19 Junho 2020
"Na incessante peregrinação rumo ao seu Sol, o povo santo, em uma jornada fiel, apenas assim conforma a imagem autêntica da face de Deus", escreve Giuseppe Bonfrate, em artigo publicado por L'Osservatore Romano, 17-06-2020. A tradução é de Luisa Rabolini.
A poesia é uma parte constitutiva de ser pastor e teólogo. E a Lua nunca deixa de inspirar o poeta, tornando-se noiva, irmã, amante, amiga, cúmplice, como indica Virgílio, que sugeriu o título de um misterioso livro de Yeats, onde se pergunta sobre o caldeirão sobrenatural de vozes que falam e ao mesmo tempo calam dentro e fora de nós. No ponto da Eneida, onde se encastoa o famoso verso, tacitae per amica silentia Lunae (ii, 254), ainda desorientado, Eneias, na corte de Dido, descreve a cena noturna, a Lua na sombra, de quando os guerreiros gregos, escondidos no cavalo do engano, com o favor da escuridão e a ajuda do mentiroso Sinon, incendeiam Troia, “a cidade sepultada no sono e no vinho" da ilusão de ter vencido o inimigo.
Portanto, a Lua pode ser cúmplice em seus silêncios quando perde a luz que reflete. Mas os silêncios devem ser questionados, como sabe quem está familiarizado com a revelação divina. Desse ato se sai poetas, tendo aprendido a conhecer a sutil voz de Deus que fala nos silêncios (1Reis 19,12). E na noite, o silêncio é o vasto campo no qual a sabedoria e a poesia se encontram, refinando aquele sentido de Deus que traça figuras nas sombras e ruas entre as estrelas para dar um curso à história.
Os Padres da Igreja, em contato com as Escrituras, haviam aprendido a ver o invisível, a ler o não-escrito, a ouvir o não-dito, instruindo a teologia cristã, por meio da interpretação espiritual, a contemplar antes de entender, enfim, a se tornar poetas. Orígenes ressalta que a clareza e a utilidade de suas visões sempre dependerão da medida da luz recebida e nunca possuída: “Nem todos os que veem são iluminados da mesma maneira por Cristo; na verdade, cada um o é de acordo com a medida com a qual é capaz de receber força da Luz " (Homilias sobre a Gênesis, i, 7).
Sabe-se que, para os Pais, a teologia é um serviço pastoral, no qual a gramática, o ascetismo e o Evangelho como formas de vida dão sentido à altura daquela cátedra que antes de se tornar universitária, na virada do primeiro milênio, ensinava o primado do serviço, o essencial da caridade. Eles também adquiriram outra lição, que nos tornamos mestres, transformando-nos de cisternas - a autorreferencialidade desumanizante (Evangelii gaudium 8, 94-95), que carnaliza o sentido e mundaniza a missão - em fontes inesgotáveis, quando se bebe com fé o Evangelho, que por sua própria natureza transborda, arrastando aqueles que o anunciam (cf. Orígenes, Homilias sobre a Gênesis, VII, 5).
Como os serviçais das bodas de Canaã, os pastores e teólogos realizam uma tarefa que organiza o sinal, enchem os jarros e servem o conteúdo, mas é Jesus quem transforma a água em vinho. Rico caldeirão de culturas, teatro de eventos, fonte de inquietações, o tema do mysterium Lunae se revela: a lua brilha no céu, mas sua luz é um reflexo que fixa a união entre o mistério de Cristo e a Igreja (Efésios 5, 32). "Brilha não da sua própria luz, mas daquela de Cristo e tira seu esplendor do Sol da justiça, para que possa dizer: ‘já não sou mais eu quem vive, mas Cristo vive em mim’(Gálatas 2:20)" (Ambrósio, Os seis dias da criação, iv, Sermão vi, 8, 32).
À medida que a Igreja-Lua recebe sua luz, ela também pode doá-la minguando para dar espaço a um novum que germina, ou perde-lo devido a eventos humanos que pesam sobre toda criatura exposta ao perigo da mundanização: "Soltando-se do Sol da Justiça", termina-se por "direcionar todas as disposições espirituais par as coisas terrenas que turvam cada vez mais as faculdades internas e externas. Mas assim que começamos a retornar à imutável sabedoria ... renovamo-nos dia a dia "(Agostinho, Carta 55, 5, 8).
