26 Junho 2020
“É hora de acabar com este sistema agroalimentar absurdo e prejudicial, que beneficia apenas as empresas. É o principal fator da mudança climática, e apesar de utilizar de 70 a 80% da terra, água e combustíveis para uso agrícola, alimentam apenas 30% da população mundial”, escreve Silvia Ribeiro, pesquisadora do Grupo ETC, em artigo publicado por La Jornada, 25-06-2020. A tradução é do Cepat.
Eis o artigo.
Essa pandemia causou a queda de muitos véus que ocultavam mecanismos perversos do sistema capitalista globalizado. Um dos véus que foi feito em pedaços, deixando descoberta uma fétida realidade, é o papel do sistema agroindustrial de alimentos, o principal fator na produção de epidemias nas últimas décadas.
A criação industrial de animais em confinamento (aves, porcos, gado) é uma verdadeira fábrica de epidemias animais e humanas. Grandes concentrações de animais, confinados, geneticamente uniformes, com sistemas imunológicos debilitados, aos quais são continuamente administrados antibióticos. Razão pela qual, segundo a OMS, é a principal causa da geração de resistência a antibióticos em escala global. Um terreno fértil perfeito para produzir mais mutações letais de vírus e bactérias multirresistentes a antibióticos, que com os tratados de livre comércio se distribuem por todo o globo.
O biólogo Rob Wallace, autor do livro Big farms make big flu, documenta esse processo analisando surtos de novos vírus de origem animal, gripe aviária e suína, Ebola, Zika, HIV e outros. Grande parte se originou em criadouros, outros em animais selvagens, como o novo coronavírus que vem dos morcegos.
Estudos recentes indicam que não atingiu diretamente os seres humanos, mas houve intermediários. O sequenciamento genômico aponta para os pangolins, pequenos mamíferos asiáticos. Poderia ter sido outros, por exemplo, os megacriadouros de porcos que existem em Hubei, cuja província Wuhan é a capital. GRAIN compilou dados a esse respeito.
Ao mesmo em tempo que se detecta a Covid-19, os grandes criadouros de porcos da China são devastados por outro vírus que afeta e mata milhões de porcos: a peste suína africana, que felizmente ainda não sofreu mutação para um vírus infeccioso humano, mas cresce pela China e a Europa.
A relação entre pecuária industrial e epidemias-pandemias vai além dos grandes criadouros. Como explico em outro artigo (Desinformemo-nos), existem causas concomitantes: a criação em massa de animais se junta à destruição de habitats naturais e da biodiversidade, que teriam funcionado como barreiras de contenção para a propagação de vírus em populações de animais selvagens.
Os principais culpados por essa destruição de ecossistemas são o sistema alimentar do agronegócio em seu conjunto, o crescimento urbano descontrolado e o avanço de megaprojetos para o serviço do primeiro, como mineração, estradas e corredores comerciais, como, por exemplo, o Corredor Transístmico.
O sistema agroindustrial de alimentos desempenha o papel principal. Segundo a FAO, a principal causa de desmatamento no mundo é a expansão da fronteira agrícola industrial. Na América Latina, causa 70% do desmatamento, e no Brasil até 80%.
De todas as terras agrícolas do planeta, 78% (!) São usadas para a indústria pecuária em larga escala: seja para pastagem ou forragem. Mais de 60% dos cereais plantados globalmente destinam-se à alimentação de animais em confinamento (Grupo ETC).
Em cada etapa da cadeia alimentar agroindustrial, 4-5 grandes transnacionais dominam mais de 50% do mercado global. (Ver: Tecno-fusiones comestibles, mapa del poder corporativo en la cadena alimentaria, Grupo ETC, 2020).
Por exemplo, apenas três empresas (Tyson, EW Group e Hendrix) controlam todas a venda de genética avícola no planeta. Outras três, a metade de toda a genética suína. E algumas poucas a genética bovina. Isso causa uma enorme uniformidade genética nos criadouros, o que facilita a transmissão e mutação de vírus.
O mesmo acontece com as empresas do comércio mundial de commodities agrícolas (grãos e oleaginosas), controladas quase inteiramente por seis empresas: Cargill, Cofco, ADM, Bunge, Wilmar International e Louis Dreyfus Co, que comercializam as forragens que vão para a criação industrial de animais, principalmente soja e milho transgênico.
