21 Mai 2020
"As desordens e as crises generalizadas, como as de agora, são oportunidades para tomarmos decisões: ou fortalecemos as normalidades que promovem e garantem a vida ou seguimos colocando máscaras em cima das anormalidades que produzem o caos", escreve o sociólogo e filósofo Dirceu Benincá, professor da Universidade Federal do Sul da Bahia – UFSB.
O normal é não ser anormal. Óbvio demais. Mas, na vida, o que é o normal e o que é o anormal? Será uma questão de mera definição individual? Penso que não. Há coisas tidas como normais que não deveriam sê-lo. E há anormais que deveriam não sê-lo. Igualmente, há anormais que, de tanto sê-lo, acabam por não parecê-lo. Nem por isso passam a ser normais. Além do ser ou não ser, existe uma questão ainda mais derradeira: ser normal ou anormal em qual situação? No conjunto do palavreado, é sempre determinante ficar claro o assunto e a direção. Do contrário, pode-se tomar o ótimo por péssimo ou o inadmissível por bom.
Na (des)ordem do dia, tornou-se normal, importante, recomendado, necessário e até obrigatório utilizar máscara. Ocorre que estamos em um tempo anormal. Em outros tempos, a presença da máscara seria um indicativo de anormalidade de quem a estaria utilizando. Hoje, usá-la é prova da existência de uma anormalidade geral. E não usá-la passou a representar uma anormalidade dentro da anormalidade. Também aqui, como na regra matemática da multiplicação de dois números negativos, tem-se um resultado positivo: nesse caso para o coronavírus.
A máscara não resolve o problema no sentido de imunizar o usuário contra a Covid-19 – como muitos especialistas nos informam – embora constitua certa proteção, enquanto estamos sob as normas da pandemia. Eficiência de máscaras não é minha especialidade. Mas, não precisa ser especialista no assunto para diagnosticar que há muitas máscaras sendo utilizadas nas (des)ordens do dia com a finalidade de acobertar graves problemas sociais. As máscaras aí fazem exatamente o que são capazes de fazer: mascarar.
Na sociedade, existe um conjunto de anormalidades que precisam ser enfrentadas sem máscaras. Entre elas, a fome, a miséria e as desigualdades sociais. Segundo o Relatório de Desenvolvimento Humano/2019 da ONU, o Brasil é o 7º país com mais desigualdade no mundo.
Aqui, os bilionários são poucos e os miseráveis uma multidão sem fim. O homem mais rico do Brasil, Joseph Safra, dono do banco Safra, acumula mais de R$ 100 bilhões. Jorge Paulo Lemann e Marcel Hermann Telles, donos de quase todas as marcas de cerveja do país, somam juntos cerca de R$ 130 bilhões. Se esse valor dos cervejeiros fosse distribuído em partes iguais, 130 mil pessoas receberiam 1 milhão de reais cada e poderiam ter uma vida bem tranquila. Daí a necessidade de taxar pesadamente as grandes fortunas e, por outro lado, diminuir ou isentar os pobres a fim de promover a justiça tributária.
O desemprego estrutural é outra anormalidade que vem sendo aprofundada pelo avanço excludente da mecanização e da automação, na lógica da quarta revolução industrial. Daí resulta um exército de trabalhadores desempregados, subempregados, donos do seu próprio precário negócio uberizado, enfim, jogados à própria sorte. Numa economia que primasse pela dignidade de todos os trabalhadores, teríamos a redução da jornada de trabalho com possibilidade de mais pessoas ocupadas com seus ganhos garantidos. O aumento dos postos de trabalho com renda e condições decentes contribuiria para achatar a curva (expressão em voga) das desigualdades sociais e econômicas.
Há anormalidades históricas que precisam ser continuamente desmascaradas, como: o colonialismo, o escravismo, o racismo, o machismo, o patriarcalismo, o fundamentalismo, o negacionismo, o terraplanismo, o fascismo, o capitalismo, o imperialismo e tantos outros “ismos” que nos impedem de ser o que temos direito de ser: uma nação feliz. Existe um conjunto de outras anormalidades a serem enfrentadas sem máscaras. Entre elas: a cultura do ódio, as diversas formas de violência, a arrogância, a intolerância, a barbárie, a falta de capacidade de ouvir, compreender, respeitar e dialogar com o outro/a porque ele/ela é, pensa e se comporta diferente do que eu. Esta categoria de anormalidades não está dissociada das demais mencionadas acima. E parece mesmo que elas são a expressão mais grave da existência daquelas.
Por outro lado, há uma série de normalidades que devemos tornar reais e ampliar suas potencialidades. Normalidades acreditadas por muitos, mal vistas por outros e nem sempre lutadas com as devidas forças por todos. Entre elas: o bem viver, o sistema de saúde e de educação com qualidade para todos, o trabalho digno, a solidariedade, a democracia, o desenvolvimento integrado e sustentável, a justiça social, a defesa dos direitos humanos e ambientais, a ética...
Nosso futuro poderá ser saudável, feliz e sustentável se soubermos tirar muitas máscaras, resistir às crises sistêmicas de forma criativa, superar muitas anormalidades e tornar reais as normalidades vitais. As desordens e as crises generalizadas, como as de agora, são oportunidades para tomarmos decisões: ou fortalecemos as normalidades que promovem e garantem a vida ou seguimos colocando máscaras em cima das anormalidades que produzem o caos. Parafraseando o filósofo francês Jean-Paul Sartre (1905 – 1980): ‘Mais importante do que aquilo que fizeram/fazem de nós, é o que nós fazemos com o que fizeram/fazem de nós’.
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O normal e o anormal na (des)ordem do dia - Instituto Humanitas Unisinos - IHU