A riqueza espiritual dessa alegoria tem como pano de fundo a cultura helenística absorvida naquela cristã, que colocou sobre a Igreja a reverberação da qualidade do Filho de Deus, transfigurando a relação entre Hélio e Selene, o Sol e a Lua. A história desse vínculo, originalmente figura entre aquele divino e humano, nos mitos e na religiosidade popular dos gregos, entre drama e glória, mistura-se de sedução, eros, fecundidade, vida e morte, aliás, de vida que se gera através da morte.
O novilúnio, que é a fase lunar em que seu hemisfério visível está coberto de sombras, velando o encontro entre os dois amantes, quase morrendo gera o novo tempo que expressará em sua luz crescente, até o esplendor da lua cheia.
Os Padres da Igreja disso, como demonstrou Hugo Rahner retomado por Henri de Lubac, extraem três disposições que constituem uma polissemântica dramática e gloriosa, histórica e escatológica: a Lua geradora, moribunda, radiante para sempre perto de seu Sol, sem ocaso, quando se realizará o que Agostinho indica como transitus paschalis, que abre o saeculum ao Eterno, à passagem ao Pai, da morte à vida (Carta 55, 1, 2). É um parto, e nos "gemidos" reconhecemos a maternidade da Igreja, que "quando brilha", no sinal do globo lunar que aumenta como ventre fecundo, se torna "dispensadora de orvalho", vísceras de misericórdia (Isaías 49,15; Lucas 15,20) para uma terra sedenta, transformando os desertos em campos férteis, de modo que "tudo o que esvaziou recupera a plenitude", visto que gera vida (Ambrósio, Os seis dias de criação, iv, Sermão vi, 8, 31 e 29).
Somos postos "no céu do nosso coração" (Orígenes, Homilias sobre a Gênesis 1, 7), com tempos e maneiras que sinalizam a importância do corpo e da relação para a teologia cristã, e a necessidade de entender a Igreja (um corpo que se deixa fecundar para se tornar mãe de uma humanidade que aguarda ser salva) na relação integral com Cristo. O aspecto realista da corporeidade, como evidência e precedência da realidade em relação a qualquer abstração ou idealização (cf. Evangelii gaudium 231-233), teria vigiado sobre a possibilidade da segunda: "A luz de Cristo que brilha na face da Igreja ... sinal e instrumento da íntima união com Deus e na unidade de toda a humanidade "(Lumen gentium 1).
Não é à toa que, na experiência cristã dos primeiros séculos, se estabelece uma união eucarística entre Cristo e a Igreja, seu corpo como comunidade fiel, "templo do Espírito Santo" (1 Coríntios 6,19), seu povo celebrante na vida, fecundidade que torna verdade na história a Palavra que se faz carne. Em tempos de menor fidelidade, no entanto, sua “descarnificação” se acentua, desequilibrando-se sobre ordem hierárquica, formas de autoridade, até a prevalência do adjetivo místico e o abuso da palavra mistério, que sempre traduz a humanidade de Cristo , sua presença salvífica na história, conotando a sacramentalidade que permeia a Igreja: "O mistério da Igreja ... deve ser um fato vivido" (Ecclesiam suam 38), como "em terra estrangeira ... mundo no mundo" (Orígenes, Comentário a João, vi, 59, contrastando a lisonja gnostificante).
Toda reforma autêntica - a Lua se renova voltando-se para o seu sol-Cristo - deve sempre passar pela evidência de que a cristologia é constitutiva do seguimento. Na incessante peregrinação rumo ao seu Sol, o povo santo, em uma jornada fiel, apenas assim conforma a imagem autêntica da face de Deus. Orígenes, ao comentar o Livro dos Números, detendo-se nas indicações relativas aos tempos dos sacrifícios, não deixa de explicar a neomênia, a Lua nova, "o primeiro dia do mês" (28, 11), de acordo com o calendário lunar.
Seu raciocínio oferece uma perspectiva vertiginosa, na qual a aspiração à "visibilidade" da Igreja na história seria contrária à sua autenticidade fiel. Somos empurrados para frente e para trás, testemunhas de uma vida de dois mil anos, para revisitar aqueles momentos em que a pretensão ou a nostalgia de uma igreja mundialmente relevante, até ser hegemônica na sociedade, devem ser submetidas a verificação honesta e radical.
