15 Mai 2020
Nas Anunciações, enquanto Gabriel comunica a Maria aquilo que aconteceria, esta última, a partir de uma certa época, é quase sempre pintada com um livro que estava lendo, interrompido precisamente por causa da chegada do anjo.
O comentário é do filósofo italiano Alfonso M. Iacono, professor da Universidade de Pisa, publicado em Il Manifesto, 12-05-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Qual era esse livro? O que Maria lia? Michele Feo pôs-se a analisar uma grande parte da enorme quantidade de quadros que representam esse evento tão fundamental na história do cristianismo e, acrescentamos, na história da comunicação.
Trata-se de um trabalho apaixonado. “Cosa leggeva la Madonna. Quasi un romanzo per immagini” [O que Nossa Senhora lia. Quase um romance por imagens] (Polistampa, 299 páginas) é um extraordinário acervo de sabedoria filológica e de suspense narrativo.
Michele Feo constata que houve uma grande atenção, naturalmente, pelas imagens que representam tal evento, mas quase nada pelo que estava escrito no livro.
A Anunciação representa uma relação difícil e complexa entre o mundo divino e o humano, que envolve o tempo na sua dialética entre passado, presente e futuro. Uma grande forma de comunicação entre divino e humano é, como se sabe, a profecia. Mas, então, o que Nossa Senhora lia?
Nem todas as Anunciações a representam com o livro em mãos. Em algumas, ela pega água com um jarro na fonte; em outras, ela está filando ou tecendo, mas depois nos deparamos com a inovação iconográfica.
No entanto, o encontro com Gabriel não foi fácil. Ao contrário, foi perturbador. O livro, talvez mais do que o jarro ou o tear, dá a sensação de uma mulher em solidão, absorvida pela leitura, abalada por um anúncio chocante. Certamente não é o choque que Benjamin contrapõe, na modernidade, à aura. Aqui, o choque se assemelha, no mínimo, ao Jetztzeit, ao agora que subverte o tempo e o faz precipitar, levando consigo o futuro e o passado. De repente tudo muda.
Representada na tranquilidade, Maria é uma garota que se encontra diante de uma mudança catastrófica, radical: ficará grávida, e o pai não será o seu futuro esposo, José, mas sim Deus.
Entre Gabriel e Maria, há um confronto dramático. Lucas (1,35) fala de uma sombra, tema sobre o qual Massimo Cacciari se debruçou em “Generare Dio” [Gerar Deus] (Il Mulino, 2017). De que sombra se trata? Da sombra do Altíssimo. Uma sombra que, como Orígenes e Alberto Magno sabiam, não é a escuridão, mas sim a imagem de quem se vê refletido no espelho.
Trata-se das iniciais das primeiras palavras do profeta Isaías (7,14): “Eis que a jovem conceberá e dará à luz um filho e lhe porá o nome de Emanuel”.
Portanto, Maria está lendo, no Antigo Testamento, a profecia daquilo que estava acontecendo com ela. De fato, “a profecia de Isaías é o elo de conexão entre as expectativas do Antigo Testamento e o cumprimento do Novo”. Michele Feo observa que nunca se sublinhará suficientemente o papel fundamental do livro na cultura antiga e medieval e a sua identificação com a própria civilização.
E hoje, na era digital, que relação existe entre livro e tempo? O problema não é o livro, mas sim o tempo que não encontra mais a si mesmo para o livro, e não porque o digital se afirma, mas porque passado e futuro tendem a desaparecer em um irrefreável fluxo de presente que, ao contrário do que pensava Baudelaire, absolutamente não se torna eterno. É como uma fúlgida danação infernal.
Na Nossa Senhora que lê a profecia de Isaías, encontramos algo em que futuro e passado se entrelaçam no sentido de Benjamin e, por outro lado, no de Auerbach e da sua interpretação figurativa a propósito de Dante: “O fato terreno é profecia ou ‘figura’ de uma parte da realidade imediata e completamente divina que se implementará no futuro”. O que está escrito no livro, as palavras de Isaías, é como uma mise en abîme, um quadro no quadro.
“Madonna”, de Antonello da Messina (Foto: Wikipédia)
Por fim, como não podemos dar conta aqui da complexidade filológica e histórica do trabalho de Michele Feo, só podemos nos debruçar sobre a Madonna de Antonello da Messina, que se encontra no Palazzo Abatellis, de Palermo.
“É a mais bela de todas as Anunciatas que foram, que são e que serão, e, para o meu gosto, é a maior obra de toda a pintura europeia”, escreve o autor. “Só ela vale uma viagem na vida a Palermo.”
Mas, continua Feo, nessa sua fascinante interpretação, além de ser a mais bela, é também a mais misteriosa. De fato, no quadro de Antonello, o anjo não está. O gesto da mão expressa um impulso emotivo interior de Maria, que está lendo a profecia de Isaías e, de repente, se pergunta: “Não serei eu aquela de que fala o profeta?”, e rejeita tal hipótese, que, ao contrário, dali a pouco, será confirmada pelo anjo.
“O que vemos em Palermo – afirma Michele Feo – não é a Anunciação, mas apenas a premonição da Anunciação.” O futuro incumbe sobre o presente. E o gesto de Nossa Senhora transforma a imagem em movimento, o movimento em emoção, e a emoção em poesia.
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Maria e o inesperado encontro que subverteu o tempo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU