadaria U$ 14,6 bi — debate precisa ser feito já.
O texto abaixo é a introdução do relatório “Quem paga a conta? — Taxar a riqueza para enfrentar a crise da Covid-19 na América Latina e Caribe", da Oxfam. Acesse aqui para baixar o documento completo.
O relatório é da Oxfam Brasil, publicado por Outras Palavras, 27-07-2020.
A região da América Latina e Caribe se converteu, desde 1º de junho, no novo epicentro da crise sanitária da covid-19, segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS). Os contágios diários e as taxas de expansão superam as dos Estados Unidos ou as da Europa, com um devastador efeito social. As medidas de isolamento e de distanciamento social, extremamente severas e/ou prolongadas em alguns países, não conseguiram conter a expansão do vírus.
A região mais desigual do planeta se converteu também no epicentro da crise econômica e todos os indicadores econômicos correspondentes fazem soar os alarmes. Os elevados níveis de desigualdade e pobreza, preexistentes à crise, somados à alta informalidade e a administrações públicas com recursos insuficientes são um efeito multiplicador que explica a vulnerabilidade da região e limita sua capacidade de conter a pandemia.
O paradoxo é que esta crise não afeta a todos igualmente. Desde o princípio dos isolamentos, oito novos bilionários surgiram na região, ou seja, um novo bilionário a cada duas semanas[1], enquanto se estima que até 52 milhões de pessoas se tornarão pobres e 40 milhões perderão seus empregos este ano[2]. A riqueza dessa elite de super milionários da região cresceu 17% desde meados de março: US$48,2 bilhões[3], que equivalem a 38% do total dos pacotes de estímulo que o conjunto de governos implementou[4] e a nove vezes a intervenção do Fundo Monetário Internacional (FMI) com empréstimos de urgência à região até o presente momento[5].
Em 12 de março, as bolsas mundiais sofreram em um único dia o maior abalo de sua história. O pânico e a reação em cascata após a declaração da pandemia e o início de isolamentos em muitos países levaram algumas bolsas de valores a perderem até 30% de seu valor de mercado. Em poucos dias o efeito do contágio chegou aos mercados latino-americanos, que perderam entre 10% e 15%. Sem dúvida o portfólio de ativos financeiros dessa elite foi afetado. No entanto, suas fortunas são um antídoto que lhes permite contar com uma capacidade de reação para rapidamente recolocar seus investimentos em ativos mais seguros ou rentáveis, assim como aproveitar as oportunidades do mercado. Duas realidades contrapostas. Em uma região na qual cerca da metade da população ganha para garantir o dia e a informalidade é a realidade do mercado de trabalho, a opção é se expor ao contágio ou morrer de fome. Para a grande maioria da população, o isolamento acabou por abocanhar magras poupanças ou mostrou a vulnerabilidade dos serviços públicos que não conseguem garantir cobertura nem direitos. Por outro lado, ser extremamente rico na região significa estar praticamente imune a esta crise econômica. Durante as últimas décadas, vem se desmantelando a cobrança de impostos sobre grandes fortunas, até o ponto em que, na atualidade, apenas três países contam com um imposto sobre patrimônio: Argentina, Colômbia e Uruguai. Com o desenho atual do imposto sobre patrimônio, no melhor dos casos, se arrecadaria um total máximo de US$ 281 milhões[6] dos bilionários da região.
Se fosse aplicado um imposto extraordinário sobre as grandes fortunas[7], com caráter progressivo, entre 2% e 3,5% em cada país, sobre os patrimônios acima de US$ 1 milhão, seria possível arrecadar até US$ 14,26 bilhões, cinquenta vezes mais[8]. Mas essa sempre será uma estimativa conservadora. A escassez de dados confiáveis sobre concentração e distribuição de riqueza faz com que os cálculos sejam aproximações. O que é efetivamente indiscutível é que a urgência por mecanismos públicos que contribuam com a reativação econômica e protejam o emprego, assim como as pessoas mais vulneráveis, requer romper com os tabus tributários e os dogmas econômicos do passado.
Segundo estimativas da Oxfam, a perda de receitas tributárias para 2020 poderia chegar a 2% do Produto Interno Bruto (PIB) da região: US$113,391 bilhões[9], o equivalente a cerca de 59% do investimento público em saúde de toda América Latina e Caribe. Para alguns países, como Peru ou Colômbia, isso pode indicar uma queda de quase 30% de sua arrecadação anual. A queda da receita tributária torna impensável imaginar que se possa abordar a recuperação da capacidade fiscal dos países pelas vias tradicionais. São necessárias medidas de urgência, extraordinárias e estruturais, ao passo que se corrija as deficiências do passado.