O Alexandrino começa especificando que a Lua "é considerada nova quando se aproxima muito do Sol e em estreita conjunção com ele, de modo a esconder-se sob seu esplendor ... O Sol da justiça é Cristo: se a Lua, isto é, a sua Igreja, que se enche de sua luz, uniu-se e aderiu-lhe completamente ... é precisamente nesse momento que não pode ser vista nem percebida pelos olhares humanos”.
E continua implicando no discurso a perspectiva da alma de que "quando está totalmente unida ao Senhor e desapareceu completamente no esplendor de sua luz, sem pensar nada terreno, sem procurar nada mundano, sem desejar o prazer aos homens, mas se abandonou toda à luz da sabedoria, ao calor do Espírito Santo, tornada sutil e espiritual, como poderia ser vista pelos homens e capturada pelos olhares humanos? " (Homilias sobre os números XXIII, 5).
A pergunta que questiona toda época cristã, chega até nós e nos entrega o saudável paradoxo de que, para a Igreja, o escurecimento transfigura em transparência crística, seu desaparecimento a eleva, seu martírio a coroa: “Muitas vezes, cresceu graças às suas perdas e, como resultado delas, mereceu tornar-se maior" (Isidoro de Sevilha, A natureza das coisas, XVIII, 6). Morrendo para as coisas temporais, evitando as tentações mundanas, não se esconde para se retirar da missão, mas para expressá-la em seu grau máximo: a Igreja se aniquilando, sombra salvífica, na luz de Cristo renasce, se reforma, regenerando-se nas origens evangélicas ,"como a Lua sempre se renova retornando à sua forma primitiva" (Ambrósio, Os Seis Dias da Criação, iv, Sermão vi, 8, 31).
O enfraquecimento da relação Sol-Lua, portanto, Cristo-Igreja, recai sobre a qualidade evangélica e a extensão da missão que é participação fecunda na ação do Filho de Deus (Ambrósio, Os seis dias da criação, iv, Sermão vi, 7, 29), na alegoria tem o raio da cosmicidade, o tom de um apelo universal: todos ”os homens são chamados a esta união com Cristo, luz do mundo, do qual vimos, por quem vivemos, e para o qual caminhamos" (Lumen gentium 3). Aqui se revela, como ensina Ambrósio, o padecimento necessário da Lua, que "míngua para dar espaço às coisas em sua plenitude": assim se concede como geradora hospitaleira de um magis de espera, aquela de todas as pessoas.
A imagem é coerente com o que as práticas agrícolas atribuem à influência das fases lunares, quando aquela minguante favoreceria a fecundidade da Terra, a germinação das sementes e o crescimento das raízes. A Lua está disposta a morrer para dar vida, reflexo da kenosis da Palavra: “Ela míngua para encher de vida os elementos. Estamos, portanto, diante do grande mistério. Isso foi concedido por quem deu a todos a graça. Ele esvaziou a lua para depois enche-la novamente. Aquele que também se aniquilou para encher todas as coisas. Ele se aniquilou para descer até nós, desceu entre nós para ser para todos a ascensão”. E é assim que "a Lua anuncia o mistério de Cristo", que apenas "em seu minguar aumenta" (Os seis dias da criação, iv, Sermão iv, 8, 32). Na kenosis do Filho de Deus reverbera o mistério da Igreja. O esvaziamento, o minguar, a descida indicam a primazia e a precedência do dom de si que inverte os abismos e transforma os subsolos, as biografias sem esperança, na possibilidade de ascensão, a morte em vida.
Transpassando constantemente a história, o mistério de Cristo dá forma a uma comunidade-povo que, dócil para ser conduzido sempre além, além de si mesmo, reverbera seu sentido em estilos, práticas, culturas, que traduzem sua essência em uma Igreja incessantemente em saída (Evangelii gaudium , 20-24), cujas palavras são sempre intermediárias, em aguardo, e os gestos invertem e assumem a vida dos outros. Uma eclesiologia consequente é a que se entende como sinodalidade krigmática, reveladora da esperança que da morte germina a vida. Tanto a morte quanto a vida direcionam o pensamento para uma radicalidade impossível de se sustentar em rendição ao medo, na claustrofobia de uma conservação que torna o Espírito inerte, na escolha de permanecer imóvel, como para guardar uma ausência.