As maiores processadoras de carne avícola, suína e bovina são, atualmente, JBS, Tyson Foods, Cargill, WH Group-Smithfield e NH Foods. WH Group, da China, é a maior empresa de carne suína do mundo e domina a América do Norte, dona da Carroll Farms, de onde se originou a gripe suína.
É significativo o caso da Cargill, que sendo a maior empresa global no comércio de commodities agrícolas, passou de fornecera de forragens a também criadora, sendo a terceira companhia mundial de carnes (aves, porcos, bois).
Apesar dos desastres causados pela pandemia da Covid-19, essas empresas continuam suas atividades, gestando a próxima pandemia, que pode inclusive ocorrer enquanto a atual segue ativa.
É hora de acabar com este sistema agroalimentar absurdo e prejudicial, que beneficia apenas as empresas. É o principal fator da mudança climática, e apesar de utilizar de 70 a 80% da terra, água e combustíveis para uso agrícola, alimentam apenas 30% da população mundial (Grupo ETC).
Leia mais
- Preocupados com crise de imagem do Brasil, agronegócio pede combate a queimadas e desmatamento ilegal
- A morte de indigenistas na região da Amazônia e o efeito Bolsonaro
- O Governo não deve premiar os ladrões de terra na Amazônia
- O fogo na Amazônia e os discursos de internacionalização
- Pecuária industrial e soja transgênica queimam a Amazônia. Artigo de Silvia Ribeiro
- Amazônia: é possível crescer acima da média com desmatamento zero
- A Amazônia está à venda: quem der menos leva
- É urgente combater o plano de holocausto ecológico do bolsonarismo
- Brasileiros pagarão 118 bilhões para legalizar grileiros na Amazônia
- Bolsonaro não precisa das ONGs para queimar a imagem do Brasil no mundo inteiro. Nota da Abong
- ‘Teremos que refazer a imagem do Brasil no exterior’, diz ex-ministro da Agricultura
- Brasil lidera ranking de mortes de defensores da terra e do meio ambiente
- Brasil é o país com mais ambientalistas mortos na América Latina
- América Latina, a região mais perigosa para ativistas de direitos humanos
- Contaminação de indígenas em Dourados partiu de frigorífico da JBS
- Casos de covid-19 em frigorífico da JBS ameaçam Reserva Indígena de Dourados, MS. Entrevista especial com Cássio Knapp
- Bilionária, JBS recusa pagar transporte e demite indígenas Kaingang
- Covid-19 chega aos Avá-Guarani da TI Oco’y tendo frigorífico como vetor; barreira sanitária é atacada
- RS tem 80 indígenas com coronavírus, a maioria foi contaminada em frigoríficos da JBS
- “É evidente a relação entre o avanço do vírus nas aldeias guarani e as grandes empresas”
- Como frigoríficos propagaram o coronavírus em pequenas cidades do país
- Frigoríficos, desmatamento e Amazônia: o próximo coronavírus pode nascer no Brasil
- Como frigoríficos destroçam os trabalhadores
- Os frigoríficos e os trabalhadores. Covid-19 manifesta lógicas coloniais e paternalistas na atualidade. Entrevista especial com Leandro Inácio Walter
- O ‘boi pirata’ criado em terra indígena e a conexão com os frigoríficos Marfrig, Frigol e Mercúrio
- Greenpeace liga frigoríficos a criação ilegal de gado em área protegida
- Um setor infectado: propostas para as doenças do sistema agroalimentar. Artigo de Ricardo Abramovay
- A morte do futuro: covid-19 entre os povos originários
- Mortalidade de indígenas por covid-19 na Amazônia é maior do que médias nacional e regional, revela estudo
- Transmissão do coronavírus se agrava nas aldeias indígenas e demanda ações urgentes de contenção, constata o Cimi
- Mais de 315 mil infectados pelo Covid-19 na Pan-Amazônia: a caminho do etnocídio por omissão?
- Mortes por covid-19 entre indígenas precisam virar assunto para a Comissão Interamericana de Direitos Humanos
- O impacto do novo coronavírus na população indígena da América Latina
FECHAR
Comunicar erro.
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Gestando a próxima pandemia. Artigo de Silvia Ribeiro - Instituto Humanitas Unisinos - IHU