Em parte, esta queda também poderia ser compensada a través uma luta efetiva contra os paraísos fiscais, que continuam sendo um filtro pelo qual escapam imensos recursos além de gerar uma competição desleal. Com base em dados do FMI[10] e da Rede de Justiça Fiscal (Tax Justice Network – TJN)[11], a Oxfam estima que 1 de cada 5 dólares de investimento estrangeiro direto (IED) entra ou sai da região por meio de algum paraíso fiscal. Países Baixos, Luxemburgo, Suíça ou Panamá são alguns dos territórios preferidos. De fato, alguns dos países mais reconhecidos pela agressividade de suas práticas fiscais têm ganhado terreno, operando como ponte para a entrada de investimentos na região. No caso do Brasil, por exemplo, 20% do investimento chega ao país através dos Países Baixos, o dobro do que chega diretamente dos Estados Unidos[12], com um crescimento de 257% ao longo dos últimos 10 anos[13]. Talvez, o mais surpreendente é como o uso do Panamá como ponte para a entrada de investimentos na Guatemala cresceu 738%, ou a Suíça crescendo 697% para a Colômbia, ao passo que o investimento da Espanha caiu 8% neste mesmo período, ao longo de uma década[14].
(Fonte: FMI e TJN - IFF Tracker)
Esta crise colocou em foco a ação dos Estados, que têm a responsabilidade primordial de garantir a proteção de toda a população e de assegurar que tipo de recuperação econômica se colocará em marcha uma vez passada a emergência sanitária. Os governos devem optar por uma resposta que priorize as necessidades do conjunto da sociedade diante dos interesses dos grandes grupos econômicos. Recorrer a um maior endividamento público pode dar um alívio temporário, que trará, no entanto, consequências, e limitará o desenvolvimento das gerações futuras. Durante décadas, a região se esquivou das reformas tributárias mais urgentes, com certa alergia a taxar a riqueza e o capital. Assim, perdeu capacidade e progressividade, o que deixou imensos buracos pelos quais escapam enormes recursos que se tornam ainda mais importantes. Agora, porém, essas reformas são impostergáveis.
A pandemia e suas incontáveis consequências afetam a todas e todos. Enfrentá-la e reconstruir o futuro irá demandar um esforço coletivo. Mas é evidente que a crise não nos afeta igualmente. Há quem perdeu muito e, ainda assim, continua colaborando a esse esforço comum por meio dos cuidados, trabalho e impostos. Não se pode demandar mais de quem tem menos; esta crise não pode ser paga por quem sempre acaba pagando a conta. É chegado o momento daqueles que concentram a riqueza, daqueles que se beneficiaram significativamente durante as últimas décadas e das grandes empresas que estão alcançando expressivos lucros em meio à crise, contribuírem muito mais ao esforço do conjunto da população.
Enquanto milhares de micros, pequenas e médias empresas estão fechando as portas, os ganhos de grandes corporações como Microsoft, Visa ou a farmacêutica Pfizer cresceram entre 30% e 50% desde o início do ano. Um recorde, compartilhado por um punhado de grandes empresas que estão vendo como seus resultados dispararam como consequência da pandemia, resultados tão extraordinários como inesperados, atribuível ao efeito dos isolamentos[15].
(Fonte: Oxfam)
Com mais de 1,7 milhão de infectados e de 69 mil mortos até a data de 9 de julho, o Brasil é o epicentro da covid-19 na região[16]. Desde o final de fevereiro até hoje, o país chegou à vice-liderança mundial por pessoas contaminadas e mortes. Esses números ainda parecem estar amplamente subestimados, já que a subnotificação de casos é reconhecida até mesmo pelas autoridades públicas. O Brasil testa sete vezes menos (por milhão de habitantes) que os Estados Unidos, país que encabeça o ranking de infectados, e 3,5 vezes menos que o Peru, segundo país latino-americano em casos.
A trajetória do vírus é uma fotografia das profundas desigualdades do país. Antes da Covid-19, o Brasil tinha 40 milhões de trabalhadores informais e 11,9 milhões de desempregados, muitos sem proteção social. As expectativas apontam que o desemprego pós-pandemia pode aumentar para taxas de 15%, com 16 milhões de desempregados[17]. Ao redor de 5 milhões de moradias estão localizadas em favelas, em grande parte sem acesso a água tratada e saneamento básico e com alta densidade de pessoas por residência. E isso quando a higienização e o distanciamento social são essenciais para evitar a propagação do vírus. A essas cifras se soma o racismo estrutural do país onde 75% dos mais pobres são pessoas negras (pretos e pardos, por definição do IBGE)[18]. Não surpreende que os números mostrem que as pessoas negras e pobres correspondam ao perfil de vítima mais comum da Covid-19 no Brasil, representando 6 de cada 10 mortes.
Desde uma perspectiva de negócios, o país tem 6,4 milhões de estabelecimentos comerciais, 99% dos quais são Micro e Pequenas Empresas (MPE), que representam 52% dos empregos formais no setor privado[19]. O impacto da Covid-19 atingiu em cheio esse setor, que é fundamental para a economia, e já assistiu ao fechamento de mais de 600 mil empresas enquanto enfrenta enormes dificuldades para ter acesso aos recursos anunciados pelo governo federal sob a forma de empréstimos.
