15 Fevereiro 2012
O teólogo Vito Mancuso quis ver com seus próprios olhos o drama teatral do diretor Romeo Castellucci, cuja estreia ocorreu no dia 24 de janeiro no Teatro Franco Parenti, em Milão.
A peça apresenta a história de um idoso incontinente que padece de diarreia. O protagonista defeca constantemente no cenário branco, que tem como um de seus panos de fundo uma réplica gigante da imagem de Cristo Salvator mundi, pintada por Antonello da Messina no século XV.
O artigo foi publicado no jornal La Repubblica, 26-01-2012. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
Estive no teatro Parenti de Milão para ver a obra Il concetto di Volto nel Figlio di Dio [O conceito de Rosto no Filho de Deus], do diretor Castellucci. O que me chamou a atenção ao chegar por sobretudo a polícia, aos montes, coisa que ninguém espera ver na frente de um teatro. A ameaça da qual ela devia defender o diretor, atores e talvez até mesmo nós, espectadores, era uma mistura de fanatismo religioso e de violência fascista. Uma mistura que muitas vezes se manifestou na nossa história e em cuja armadilha a hierarquia vaticana caiu mais uma vez, tendo levado a sério, com uma carta da Secretaria de Estado do dia 16 de janeiro, ao apelo à guerra santa lançado por alguns desses fanáticos.
O que se lê na carta do Vaticano ("Sua Santidade deseja que toda falta de respeito contra Deus, os Santos e os símbolos religiosos encontre a reação firme e composta da comunidade cristã") levou algumas dezenas de parlamentares e de cidadãos a se empenhar para impedir a encenação do espetáculo.
Diante de tudo isso, a tarefa do pensamento é a de distinguir os diversos níveis da questão, sedando paixões e favorecendo a reflexão. E, a esse respeito, considero que a obra de Castellucci levanta três ordens de problemas: jurídicos, artísticos e religiosos.
O nível jurídico é o mais simples, porque, em nome da liberdade de expressão, é preciso tutelar a liberdade do artista, assim como a dos espectadores. Penso que deve estar fora de discussão a encenação da obra e a sua permanência até que o público queira, e, portanto, acho inadmissível que a Cúria tenha se permitido criticar as escolhas da direção do Teatro Parenti sem ter visto o espetáculo. Mas não posso deixar de me perguntar como se reagiria se alguém colocasse em cena um espetáculo com teses negacionistas sobre as câmaras de gás, ou com teses pró-mafiosas de exaltação dos assassinos de Falcone e Borsellino: valeria, mesmo assim, o absoluto da liberdade de expressão? Realmente não há limites para a dessacralização?
Com relação ao perfil artístico, trata-se, a meu ver, de uma obra medíocre, com um texto repetitivo e muito pobre, sem movimento nem dinamismo. Impressionou-me pela sua carga de realismo, mas não gostei da ausência de uma das características essenciais da arte, isto é, a dimensão transfigurante, aquela capacidade de reproduzir a realidade sem cair prisioneira dela, de servir à verdade mantendo a poesia, como na grande pintura de Michelangelo ou de Van Gogh, ou no teatro de Eduardo De Filippo. Quanta poesia imensa e torrencial há em Jó, quantas cores e quantas melancolias totalmente ausentes no cinza plano de Castellucci.
Por fim, o perfil religioso. A meu ver, não se trata de uma obra blasfema, porque não falta o tom zombeteiro dessacralizante que caracteriza o ato blasfemo. No entanto, há um momento em que, vendo-a, me senti desconfortável, quando o ator mais jovem beija por um longo tempo a boca do Jesus de Antonello da essina, com um beijo que faz pensar somente no erotismo, e em nada na devoção. Primeiro, um beijo, depois, uma série de punhaladas.
De uma coisa estou certo: que não se trata de uma obra religiosa, como gostaria o diretor. Porque para uma obra que possa ser definida como religiosa, de fato, não é suficiente conter elementos bíblicas ou religiosos, porque senão nenhuma seria mais do que o Anticristo de Nietzsche. A presença de referências à religião faz dela, ao contrário, uma obra antirreligiosa, isto é, onde é negado o movimento que consiste essencialmente na religião, ou seja, a relação de si mesmo com todos os seus próprios problemas (incluindo a decadência física e a incontinência) com um sentido mais amplo e mais envolvente, sentido como salvação e refúgio com relação ao desespero. Há pietas e tensão ética, mas não há religio, nem há confiança, e o resultado é só raiva e desespero.
Além disso, também é preciso prestar atenção ao título, Il concetto di Volto nel Figlio di Dio. Se há um valor que o Ocidente expressou na sua história milenar, é precisamente o rosto. Se considerarmos a arte não ocidental (árabe, chinesa, japonesa...) surge instantaneamente como é secundária a presença do rosto humano. Ao contrário, se tirássemos dos nossos museus as pinturas e as esculturas que retratam rostos humanos, não restaria quase nada. A tradição ocidental que surgiu a partir de Atenas + Jerusalém fez do conceito de rosto o eixo da sua própria concepção ética do mundo, e é daí que, politicamente, surgiram os direitos humanos.
Ver aqui que, diante da da dor e da doença se rasga o rosto do Filho de Deus e do filho do homem, o rosto daquele Jesus tão humano, é assistir ao repúdio do valor central da nossa tradição. Simone Weil escreveu: "Contemplar a desventura alheia sem dela desviar o olhar; não só o olhar dos olhos, mas sem desviar dela o olhar por meio da revolta, ou do sadismo, ou de qualquer consolação interior". Continuar dando vida dentro de nós ao "conceito de rosto" é, a meu ver, de importância vital para a nossa humanidade, enquanto a obra de Castellucci é um adeus amargo e desesperado a ele.
Não acredito que, por isso, um católico deva se sentir ofendido ou até mesmo vilipendiado. Sentado na segunda fila, não me senti nada disso. Eu me senti simplesmente diferente da sua percepção do mundo e da vida. Mas me sinto ainda mais diferente daqueles católicos que chegaram a ameaças violentas contra a direção do teatro e contra o diretor, gente que alimenta dentro de si um ódio contra a modernidade e um imenso complexo de inferioridade com relação ao Islã pela sua capacidade de captura das massas.
O Vaticano, dando-lhes ouvidos, cometeu o mesmo erro, embora muito menos grave do que há três anos, quando readmitiu aquele bispo lefebvriano negacionista e antissemita, ele sim explícita negação do conceito do rosto do filho de Deus.
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Aquele adeus desesperado ao rosto de Jesus. Artigo de Vito Mancuso - Instituto Humanitas Unisinos - IHU