22 Janeiro 2015
"De fato, o ponto quente da questão não é o número dos filhos, que o Papa estabelece canonicamente em três (provavelmente lembrado do adágio medieval ‘omne trinum est perfectum’ [todo trio é perfeito]), mas, como evitar outras procriações após o número três, ou que qualquer outro número que um casal queira ou possa permitir-se, tenha sido conseguido", escreve Vitor Mancuso, teólogo, em artigo publicado pelo jornal La Repubblica, 20-01-2015. A tradução é de Benno Dischinger.
Eis o artigo.
Após o punho, agora chega “o pé aonde jamais chega o sol”: decididamente galhardo o Papa! A entrevista concedida na viagem de retorno das Filipinas toca temas interessantes. Mas, acima de tudo mostra um Papa de linguagem talvez ainda mais colorida do que de costume: sinal, a meu ver, de particular descontração.
O Papa Francisco aparece precisamente satisfeito pelo grande afeto e a enorme simpatia que o mundo inteiro lhe manifesta e se deixa ir ao sabor da imprensa mundial como se estivesse entre amigos. O que parece realmente a melhor maneira de interpretar o papel em si tão pesado que o ser Papa comporta uma espontaneidade que o havia levado no dia anterior, durante a missa mais acompanhada da história, a enfrentar a homilia diante de sete milhões de participantes. Quanta diferença com respeito ao rigoroso plurale majestatis que reinava até Paulo VI ou também com respeito aos longos discursos lidos em folhas acuradamente preparadas antes (e frequentemente por outros) de João Paulo II e de Bento XVI, os quais também nas conferências de imprensa nunca jamais teriam podido usar as popularescas expressões de Francisco.
Mas, o ponto é exatamente este: o povo. Ou então, a proximidade total que este pastor extraordinário pretende mostrar-lhe daqui para frente. Se Francisco com sua linguagem está introduzindo realmente algo inédito na história pontifícia, e direi até de escandaloso para o grave e sisudo protocolo pontifício e para os ouvidos dos católicos tradicionalistas, não é certamente à toa: a escolha desta linguagem é direta expressão do conteúdo que Francisco pretende dar e está dando ao seu pontificado. Como, de resto, pode falar um Papa que não quer carros de luxo e sim utilitários, que não está no apartamento papal, mas na hospedaria de Santa Marta, que não endossa cruzes e anéis de ouro, mas simplesmente de ferro, que, em suma, renuncia com sistematicidade a todos os sinais de poder? Exatamente como fala este Papa, que faz da vizinhança ao povo a estrela polar do seu ser Pontífice, e, portanto se alegra de poder referir que naquele dia em Buenos Aires àquele tipo que tentava corrompê-lo lhe teria dado mais que voluntariamente “um pontapé aonde jamais bate o sol”.
Podem agradar, ou deixar perplexos, ou desagradar de todo, estes exemplos tão físicos e também um pouco violentos que falam de punhos e pontapés. Pessoalmente, num mundo já tão permeado de violência, não posso dizer de que gosto deles particularmente nem de que os retenho precisamente como de todo oportunos, porque num amanhã a uma explosão de violência incontrolada se poderá sempre encontrar um arrimo nas palavras papais: “Se até o Papa pode dar um soco ou um pontapé, imaginemo-nos eu”. Nem é, por certo, por acaso que ao imã radical Anjem Choudary, o mesmo que assegura que um dia talvez se passe, mas viverá sob a lei islâmica, o exemplo do punho tenha agradado particularmente. Isto, no entanto, se refere aos exemplos particulares escolhidos pelo Pontífice e pela sensibilidade de cada um, o ponto decisivo consiste, ao invés, em compreender a eficacíssima denúncia papal contra a falta de respeito com a religião alheia e contra a corrupção.
Vindo aos temas da entrevista de ontem, a questão mais candente é certamente aquela da procriação responsável. Também aqui a linguagem papal se assinala pela expressão colorida quando, a propósito de uma mulher grávida do oitavo filho ter tido sete mediante cesariana que ele acabou encontrando numa paróquia, diz: “Alguns creem, perdoai-me a palavra, que para ser bons católicos devemos ser como os coelhos”. Talvez alguém tinha mostrado aquela mulher ao Papa como exemplo de maternidade generosa e devota, mas a reação do Papa, como refere ele mesmo, foi de bem outro tipo porque a censurou assim: “Mas a senhora quer deixar órfãos outros sete? Mas isto é tentar Deus”. Como estamos distantes da imagem de mãe que se sacrifica pelos filhos, chegando até a morrer para colocá-los no mundo, tão cara ao catolicismo tradicional! O Papa diz, ao contrário, que uma maternidade não controlada e não responsável equivale a tentar Deus.
Convém, no entanto, acrescentar que sobre o tema específico da contracepção, precisamente como um hábil pugilista que, além de saber dar os socos, também sabe evitá-los, o Papa esquivou-se habilmente da pergunta. De fato, o ponto quente da questão não é o número dos filhos, que o Papa estabelece canonicamente em três (provavelmente lembrado do adágio medieval ‘omne trinum est perfectum’ [todo trio é perfeito]), mas, como evitar outras procriações após o número três, ou que qualquer outro número que um casal queira ou possa permitir-se, tenha sido conseguido. Paulo VI havia estabelecido na encíclica Humanae vitae, em 1968, a existência de um nexo incindível (nexus indissolubilis) entre união sexual e procriação, declarando que toda pessoal união sexual deve necessariamente ser sempre aberta à procriação. Também a união com o legítimo marido de uma mulher que já teve sete filhos?, poderíamos perguntar. Também ela, responde a doutrina católica oficial (leia-se o artigo 2366 do atual Catecismo).
Para evitar a procriação indiscriminada como os coelhos, segundo o exemplo escolhido pelo Papa, ou como tantas das nossas mulheres das gerações precedentes, segundo a memória de muitos, a Igreja propõe os assim ditos “métodos naturais”, mas se trata de um procedimento que somente poucos casais conseguem ativar, as estatísticas dizem que entre os católicos praticantes aqueles que os observam variam de 8 a 1 por cento. Cônscio destas coisas o cardeal Martini, em sua última entrevista, havia declarado: “Devemos perguntar-nos se o povo ainda escuta os conselhos da Igreja em matéria sexual: a Igreja ainda é neste campo uma autoridade de referência ou somente uma caricatura da mídia?” (Corriere, 1. de setembro d 2012). E, no ano passado o cardeal Kasper: “Devemos ser honestos e admitir que entre a doutrina da Igreja sobre o matrimônio e sobre a família e as convicções vividas de muitos cristãos se criou um abismo”.
O Papa sabe muitíssimo bem que esta é a situação, como deixam transpirar suas palavras quando diz que na Igreja “se procura”; acrescentando depois: “E eu conheço tantas vias de saída, lícitas”. De que se tratará? Dos costumeiros métodos naturais? De alguma particular escamotagem da qual os jesuítas estão sempre providos? Será um dos argumentos candentes do Sínodo do próximo mês de outubro, o segundo encontro da grande reflexão sobre a família desejada por Francisco? Aqui ninguém obviamente poderá obtê-lo com pancadas, mas talvez um pontapé papal a algum purpurado particularmente cabeçudo poderia ajudar.
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Vaticano. O pastor do povo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU