10 Junho 2020
"Em semelhante “cenário líquido” (parafraseando Zygmunt Bauman), do mais fundo e oculto das entranhas, emerge um vulcão de lavas e cinzas que sequer imaginávamos que pudessem fazer parte de nossa existência íntima. O vulcão, como manda sua natureza, solta no ar e ao redor o que de melhor e de pior carregamos no íntimo", escreve Alfredo J. Gonçalves, cs, padre, vice-presidente do SPM.
Toda crise é sinônimo de tempestade. Feito “o diabo na rua, no meio do redemoinho”, para usar a expressão do poeta Guimarães Rosa. No céu de chumbo, escuras nuvens se adensam. Ventos contrários sopram furiosamente em todas as direções. A crise fere e redime, mescla e depura, separa e purifica. Rasga o tumor, seja para expô-lo aos olhares estranhos, quanto para curá-lo. Vira do avesso fatos e boatos, coisas e pessoas. Notícias verdadeiras e falsas se cruzam e recruzam. Dúvidas e interrogações vêm à tona. As correntes profundas, e invisíveis, atropelam as ondas superficiais, e visíveis. Perguntas e respostas trocam de lado. O lixo longamente atirado para debaixo do tapete, é varrido e se espalha por toda casa. Mágoas e ressentimentos ganham a luz do dia. Tensões e contrastes batem-se e debatem-se.
Crise é também sinônimo de situação-limite. Travessia árdua, labiríntica, acidentada. Leva caminhar, com os pés descalços, sobre pedras e espinhos. Nós antigos e novos, entraves e embates disputam tempo e espaço. Ambos se convertem em terreno fértil para sonhos e lutas, ilusões e desilusões. A crise sempre mistura e embaralha dores e esperanças, acarretando sofrimento e redenção. Aponta o caminho da cruz, e esta torna-se via de ressurreição. Sofrer uma crise é atravessar campo minado, onde não se pode correr, nem andar em linha reta. Ela faz descer ao fundo do poço; mas aí chegados, tem início a subida. No fundo do poço – ensina a sabedoria popular – há sempre uma espécie de mola que impulsiona para cima.
Situação-limite é tempo crítico, caótico, escorregadio. Predominam o medo e a angústia, a instabilidade e a insegurança. O pranto e as lágrimas cegam, isolam e paralisam. Os joelhos tremem e o chão parece fugir debaixo dos pés. As estrelas se apagam na noite fria e escura. Os marcos indicativos somem da estrada. Em meio ao nevoeiro, perdem-se o farol do porto e as referências da rotina cotidiana. “Tudo o que é sólido se desmancha no ar” (Lê-se no Manifesto Comunista de Marx e Engels). Luzes, buscas, verdades e certezas deixam-se devorar pelo vórtice ameaçador da tormenta. Acabam sendo irremediavelmente substituídas por opiniões, hipóteses, interpretações. Tudo converge sobre o olho tenebroso do furacão. Experiência e memória, sentimento e emoção, afeto e desafeto, depressão e euforia – tudo se alterna e se mescla, se funde e confunde. Prevalece a sensação de vertigem: sobre uma ponte pênsil, eis o rio endiabrado correr em turbilhões para o oceano que o há de engolir e neutralizar.
Em semelhante “cenário líquido” (parafraseando Zygmunt Bauman), do mais fundo e oculto das entranhas, emerge um vulcão de lavas e cinzas que sequer imaginávamos que pudessem fazer parte de nossa existência íntima. O vulcão, como manda sua natureza, solta no ar e ao redor o que de melhor e de pior carregamos no íntimo. Oportuniza a revelação de uma dupla face que Freud definia, respectivamente, como pulsão de vida e pulsão de morte. A pobreza, a miséria e a fome do Nordeste – escreveu Jorge Amado – constituem campo fecundo para o surgimento de santos e bandidos. Na disputa pelo pão, a luta pelo chão se acirra ou se atrofia. Facilmente tornamo-nos animais, rangendo os dentes em aberto conflito, como uma matilha de cães sem dono diante de um osso descarnado. Resta saber para que lado da balança nos sentiremos atraídos, e isso, por sua vez, depende de uma série múltipla e complexa de fatores, que vão das propensões genéticas e culturais até vícios adquiridos. Proliferam neuroses e patologias.
A velocidade do contágio provocado pelo Covid-19, com seu rastro macabro de morte e luto, engendra essa espécie de tempo kairológico (favorável, histórico, oportuno), tanto para o bem quanto para o mal. Diante do caos ingovernável, os dois lados se revelam possíveis. Há pessoas que fazem de tal situação um momento oportuno para o ódio, a vingança, o rancor, a raiva, a agressão, o confronto e a violência – os oportunistas, propriamente falando. Outros encontram aí um solo fecundo e sem igual para a acolhida, o encontro, o diálogo, a simpatia, a compaixão, a aproximação fraterna e a solidariedade, enfim, uma revisão das relações sociais.
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A dupla face da crise - Instituto Humanitas Unisinos - IHU