20 Mai 2020
"Sobreviver a tudo isso não é fácil e na condição de estrangeiros não é nem um pouco simples", escreve Vitor Hugo Mendes, presbítero da Diocese de Lages (SC), doutor em Educação e doutor em Teologia. Atualmente realiza estudos em Salamanca (Espanha) e colabora com serviços pastorais na Diocese da Guarda (Portugal).
A quantidade de brasileiros/as trabalhando, estudando ou vivendo em Salamanca, Espanha, é significativa. Somente na ABS, a Associação dos Alunos Brasileiros da Universidade de Salamanca (USAL), no curso 2019/2020 foram cadastrados mais de 600 estudantes de graduação e pós-graduação (mestrado e doutorado). Além disso, há inúmeros pesquisadores das mais diversas áreas realizando estudos de pós-doc. Em maior ou menor número, todas as regiões do Brasil estão presentes na famosa Universidade salmantina que neste ano de 2020 comemora 802 anos de existência. É importante lembrar que desde 2001 a USAL mantém ativo um importante Centro de Estudos Brasileiros (CEB) dedicado a refletir o Brasil nestas latitudes.
Embora desde o dia 12 de março as atividades na Universidade estejam suspensas por causa da Covid-19, de muitas maneiras os brasileiros continuam conectados. E, vira e mexe, não podia ser diferente, o assunto é o Brasil. Aqui em Salamanca todos experimentamos momentos bastante difíceis. A pandemia na Espanha desencadeou uma gravíssima crise sanitária. Com uma população de 47 milhões de habitantes, a cifra de contagiados está próxima de 300 mil e o número de vítimas alcança quase 30 mil mortos.
Como em muitos países da Europa, o governo espanhol e a população em geral demorou em dar a devida atenção ao silencioso vírus. As tímidas medidas iniciais de isolamento social, o aumento incontrolável de casos e a limitação das estruturas sanitárias disponíveis, entre outros, fizeram com que a gravidade da pandemia se tornasse ainda mais severa e letal. Atualmente o processo de “desconfinamento” da população já está em curso, mas se trata de um procedimento que levará alguns meses para devolver alguma “normalidade” à vida social e acadêmica. Em algumas Províncias, dada a situação atual, a expectativa de passar da fase 0 para a fase 1 foi postergada em mais 15 dias no último domingo.
Sobreviver a tudo isso não é fácil e na condição de estrangeiros não é nem um pouco simples. Certamente toda essa situação nos fez ainda mais sensíveis em acompanhar o impacto crescente da pandemia nas terras além-mar. Visto de longe, estamos perplexos com o que está acontecendo no Brasil. De fato, quando se pensa que nada pode ficar pior do que está, o pior acontece e logo ganha as páginas e manchetes da imprensa internacional. De forma lamentável se percebe que no enfrentamento do coronavírus se avoluma uma crise ética, política, econômica, cultural, educacional... que não se sabe bem onde vai dar. No exterior, a imagem do Brasil, como país-líder na América Latina, se desconstrói dia a dia por conta do “vírus” e da insana virulência política que, assim parece, contaminou o país.
Junto de lamentar as inúmeras mortes que dramaticamente se multiplicam nestes dias por conta da pandemia e expressar uma sentida solidariedade com o Brasil -nossa terra e nossa gente-, ecoamos algumas manifestações daquilo que, mesmo estando longe, nos ocupa, preocupa e, não poucas vezes, causa indignação. Como afirma Marilene C. da Silva, “nestes dias assistimos com perplexidade a expansão do coronavírus e da crise generalizada que toma conta do Brasil”.
Doutoranda na Faculdade de Filologia (USAL), a professora de Fortaleza (CE) indica que as informações que recebe de familiares e amigos “são alarmantes”. Comentam que “sentem medo, insegurança, impotência... diante do descaso e da falta de responsabilidade do governo federal que não consegue administrar minimamente a crise causada pelo coronavírus”. Desde aqui da Espanha -afirma-, “só me resta usar as redes sociais para alertar sobre a face brutal do vírus e contar a experiência tremenda vivida neste tempo. Tento conscientizar insistindo que fiquem em casa, que não descuidem das medidas e recomendações da OMS, como usar máscaras, manter o distanciamento social, etc.”
De fato, a gente se sente desconcertado diante da gravidade da pandemia e a condição de desorientação em que se encontra o país. Em Salamanca desde 2015, sou do parecer que essa caótica situação atual não deixa de ser ainda efeito do golpe parlamentar de 2016 que destituiu Dilma Roussef. Como se disse acertadamente na ocasião, “aquilo ali era uma pura encenação para justificar a tomada do poder” (J. Barbosa). Sem meias palavras, foi uma sinistra orquestração que, entre um conchavo e outro, em 2018, produziu a desastrosa eleição de J. Bolsonaro.