Na manhã de Páscoa, a corrida dos apóstolos (João 20, 4), o desejo de Maria de anunciar: "Eu vi o Senhor" (João 20, 18), Pedro que mergulha do barco para alcançar Jesus (João 21, 8), expressam a necessidade de uma abertura a um dinamismo que afasta qualquer representação identitária, que coincida com o definido, circunscrito, autorreferencial, defendido, fechado, para salvaguardar uma suposta pureza paralisante: “Depois de lhes ter falado, o Senhor Jesus foi elevado ao céu e assentou-se à direita de Deus. Então, os discípulos saíram e pregaram por toda parte; e o Senhor cooperava com eles"(Marcos 16, 19-20).
O declínio de sua ausência em presença constante, a disponibilidade de ouvir o Espírito, de se medir com suas vozes de silêncio, influenciou a comunidade cristã e o desenvolvimento da eclesiologia. Mas, desde o início, sempre há alguém propenso a deduzir que a Igreja, perdendo o seu Sol, ocupe o lugar, nascendo de um vazio deixado, desolada figura sem forma: a pedra seca, nenhum som de água (Eliot, Terras Devastadas, Enterro dos mortos). Quando esse pensamento prevaleceu, sérias consequências despencaram sobre a relação com a história.
A esse respeito, Agostinho, querendo conciliar o caminhar sobre a Terra procurando as coisas do céu, encontra vestígios de sua pergunta no Cântico. A Noiva ouve uma batida na porta, é o Noivo, ansioso com o momento da espera, mas algo a impede: "Já lavei os pés: terei que sujá-los de novo?" (5, 3) Nela, o bispo de Hipona vê aquelas pessoas que preferem permanecer protegidas em sua pureza, indiferente à necessidade inscrita na missão de sair e abrir a porta onde Cristo bate para "sacudir sua calma ... abra-me ... abra-me e pregue-me. .. como poderei entrar aqueles que me fecharam a porta se não houver alguém que me abra? (Homilias sobre João 57, 4).
O olhar para a Lua, a observação de seu crescer e minguar, delineia uma linha cuja espessura afeta o "cânone" ocidental, misturado de proximidade e diferença, contaminação, choques, recomposições, luta entre as imagens de Deus e de sua Igreja, em a quem Ulisses, Édipo, Antígona, Rute, Ester, Jó, Eclesiastes, o Servo sofredor, Maria, o Filho que se encarna, padece, morre e ressuscita, e a expectativa da parúsia, cedem a um processo ainda aberto, onde a única "perfeição" concedida é a de permanecer no caminho, que sempre leva para a frente, sem deixar esmorecer a advertência que vem da esposa de Ló (Gênesis 19, 26), firmada no verso de Szymborska: “Olhei para trás porque senti falta de minha taça de prata”. Quem não vai para frente, para; volta para trás quem se vira novamente para as coisas das quais havia se afastado”, Agostinho prega diante dos pelagianos, que circunscreviam o perfectum, que está apenas na misericórdia de Deus, ao prometeico aqui e agora (Evangelii gaudium 94), cravando a criatura à solidão dos delírios, substituindo a humildade do desejo, pela presunção que discrimina: "Façam progressos, meus irmãos, sempre se examinem, sem engano, sem adulação, sem se acariciar".
A tensão do "viajante" nunca termina em uma meta cuja natureza temporária é a inquietação. Somos "perfeito e não perfeito ao mesmo tempo; perfeitos como aqueles que estão em caminho, ainda não perfeitos se pensamos que chegamos à possessão", não prendendo a fé em convicções, mesmo discordantes, sempre sujeitas à revisão do Espírito "não vamos parar por aí, mas continuemos avançando ... onde você estiver satisfeito consigo, ali você parou" (Sermão 169, 18).
O mysterium Lunae perfila paradoxalmente a inquietação da plenitude e exacerba a exigência de uma renovação contínua da Igreja que, para ser mãe, deve estar disposta a morrer, para ser mestra, deve se tornar discípula da Sabedoria que a gerou, a iluminar o eterno esplendor terá que se pôr em seu Sol e, no tempo, que também é nosso, ainda terá que lutar "para remover o mal de si mesma" (Agostinho, Exposição sobre os Salmos, 71, 10).
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