09 Março 2020
"É sempre a existência do inimigo (do estranho, do estrangeiro) que nos permite fortalecer paranoicamente a nossa identidade, às vezes até produzindo um efeito de massa eufórico; a euforia de estar unidos contra judeus, homossexuais ou migrantes, por exemplo. Essa é uma tendência que envolveu fortemente a última temporada política dominada por uma evidente paixão securitária pelo muro, pela barreira, pela militarização da fronteira. Mas e se, como no coronavírus, a identificação do inimigo não for mais possível?", questiona o psicanalista italiano Massimo Recalcati, professor das universidades de Pavia e de Verona, em artigo publicado por La Repubblica, 07-03-2020. A tradução é de Luisa Rabolini.
Segundo ele, "quando o corpo social é vivido como desamparado, impotente e exposto ao flagelo da doença, quando os mecanismos de defesa não estão mais aptos a proteger os limites da nossa identidade e da nossa saúde, a morte - que o discurso contemporâneo tende a remover de todas as formas possíveis - retorna como protagonista absoluto e perturbador da cena".
Eis o artigo.
A primeira reação motora diante de um perigo é a fuga; afastar-se da ameaça iminente o mais rápido possível. O medo é a resposta emocional que sinaliza e localiza o perigo em um objeto determinado, mobilizando nosso rápido distanciamento. Mas o que se faz quando - como é o caso da epidemia do coronavírus - a ameaça não é localizável, quando foge de toda determinação? Quando sua presença é invisível e deslocalizada?
Clinicamente, estamos diante da passagem forçada do medo à angústia; o sentimento de angústia, de fato, diferente do medo, não se desencadeia mais diante de um objeto ameaçador. A rigor, a angústia não tem um objeto: é, ao contrário do medo, como repete Freud, "sem objeto". Portanto, o perigo é percebido em todos os lugares precisamente porque não é mais localizável. Seu deslocamento não gera mais medo, mas angústia ou pânico. A natureza protetora do medo desaparece, a ribanceira de fobia desmorona. Se, em relação ao objeto fóbico (uma cobra, um avião, um precipício), bastaria sua evitação para escapar à nossa angústia, no caso da circulação do vírus, a estratégia da evitação se torna impossível justamente por causa da indeterminação do objeto ameaçador.
A angústia do contágio espalha o objeto temido por toda parte; nas mãos, na boca, no dinheiro, nas maçanetas das portas, nas roupas, nos transportes públicos, enfim, em todos os objetos do mundo. Não é por acaso que atualmente encontramos em nossos pacientes a multiplicação das crises de pânico ou de comportamentos fóbicos caracterizados por afastamento social, autorreclusão, isolamento, medo de qualquer forma de contato.
De outro ponto de vista, estritamente relacionado a essa passagem do medo à angústia, essa epidemia põe em xeque até a forma coletiva mais poderosa de defesa contra a ameaça, que é a defesa paranoica. A identificação de um inimigo externo (de uma raça inferior, de uma classe social, de uma ideologia) nos permite canalizar a falta de ação passiva da angústia coletiva para uma atitude ativa de defesa. Se podemos identificar o inimigo, é uma questão de combatê-lo abertamente, de rejeitar fortemente sua presença entre nós. É a existência de um inimigo localizável externamente (o judeu, o negro, o migrante, o chinês) que cimenta paranoicamente o corpo social, engrossando suas fronteiras defensivas. É sempre a existência do inimigo (do estranho, do estrangeiro) que nos permite fortalecer paranoicamente a nossa identidade, às vezes até produzindo um efeito de massa eufórico; a euforia de estar unidos contra judeus, homossexuais ou migrantes, por exemplo.
Essa é uma tendência que envolveu fortemente a última temporada política dominada por uma evidente paixão securitária pelo muro, pela barreira, pela militarização da fronteira. Mas e se, como no coronavírus, a identificação do inimigo não for mais possível?
E se a presença do estrangeiro não habita o além de nossas fronteiras, mas se espalha entre nós, ou se insere em nossos corpos?
É o que está acontecendo: a defesa paranoica diante da ameaça do estranho se desmembrou, dando origem a uma fragmentação da massa e, consequentemente, aos fenômenos do pânico e do retiro social. O sentimento sólido e coletivo de identidade - produzido pela defesa paranoica - foi substituído por aquele fragilíssimo da falta de ação individual; nos sentimos sozinhos e sem proteção. Por esse motivo, a angústia do contágio traz consigo a presença inconsciente ou consciente da morte.
Ao contradizer irracionalmente os dados da ciência, a percepção comum desse vírus é que ele esteja profundamente associado a um alto risco mortal. Não é por acaso; quando o corpo social é vivido como desamparado, impotente e exposto ao flagelo da doença, quando os mecanismos de defesa não estão mais aptos a proteger os limites da nossa identidade e da nossa saúde, a morte - que o discurso contemporâneo tende a remover de todas as formas possíveis - retorna como protagonista absoluto e perturbador da cena.
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O inimigo invisível - Instituto Humanitas Unisinos - IHU