Desde a sua posse, em janeiro de 2019, o governo Bolsonaro, de maneira invencível, tem sido sistemático em desconsiderar a Carta Magna do país e, dessa maneira, desmontar a frágil democracia brasileira. Mais recentemente, em plena pandemia, desprovido de qualquer “máscara”, todas as perturbações do capitão feito presidente se manifestaram na vida pública de forma cruel. Não bastando o ataque ininterrupto das fake news, a troca de ministros da saúde, etc. as continuas aparições e declarações do “mito” são assombrosas. Em meio à crise sanitária e política, o líder não lidera, o governo desgoverna e os demais poderes dão mostras de permanecer inertes enquanto o país inteiro agoniza. Há razões para crer que a pandemia libertou o “pandemônio” no Brasil.
Diante do que se apresenta, Edna Bertoldo, que recentemente concluiu o pós-doutorado em Educação, considera que a atitude de Bolsonaro, “ao qualificar a Covid-19 de ‘gripezinha’, além de demonstrar o seu total desprezo pela ciência e seus representantes, como a Organização Mundial da Saúde (OMS) e os órgãos nacionais de saúde, tem contribuído para que a população se mantenha mal esclarecida”. Segundo a professora, “como resultado [desse tipo de comportamento], ao invés de o povo buscar se proteger da contaminação epidêmica a partir das orientações baseadas no conhecimento científico, acaba se guiando por determinadas crenças que, de modo geral, só encontram respaldo na perspectiva ideológica bolsonarista”.
Lamentando que, devido a Pandemia, só poderá regressar ao Brasil talvez em junho, Edna que é professora da Universidade Federal de Alagoas é taxativa em afirmar que “enganam-se totalmente aqueles que acreditam que a posição defendida por Bolsonaro está associada à fé em Deus. Sua fé inabalável está baseada no mais poderoso ‘deus’ da atualidade: o capital”. De fato, como constata a professora Bertoldo, temos aí um tema bastante complexo. Vale ainda dizer que a cruzada evangélica assumida pela gestão Bolsonaro, com a cumplicidade da ala conservadora de muitas igrejas (pentecostais, luterana, católica), constitui uma ameaça real ao Estado democrático brasileiro. Em uma batalha fideísta irracional, esses “guetos”, maleficamente reunidos, atuam como títeres das elites que persistem em manobrar o país a qualquer preço.
Tal como se apresentam, revestidos de uma ignorância nada santa e sonhando com vantagens fáceis, esses grupos fazem coro com “o Brazil que não conhece o Brasil”. Em boa medida são os mesmos que, ignorando a pandemia e contrariando as orientações de saúde pública, organizam, promovem e frequentam carreatas contra o isolamento social, idolatram o “mito”, pedem o fechamento do Congresso Nacional, exigem a intervenção militar, etc. Algo realmente difícil de entender e de explicar.
Em meio a tudo isso que não deixa de ser notícia diária, de igual maneira aflita e não menos indignada, Racquel Valério Martins, professora de Fortaleza (CE), atual presidenta da ABS (Associação de Alunos Brasileiros da USAL), sopesa que em plena pandemia “nós, investigadores, como muitos outros espalhados pelo mundo afora, estamos sofrendo as consequências dos mais absurdos ataques à ciência, à cultura e à educação no país. Se antes tínhamos, nestas áreas, uma base que, se pode dizer, estava se consolidando e, pese a necessidade de investimentos, não deixava nada a desejar dos grandes centros, hoje retrocedemos a passos rápidos e sem perspectivas de melhoras a curto e a médio prazo”. Na verdade, “diante da falta de investimento, o Brasil está ficando cada vez mais ausente no mundo acadêmico e científico internacional”.
Além disso, a presidenta da ABS -que recém finalizou o pós-doutorado em Educação e Direitos Humanos e atua como pesquisadora colaboradora no Instituto Ibero-américa (USAL)-, se diz particularmente preocupada com a crescente escalada da violência no Brasil. “Nesse tempo de pandemia o desrespeito aos direitos humanos, sobretudo dos Povos Indígenas, se tornou ainda mais escandaloso”. Em vista disso, a professora conta que recebeu “com desânimo a nomeação de André Luiz de Almeida Mendonça, ex-aluno da USAL, como ministro da Justiça no Brasil”. Não faz muito, em 2019, o então Advogado da União participou do primeiro Encontro de Ex-alunos da Universidade, em Salamanca, com uma conferência sobre o Brasil. Na avaliação da investigadora, a fala de André Mendonça “de forma deplorável, não fez mais que justificar e promover o populismo neoliberal do governo. Um discurso que, sobretudo agora, no contexto da pandemia, não se sustenta diante da inoperância político-administrativa que se instalou em Brasília”.
Frente a esse cenário, visto de longe ou de perto, parece evidente que não há muitos motivos para ser otimista com situação atual do Brasil. Embora diante da pandemia global se observa que os mais diferentes países tiveram um aumento exponencial de problemas e desafios de toda ordem por administrar, é difícil não considerar com apreensão a gravidade de tudo o que está passando no Brasil. Incluso porque, não havendo medidas adequadas e suficientes para tratar as muitas crises sísmicas em movimento -sanitária, política, econômica...-, a situação pode adquirir uma proporção catastrófica de difícil controle. Oxalá na busca de soluções prevaleça o bom senso da via democrática.
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A pandemia no Brasil vista de longe. Brasileiros, em Salamanca, Espanha, se dizem perplexos - Instituto Humanitas Unisinos - IHU