Com a miséria que os meios de comunicação apresentam diariamente e a pressão social, o governo anunciou um sistema de auxílio de emergência. A Renda Básica Emergencial, com o valor de R$ 600 mensais, foi aprovada pelo Congresso Nacional, a partir de um trabalho conjunto com a sociedade civil, e implementada pelo governo federal. Inicialmente programada para três meses, se estenderá por mais dois, e já atende a mais de 45 milhões de pessoas (sendo que a demanda de atendimento da população pode passar do dobro). Além disso, com o cenário de desemprego e a queda da economia (as estimativas são de um PIB negativo variando entre 6 e 10% para 2020), o complemento da renda básica seguirá sendo extremamente necessário por um período muito mais longo.
A recuperação dos impactos da Covid-19 implica uma reconstrução social e econômica do país. E para que isso ocorra é necessária uma reforma tributária que seja justa e solidária, que enfrente as distorções e privilégios existentes no sistema tributário nacional e que tenha como uma de suas prioridades a redução das desigualdades. Este tema está na agenda política do Congresso Nacional, no entanto, a orientação que se está delineando parece ter como fim simplificar o desenho tributário e a desoneração dos investimentos. Uma reforma com essas características ficaria muito distante daquilo que o país necessita para garantir as políticas econômicas e sociais necessárias para um desenvolvimento social e econômico que seja justo e sustentável. Essa será a primeira prova de aprendizagem das instituições e da sociedade brasileira baseada no sofrimento causado pela pandemia. A economia deve estar a serviço do desenvolvimento da sociedade em seu conjunto. A humanidade deve ser resgatada dos seres humanos!
[1] Segundo cálculos da Oxfam com base em dados da Forbes de março e junho de 2020. Ver Nota Metodológica da Oxfam que acompanha este informe.
[2] CEPAL. (12 de maio de 2020). El desafío social en tiempos del COVID-19. Informe Especial COVID-19, (3). Disponível aqui.
[3] Segundo cálculos da Oxfam com base em dados da Forbes de março e junho de 2020. Ver Nota Metodológica da Oxfam que acompanha este informe.
[4] Pineda, E., Pessino, C. y Rasteletti, A. (21 de abril de 2020). Política y gestión fiscal durante la pandemia y la post-pandemia en América Latina y el Caribe. Disponível no blog Recaudando Bienestar – BID. Disponível aqui.
[5] FMI. Emergency Financing and Debt Relief Tracker. (Última consulta: 14 de junho de 2020). A intervenção de urgência do FMI na região até o momento, chega a USD 5,180 bilhões (sem contar as linhas de crédito flexíveis para Peru e Chile). Disponível aqui.
[6] Estimativas da Oxfam sobre a base de dados da Forbes. Ver Nota Metodológica. Fontes aqui.
[7] Proposta da Oxfam para a aplicação a nível regional de um imposto sobre as grandes fortunas com carácter progressivo. Se aplicaria sobre o patrimônio líquido das pessoas físicas, acima de US$ 1 milhão, isentando a primeira habitação até US$ 300 mil e um tipo progressivo entre 2 % e 3,5 %. Ver Nota Metodológica.
[8] Estimativas próprias sobre a base das estimativas realizadas sobre os cálculos de distribuição de riqueza e Forbes. Ver Nota Me-todológica. Fontes aqui.
[9] Estimativas Oxfam. Ver Nota Metodológica. Fontes várias: FMI, abril 2020. Challenges in Forecasting Tax Revenue. Banco Mundial, junho 2020. The Global Economic Outlook during the COVID-19 Pandemic: A Changed World
[10] FMI. CDIS data – Coordinated Direct Investment Survey. Disponível aqui.
[11] Tax Justice Network. Illicit Financial Flows Tracker. Disponível aqui.
[12] CEPAL. (2019). La Inversión Extranjera Directa en América Latina y el Caribe 2019. Disponível aqui.
[13] FMI. Dados CDIS – Coordinated Direct Investment Survey. Disponível aqui.
[14] CEPAL. (2019). La Inversión Extranjera Directa en América Latina y el Caribe 2019. Disponível aqui.
[15] Neste informe, definimos “resultados extraordinários” como a diferença entre os resultados gerados em 2020 (resultados publicados no fim do primeiro trimestre e anualizados) diante da média dos resultados obtidos nos 4 exercícios anteriores, de 2016 a 2019. Para mais informação, ver o relatório de Oxfam America. Disponível aqui. (O material está sendo traduzido para o português e estará disponível no site da Oxfam Brasil em breve.)
[16] Esses dados foram elaborados pelo consórcio de veículos de comunicação no Brasil criado em 8 de junho de 2020, quando o governo federal mudou a forma de divulgar as informações sobre a Covid-19 no país. Disponível aqui. Dados referentes ao dia 9 de julho, disponível aqui.
[17] Tomazelli, I. (15 de junho de 2020). Desemprego no Brasil pode passar de 14% no fim de 2020, aponta levantamento. Disponível em UOL Economia aqui.
[18] Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística Socioeconômicas (2019). “Desigualdades sociais por cor ou raça no Brasil”, in Estudos e Pesquisas – Informação Demográfica e Sócioeconômica – Número 41, IBGE – disponível aqui.
[19] Dados do SEBRAE (Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas). Disponível aqui.
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Após pandemia, a inadiável taxação de fortunas - Instituto Humanitas Unisinos - IHU