26 Março 2020
"Se a emergência fizer disparar só hoje – em nós cidadãos – a necessidade e a intervenção do Estado, quer dizer que somos todos cúmplices! Cúmplices de um empobrecimento sanitário causado pelos nossos silêncios e, sobretudo, por termos nos acostumado à lógica do pedir por favor o que é um sacrossanto direito do cidadão! Por detrás de todo empobrecimento – não só sanitário – existe uma precisa e capilar lógica de lucro, que reflete aquele viver para si próprios de que falei antes. Por detrás de todo empobrecido, há um enriquecido que vive ao nosso lado, quem sabe sustentado pelo nosso consenso e pelo nosso voto eleitoral", escreve Roberto Oliva, presbítero da Diocese de San Marco Scalea, Itália. A tradução é de Antonio José de Almeida.
Se é verdade que o novo Coronavírus privou os católicos da possibilidade de celebrar a Santa Missa, ao mesmo tempo intensificou os motivos para vivê-la com maior urgência. No dia em que escrevo, transcorre a memória litúrgica de Santo Oscar Romero, assassinado há quarenta anos durante a celebração da Missa por aqueles que esperavam pôr um fim ao ministério de um pastor incômodo. Isto é, um bispo que não só assistia os pobres, mas se posicionava abertamente contra o sistema que empobrecia os mais fracos: a cumplicidade dos poderosos e a ditadura do tempo.
O martírio de Dom Romero é o martírio do cristão que escolhe viver a dinâmica eucarística, não só celebrá-la. Iluminados pelas palavras que pronunciou na última homilia, alguns minutos antes de ser atirado: “Que este corpo imolado, que este sangue sacrificado pelos homens sejam alimento para nós, a fim de que também nós possamos oferecer o nosso corpo ao sofrimento e à dor, como Cristo, não por nós próprios, mas para dar sinais de justiça e paz para o nosso povo” (La messa incompiuta, Edizioni Dehoniane, Bologna 2014,75).
Os numerosos – excessivos! – corpos “doados” destas horas (não somente das vítimas, mas também dos médicos, enfermeiros, voluntários, etc.) nos recordam que a Missa é in-finita (ainda que atualmente estejam sendo celebradas sem o povo). Isto é, não termina o dar-se livre e amoroso do Senhor, sobre diversos altares incômodos, não se esgota a força do amor que se esquece de si mesmo, extirpando silenciosamente o vírus mais letal que se chama egoísmo. Realmente nocivo, pois carrega em si aquela carga de desespero e vazio que é capaz de tornar vão até mesmo o sacrifício de tantos homens e de tantas mulheres.
Mas há só um modo de não o tornar vão: reconhecer que todo sacrifício produz sinais de justiça e de paz! “Iluminar o mundo de esperança cristã” – como dizia Romero – quer dizer viver na nossa história a Santa Missa: isto é, romper o círculo vicioso do viver para si próprios em prejuízo dos mais fracos, não só na América Latina de Romero, mas também na Itália e no Mezzogiorno de hoje. É tocante a carta aguda e corajosa de um jovem médico da Apúlia – Giorgio Calabrese – publicada na Gazzetta del Mezzogiorno: “Vocês souberam apenas cortar e economizar em saúde... economizar em cima do número de leitos, em cima dos pagamentos dos médicos e enfermeiros, que agora, improvisadamente, vocês chamam de heróis, economizar em cima da saúde das pessoas!” De maneira mais evidente, a emergência em curso nos está revelando o que já sabíamos: o engano de um sistema sanitário abandonado e manipulado – sobretudo aqui no Mezzogiorno – por interesses particulares. Continua o Dr. Calabrese com um sentido apelo aos cidadãos: “A eficiência da Saúde vocês devem exigir de quem vocês elegem e não dos operadores sanitários em quem vocês cospem, batem e denunciam quando as coisas não vão como vocês querem! Lutem, então, junto conosco, e não contra nós, quando tudo isso terminar, para exigir uma Saúde verdadeiramente eficiente e funcional”.
Se a emergência fizer disparar só hoje – em nós cidadãos – a necessidade e a intervenção do Estado, quer dizer que somos todos cúmplices! Cúmplices de um empobrecimento sanitário causado pelos nossos silêncios e, sobretudo, por termos nos acostumado à lógica do pedir por favor o que é um sacrossanto direito do cidadão! Por detrás de todo empobrecimento – não só sanitário – existe uma precisa e capilar lógica de lucro, que reflete aquele viver para si próprios de que falei antes. Por detrás de todo empobrecido, há um enriquecido que vive ao nosso lado, quem sabe sustentado pelo nosso consenso e pelo nosso voto eleitoral.
Eis o porquê do martírio de Romero: não foi causado por um mero assistencialismo pauperístico – que, na Igreja, às vezes, retorna – mas à corajosa denúncia das causas do empobrecimento, que são geradas por personagens bem precisos com os quais, ao contrário, frequentemente somos coniventes. O chamado jejum eucarístico acabará, voltaremos a celebrar bilhões de missas, mas esperamos que esta epidemia faça ouvir o incômodo da missa infinda dos corpos “sacrificados” destes dias: impulsionem-nos a prossegui-la sobre os altares pouco adorados das escolhas e dos gestos (políticos e não) pela “justiça e a paz do nosso povo”.
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A saúde sem missa - Instituto Humanitas Unisinos - IHU