02 Junho 2020
"Embora estejamos todos no mesmo barco, torna-se escandaloso e estridente o desequilíbrio entre pobres e ricos. Enquanto os primeiros representam as vítimas imediatas de cada catástrofe, perdendo seus entes queridos ou tendo que fugir da terra em que nasceram, os segundos apelam para uma série de mecanismos de proteção. O dinheiro e, através dele, a força e influência política os defendem. Têm condições de se refugiar nos 'arquipélagos da riqueza', pagando preços elevados. Daí o alerta do pontífice segundo o qual, além de preservar 'nossa casa comum', torna-se urgente distribuir de forma justa e equânime as riquezas produzidas pelo trabalho de todos", escreve Alfredo J. Gonçalves, cs, padre, vice-presidente do SPM.
Definitivamente não! Ou melhor, sim e não. Se de um lado é verdade que habitamos todos o mesmo planeta Terra, de outro também é certo que uma minoria muito rica e poderosa tem condições infinitamente melhores para se defender. Defender-se de quê? Em primeiro lugar, da pandemia do Covid-19 que devasta o mundo inteiro e que pode matar mais de meio milhão de pessoas. Mas defender-se igualmente dos efeitos nefastos causados pela deterioração do meio ambiente, pela contaminação do mar, do ar e das águas, pelo aquecimento global, pelo ritmo alucinado de produção, consumo e descarte imposto pelo sistema capitalista.
No caso da pandemia do coronavírus, a constatação tem sido simples e imediata. Inicialmente, a doença começou a ser disseminada pelos que têm condições de viajar, muitos deles turistas ou técnicos especialistas das multinacionais. A sua letalidade, porém, verificou-se maior entre os pobres e os negros, as minorias étnicas e os imigrantes, com destaque para grande número de indocumentados “escondidos nos porões da sociedade” (p. ex., Massachussets, Califórnia e Flórida, USA, além de vários países da Europa). Embora o vírus chegue pelos aeroportos e cruzeiros, é nas favelas e periferias que esse “inimigo invisível” ceifa mais vidas. Conhecemos o caso da patroa que contraiu a doença e contagiou a empregada doméstica. Enquanto esta última veio a óbito, a outra sequer desenvolveu os sintomas. Ou seja, o nível de vida e a boa nutrição das classes altas não apenas confere uma armadura mais saudável contra os ataques do vírus, mas também lhes abre prontamente o acesso ao sistema de saúde e a um tratamento mais digno. Estamos todos no mesmo barco, mas em condições profundamente desiguais.
Vale o mesmo diante do vírus do lucro e da acumulação capitalista, dois motores que movem a economia globalizada. A ambição descontrolada pelo dinheiro e o poder – irmãos gêmeos que se protegem e fortalecem reciprocamente– há séculos vem destruindo os ecossistemas, em nível regional, bem como a natureza e o todo meio ambiente, em nível universal. A Carta Encíclica Laudato Si’, publicada em maio de 2015 pelo Papa Francisco consiste, ao mesmo tempo, em uma testemunha e uma denúncia dessa destruição irreversível. Os resultados se manifestam no fenômeno das catástrofes extremadas, tais como estiagens prolongadas e inundações, frio e calor cada vez mais acentuados, furacões e ciclones, e assim por diante.
Também neste caso, embora estejamos todos no mesmo barco, torna-se escandaloso e estridente o desequilíbrio entre pobres e ricos. Enquanto os primeiros representam as vítimas imediatas de cada catástrofe, perdendo seus entes queridos ou tendo que fugir da terra em que nasceram, os segundos apelam para uma série de mecanismos de proteção. O dinheiro e, através dele, a força e influência política os defendem. Têm condições de se refugiar nos “arquipélagos da riqueza”, pagando preços elevados. Daí o alerta do pontífice segundo o qual, além de preservar “nossa casa comum”, torna-se urgente distribuir de forma justa e equânime as riquezas produzidas pelo trabalho de todos. Basta com a “globalização da indiferença” – diz o Papa – fonte de enormes assimetrias sociais, e que “exclui, descarta e mata”.
Vale concluir com as palavras de Richard Melville Hall (nome artístico de Moby), conhecido mundialmente como o astro do rock e da música eletrônica: “Um dos aspectos mais frustrantes do que estamos vivendo como espécie é que todo o problema que enfrentamos é um problema que nós mesmos criamos. A receita para transformar nosso planeta em um paraíso é algo muito fácil: basta parar de usar petróleo e carvão, de derrubar as florestas tropicais, de usar animais como alimento e de gastar mais dinheiro em defesa do que em educação. Acho que podemos consertar tudo. Nós só decidimos não consertar. Espero que a pandemia nos faça ver que o ‘velho normal’ poderia ser até confortável, mas também era totalmente insustentável. A minha esperança é que tenhamos logo um ‘novo normal’” (Cfr. ESSINGER, Silvio, in: O DJ que não vai a boate e a raves, Jornal O Globo, 25/05/2020, segundo caderno, pág. 1).
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Estamos todos no mesmo barco? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU